Criolo e as ilusões na mente de um louco qualquer
Em entrevista ao Le Monde Diplomatique Brasil, o paulistano do Grajaú fala sobre música, política e tempo: “ Eu só sei que quando dá a febre, pulsa tudo, e a gente tem que expressar”.
“Eu não sei mais o que é que pulsa. Eu só sei que quando dá a febre, pulsa tudo”, diz Criolo, ao Le Monde Diplomatique Brasil, antes de soltar uma gargalhada. O ritmo do pensamento muda, a voz se torna mais grave e a resposta sobre como será o próximo trabalho e o futuro da carreira desemboca em uma dramaticidade não externada há pouco. “Se eu não canto, eu morro, sou um homem moribundo, eu morro. Eu estou morto a cada dia, a cada segundo sou um homem morto”. O contraste de sentimentos e a emoção aflorada parecem encontrar diálogo na canção “Até Me Emocionei”, do álbum “Ainda há tempo” (2006), relançado no ano passado, com o trecho “Porque arte é arte, dor e alegria presente/O homem é um animal que está sempre em conflito com a mente”. Ou talvez com o próprio refrão da música: “Pra falar do que sinto cantei, cantei, me expus e até me emocionei”.
A maneira como Criolo expôs, no trabalho mais recente, sua complexidade tantas vezes debatida difere do que ele fez ao longo da carreira. A voracidade com que atacou as palavras em discos anteriores – Ainda há tempo/2006, Nó na orelha/2011 e Convoque seu buda/2014 – foi substituída pela voz um pouco mais lenta. A poesia, como já disse em outras oportunidades, desaguou em samba. “Espiral de Ilusão”, lançado no primeiro semestre, é composto por dez músicas que falam sobre mazelas de uma sociedade e a casta política que rege essa nação (“Menino Mimado”), a mágoa causada por uma traição e o fim de um relacionamento (Espiral de Ilusão), a rotina nas periferias do país (Hora da decisão), entre outras.
No fim de outubro, Criolo esteve ao lado de Caetano Veloso, Emicida, Sônia Braga, entre outros artistas, para apoiar o Movimento Sem Teto (MTST) em São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo. Iniciada em meados de setembro, a ocupação reúne cerca oito mil famílias em um terreno de quase 70 mil m². A empatia com o movimento não é recente. Ele esteve em outra ocupação do MTST, em fevereiro deste ano, na Av. Paulista, também na luta por moradia. “Eu morei quase seis anos em um barraco. Na cozinha, a janela que ficava sobre a pia dava de frente para um poço. A porta de casa dava para uma viela. Até os meus seis anos, vi muita gente ser esfaqueada, morta”, afirma, ao relembrar a vida no Grajaú, extremo sul da capital paulista.
Durante a conversa com o Le Monde Diplomatique Brasil, Criolo analisa o significado do Exército na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, o show que fará com Jorge Ben Jor, em São Paulo, na próxima sexta-feira (17) e o papel da música na sociedade brasileira. “(A música) É porta-voz das vísceras de um povo. Acham que é apenas um romance, coisa de romântico. Mas não é. É também porta-voz do intestino delgado, grosso, e de vísceras, que estão febris, por conta de todas as lapadas que o nosso povo recebe”.
Le Monde Diplomatique: Certa vez você disse que “A gente está em construção e desconstrução todos os dias”. Como é gerenciar internamente a desconstrução do rapper e a construção do sambista?
Criolo: Na verdade eles se conversam, um ajuda o outro, porque tudo é música. É uma construção só. A inspiração que te leva a uma construção. Isso não faz diminuir nada.
Espiral de Ilusão é um desabafo de uma desilusão amorosa. Calçada, pra mim, também é também sobre um amor que acaba. Fico curioso para saber como esse tipo de amor se expressa na sua vida. Você já sofreu por amor?
Quem nunca, não é? Essa é a resposta: quem nunca?
Ao explicar a feitura do CD Espiral de Ilusão, você diz que “Algo aconteceu em mim e acho que veio junto também o fato de eu estar me percebendo como alguém que está envelhecendo”. Isso é uma percepção musical do tempo. Como é a percepção física e psicológica da idade que não para de chegar todos os dias?
Não tenho mais o mesmo folego, a mesma tenacidade física. Você percebe fisicamente a chegada do tempo todos os dias. Agora, psicologicamente, não sei. O psicológico é construído todos os dias. Como é que muda sem estar pronto?
Você esteve na ocupação do MTST, em São Bernardo do Campo, ao lado de outros artistas. Qual a sua avaliação do movimento e luta deles?
Extremamente importante. Eu morei quase seis anos em um barraco. Na cozinha, a janela que ficava sobre a pia dava de frente para um poço. A porta de casa dava para uma viela. Até os meus seis anos, vi muita gente ser esfaqueada, morta. Então eu sei a importância que é cada pessoa ter a sua casa, o seu lugar de paz. Isso é muito forte e só sabe quem não tem. Uma pessoa com uma morada, com um alento, é bom pra todo mundo.
(foto: Mídia Ninja/cc)
Caetano Veloso, com quem você esteve em São Bernardo do Campo disse, no novo capítulo de seu livro, o Verdade Tropical, que o Brasil está em perpétua convulsão e não há motivos para ser otimista. Você é mais otimista que Caetano com o futuro do Brasil?
Primeiro que eu não posso contrapor Caetano, por que quem sou eu, não é? Que isso fique registrado. Mas, quando eu estou no Grajaú, e eu sei muito bem que está na biqueira e quem não está, eu vejo no olho de cada uma dessas pessoas um sentimento de desejo por vitória, e essa vitória nada mais é do que fazer o pai feliz, a mãe feliz, e viver uma vida com dignidade.
Nós estamos acostumados com um tipo de vitória que é diferente disso, não é? Vivemos algo que prioriza o capital, ganhar mais dinheiro, ter o carro do ano…
Uma das referências mais fortes que existem na sociedade é quanto do meu poder está ligado a minha situação econômica…
Como você avalia a presença do exército na Rocinha, no Rio de Janeiro? É um pouco do que você diz em “Hora da Decisão” – Se a falange do mal tá pronta. E a paz teve que sair…
Isso é a assinatura do Estado por tudo aquilo que se negou a fazer, por tudo aquilo que tentou jogar debaixo do tapete, por tudo aquilo que suprimiu e também por não perceber que as pessoas que moram em favelas são seres humanos reais, com problemas reais. Os problemas das pessoas nas favelas fazem parte do todo. É muito mais um desespero de sentir uma reverberação, de um resultado de omissão do estado, porque tem muito dinheiro aqui. É pra todo brasileiro viver uma condição maravilhosa. E não só a condição de ter o que comer, beber ou vestir. Mas a condição de uma escola boa, para que a criança cresça com a capacidade de perceber uma interpretação de texto e, partir daí, isso resultar em um adulto que tenha condição de entender o que acontece ao seu redor e você ter uma cultura de construção de pensamento que faz com que existam pilares de sociedade que se sustentem de modo real, para que o todo fique bem. Essa omissão do Estado tem objetivo, tem meta e tem alvo.
Na conversa que você teve com o Lázaro Ramos, no programa Espelho, do Canal Brasil, você diz que o povo, e isso inclui a classe política, parou de se perceber como povo. O que precisa acontecer para que a luta por moradia, por exemplo, não seja taxada como algo ruim?
Educação. Escola de qualidade. Ambiente de absorção de cultura, de arte, de educação, para a construção de um ser humano capaz de enxergar o mundo de maneira real. A partir disso sua construção ideológicas será feita in-natura e não por indução.
Hoje em dia ela é toda por indução?
Hoje em dia não, meu filho, antes do seu bisavô nascer já era por indução. Eu sempre pergunto a um amigo meu: “quanto Hollywood teria que pagar por mostrar ao mundo o casal ideal?” Seria uma conta muito grande, não é?
Você acha que as pessoas estão entendendo as mensagens que você quer passar? Certa vez você disse que “é muita soberba de um cantor achar que todo mundo está entendo ele”. Em Menino Mimado, diz que “quem não vive em verdade, meu bem, flutua, nas ilusões da mente de um louco qualquer…”
Eu não sei. Mas pelo menos é um espaço onde posso me expressar. Isso é muito mais valoroso, porque o sentido do que digo é uma construção. Quem sou eu para achar que os outros precisam me entender? Só de me permitirem coexistir já é algo muito forte, sobretudo em uma sociedade opressora. Só de você ser acolhido, de perceber que você pode coexistir, já é de uma solidariedade e de um carinho muito grande.
Mas na conversa com o Lázaro você afirma que a arte só encontra um sentido quando encontra o outro. Enquanto você faz arte só para você…
Sim, claro, por isso que eu falo que arte, educação e cultura são extremamente importantes. Se isso não existir, e eu não me perceber, o meu eu, o meu ser, e a construção do que eu deixo para o mundo, tudo se brutaliza. E aí não posso cobrar entendimento do outro. Seria uma crueldade, sobretudo porque a gente sabe como a educação e a cultura estão sendo sucateadas no país. Você não pode ter esse ato cruel de cobrar entendimento do outro, sendo que tudo está sucateado.
Sobre o show com Jorge Ben, você costumava ouvi-lo na juventude? Você é de 1975. Um ano antes ele havia lançado Tábua de Esmeralda e, em 1976, lançou África Brasil, dois clássicos…
Eu vou te confessar uma coisa: eu não acredito que eu vou cantar na mesma noite que ele. Eu não acredito. Eu não sei o que vai acontecer quando eu encontra-lo, porque a emoção será muito grande. Ele é o rei do swing, esse cara…Jorge Ben, meu deus do céu…
Como o show será composto? Você vai cantar a músicas do Espiral de Ilusão e ele as canções dele ou vocês vão misturar tudo?
A espinha dorsal do show será o Espiral de Ilusão e eu vou cantar outros sambas da minha vida, sempre envolvendo um diálogo, uma poesia. Brasil, África, falando do nosso jeito, nosso povo…A música, amigo, é incrível.
Proporciona coisas espetaculares…
É porta-voz das vísceras de um povo. Acham que é apenas um romance, coisa de romântico. Mas não é. É também porta-voz do intestino delgado, grosso, e de vísceras, que estão febris, por conta de todas as lapadas que o nosso povo recebe. Que “Menino Mimado” seja uma canção eterna, não por vaidade, mas para que outros compositores venham a desaguar seus desabafos, como aqueles que percebem na pele a dor do nosso povo têm feito.
Você já sabe o que vai fazer no próximo trabalho?
Eu ainda não sei…A única coisa que eu sei é o seguinte: sem massagem.
Esse trabalho será feito mais com o coração ou com o intestino delgado?
Eu não mais o que é que pulsa, meu filho. Eu só sei que quando dá a febre, pulsa tudo, e a gente tem que expressar, porque senão eu morro. Se eu não canto, eu morro, sou um homem moribundo, eu morro. Eu estou morto a cada dia, a cada segundo sou um homem morto, assim como nos assassinam esses corruptos, malignos do colarinho branco, que matam todos os dias os meninos do Grajaú, do Capão, do Campo Limpo, do Jardim Ângela, Parelheiros, assassinados, mortes sangrentas, mortes cruéis, todas patrocinadas pela corrupção. Homens bem alimentados, com boas roupas, boas casas, e suas famílias usufruindo do dinheiro parlamentar, que diz que eu sou isso, que sou aquilo. Quem é do mal é do mal, quem é do bem, é do bem. Tem muita pessoa boa lá, nós não podemos generalizar. Mas todo homem corrupto é responsável pela morte de um jovem do meu bairro, seja por violência, por omissão, por inanição ou por falta de horizonte. Lógico que cada ser tem sua singularidade, cada ser, ao se perceber no mundo, faz a sua caminhada. Mas nos extremos do Brasil, nas periferias do Brasil, falar de ideologia com a barriga vazia chega a ser crueldade.
Guilherme Henrique é jornalista