“Medo permanente”: Evandro Teixeira descreve momentos fotografando a ditadura chilena
Fotojornalista responsável por algumas das fotos mais notórias da ditadura militar brasileira ganha exposição dedicada ao seu trabalho durante as primeiras semanas de barbárie no Chile
Um dos mais influentes fotojornalistas do Brasil e autor de imagens emblemáticas do período da ditadura militar brasileira, Evandro Teixeira fotografou por mais de 70 anos eventos marcantes da história brasileira e mundial, como a tomada do Forte de Copacabana em 1963 e o enterro de Pablo Neruda em 1973.
Evandro nasceu na pequena cidade de Irajuba, na Bahia, em 1935. Começou sua carreira de fotógrafo no jornal Diário de Notícias, em Salvador, em 1954, onde fez um curso de fotografia por correspondência organizado pela revista O Cruzeiro com mentoria de José Medeiros. Em 1963, morando no Rio de Janeiro, passa a trabalhar no Jornal do Brasil, no qual ficou por 47 anos, até 2010, quando o jornal para de circular em sua versão impressa.
Apesar da obra extensa, são as fotografias tiradas por ele nos dez dias seguintes ao golpe de Augusto Pinochet, no Chile, que ganham destaque na exposição “Evandro Teixeira, Chile 1973” em cartaz no Instituto Moreira Salles Paulista. Evandro foi o único fotojornalista a registrar o caminho do corpo de Pablo Neruda da clínica onde estava internado ao cemitério onde foi enterrado, que inicia apenas com a participação de familiares do poeta e termina rodeado por milhares de pessoas que manifestaram contra a barbárie que se instalava no país.
Em entrevista ao Le Monde Diplomatique Brasil, o fotógrafo conta a história por trás da foto do estudante na sexta-feira sangrenta, os momentos de terror que passou no Chile e as motivações que o colocavam em tais situações. Confira a entrevista na íntegra:
Le Monde Diplomatique Brasil: Qual foi o momento mais marcante tirando essas fotos em Santiago?
Evandro Teixeira: Foram dois momentos mais marcantes: no Estádio Nacional e no enterro do Neruda. No hospital, ao chegar, quando consegui entrar e fotografar o corpo do Neruda, que estava ali abandonado num quartinho. No enterro do Neruda, chegando no cemitério aquela multidão de gente, imprensa internacional, gente gritando, fiquei muito emocionado. É claro que tudo isso era arriscado, era perigoso, uma loucura, mas acho que esses dois momentos foram os mais emocionantes.
E o momento em que sentiu mais medo?
Sempre, medo permanente. Brincadeira, o momento que eu senti mais medo foi no hospital. Eu consegui entrar, não era permitido entrar ninguém ali, fui escondido e descobri o corpo dele ali dentro. Eu olhava para trás pensando “tem só eu? não tem ninguém aqui?” e era só eu! Se alguém me descobrisse ali eu achava que ia morrer, mas não apareceu ninguém. Os militares estavam lá fora, mas ficaram lá mesmo. Se, por acaso, entrasse alguém lá e me pegasse, eu estava roubado.
O que te motivava a se arriscar desse jeito pelas fotos?
Pois é, jornalista é assim mesmo, a vontade de estar ali, fotografar, cumprir uma missão, mostrar uma vivência, como foi o enterro de Neruda e o que fizeram com ele. Isso tudo lá no Chile foi muito triste, muito preocupante, mas eu sempre quis fazer as coisas que não podiam ser feitas de certa maneira. Eu penei muito para achar o corpo do Neruda na clínica, mas queria fazer aquilo, eu sempre me arrisquei pra fazer o impossível, torná-lo possível. Em momento algum achei que não poderia fazer, sempre pensei “eu estou aqui para fazer, então vou fazer, eu estou aqui para ver ele, então vou vê-lo”. Sempre, em toda a minha vida de fotógrafo, procurei momentos marcantes e sempre estava ali para o que tinha que ser feito, falar a verdade.
Qual é a história da foto “Estudante, Sexta-feira Sangrenta”, uma das mais famosas e representativas da violência da ditadura brasileira?
Foi uma manifestação no Rio de Janeiro e eu tinha saído de uma outra manifestação em que jogaram uma bomba de gás lacrimogêneo que fez com que nós, a equipe do jornal, saísse dali com os estudantes, acompanhando eles. De repente eu vi um cara gritando, correndo, a polícia atrás dele, aquele estudante da foto. Ali, ele bobeou, coitado, ele não correu bem, e foi pego. De repente, pegaram ele, deram uma pernada nele, ele caiu e bateu a cabeça no meio fio, em frente ao teatro municipal, e deu um berro horroroso. Eu fiz aquela foto e quando eu vi estavam tentando levantar ele, mas logo partiram para cima de mim e eu me mandei. Essa foto foi publicada no jornal e ele nunca apareceu. Uns seis meses depois fizemos uma matéria na primeira página convocando: “se você estiver vivo, eu gostaria de revê-lo, conversar” mas ele nunca apareceu, até hoje. Ficou como morto, publicamos várias vezes a mesma foto, ele deveria ter aparecido, mas ficou por isso.
O senhor diz que, durante a ditadura, a câmera foi sua arma. Você acha que cumpriu esse papel?
Eu acho que sim, trabalhei por isso sim. Na Passeata dos 100 mil foi lindo, nunca vi o Rio de Janeiro tão bonito, e foi pacifico. Eles não conseguiram fazer uma prisão, não entendo como naquela multidão não aconteceu nada, foi uma paz dourada. A gente achava que ia ter um massacre, não houve nada, foi um dia que não conseguiram prender ou machucar um estudante, foi uma maravilha. Mas em outras situações era pau a pau, a gente corria e a polícia corria atrás. Não era perdoado, principalmente fotógrafo, mas eu corria bem, consegui dar uma fugida, eu era bom de perna, corria muito, o que hoje não consigo mais! Era uma loucura, mas foi bom, eu fiz o que eu gostava.
Se me perguntassem se eu faria tudo de novo eu diria “claro que eu faria!” Aos 12 anos eu saí do meu vilarejo para ir estudar em uma cidade maior e a única revista que chegava lá era O Cruzeiro, que tinha um curso de fotografia do José Medeiros, grande fotógrafo brasileiro. Eu fiz esse curso, lá do interior da Bahia. Logo depois fiz um curso com o sobrinho do Glauber Rocha que era fotógrafo lá e já tinha uma Rolleiflex. Mas José Medeiros foi realmente quem me deu os fundamentos. Em 1957 fui para o Rio de Janeiro e conheci ele, falei que fiz o curso dele, e ele ficou meu amigo até a morte, irmãos, um fotógrafo maravilhoso. Acho que o que eu sempre quis ser é isso, fotógrafo, fazer as mesmas bobagens, tudo aquilo de novo, eu faria, eu não pulava fora, não bobeava não.
Tem alguma foto que o senhor não tirou?
No Chile. Nós tivemos a informação de que estavam chegando estudantes mortos, corpos, sendo despejados no necrotério de Santiago. Um agente da ditadura falou que o governo estava dando uma carta pras pessoas irem ao necrotério reconhecer se o corpo já estivesse liberado para levar embora. Eu fui lá e me deram a carta. Cheguei lá no necrotério às dez da manhã, apresentei a carta sem falar nada, porque se eu falasse iam descobrir que eu não era de lá. O militar pegou e me indicou que os corpos estavam sendo reconhecidos em uma porta ao lado. Eu olhei para trás e decidi entrar na porta do outro lado, ali onde ele não queria que eu entrasse. Me falaram que os corpos estavam chegando aos montes de um lado e pensei que seria ali. Quando entrei escondi a câmera embaixo da jaqueta, segurei a câmera, segurei a porta, quando vi, um militar tinha me visto entrando ali, ele me deu uma porrada e me xingou. Eu mostrei a carta sem falar nada e ele me levou pra onde os corpos estavam sendo reconhecidos. Ali, eu vi os corpos sendo jogados de forma violenta, mas não tirei a foto. Tudo aquilo era muito preocupante, onde ia ficava com medo do que podia acontecer comigo, fui aprendendo a não bobear, porque se bobeasse eu ia perder, contra eles não dava pra ganhar. Mas, no fim, acho que fui eu quem ganhei.
Carolina Azevedo faz parte da equipe do Le Monde Diplomatique Brasil.