Crise do fujimorismo e a instabilidade dos poderes no Peru
Movimento se debilita após briga entre clã familiar, prisão de Keiko e polêmica sobre indulto do ex-presidente Alberto Fujimori enquanto setores do judiciário e novo presidente Vizcarra medem força
O presidente peruano Martín Vizcarra estava no Brasil para a posse de Jair Bolsonaro quando decidiu retornar às pressas devido a mudanças ocorridas no interior da investigação Lava-Jato – operação derivada do processo brasileiro e que também envolve importantes lideranças políticas. A decisão do Fiscal Geral da nação de afastar dois promotores – decisão revogada poucas horas depois – por utilizarem-se de métodos avessos à lei como o vazamento de informações é mais um episódio do terreno instável sob o qual vive a sociedade peruana e sua relação com os principais poderes institucionais.
Renúncia de um presidente, prisão de lideranças, greves históricas e alterações constitucionais. O Peru está entre os países da América Latina que mais atravessaram mudanças internas ao longo de um tumultuado ano de 2018. Em apenas dois anos o fujimorismo, um dos movimentos políticos mais influentes da história recente da região, saiu do papel privilegiado de impor sua agenda conservadora para uma posição de fragilidade diante dos embates com o novo presidente, o antes pouco conhecido Vizcarra, que tomou posse após a renúncia do titular Pedro Pablo Kuczynski em março do ano passado.
As eleições provinciais e para prefeituras do último outubro e a consulta popular que determina a revisão de pontos sensíveis da constituição elaborada sob a presidência de Alberto Fujimori na década de 90 foram o sinal definitivo das transformações que atravessam a política do país. “Congresso e judiciário estão debilitados por escândalos de corrupção e Vizcarra teve a percepção de propor reformas para corrigir as distorções desses poderes. O fim da reeleição, a reestruturação do Conselho da Magistratura e as novas regras em relação aos partidos políticos foram aprovadas por 85% da população. O governo buscou respaldo popular diante da minoria que detém no parlamento”, contextualiza o jornalista Luis Hernostroza.
A crise da alta cúpula do judiciário flagrada em negociações ilícitas junto a políticos e empresários provocou a destituição dos sete magistrados que comandavam o Conselho Nacional cuja função era nomear e fiscalizar o trabalho de aproximadamente seis mil juízes em todo o país, cujos vencimentos chegam à casa dos sete mil dólares. A garantia de que na reforma do judiciário haverá mais participação de outras esferas da sociedade civil é um dos caminhos para buscar a transparência desejada ao setor.
No mesmo espírito insere-se a lei que modifica as regras para o financiamento público e privado dos partidos, com a penalização da prática de caixa dois, até então não tipificada. A proposta surge na esteira das acusações envolvendo a líder do Força Popular, Keiko Fujimori e o suposto recebimento de valores não declarados da empresa brasileira Odebrecht durante a campanha presidencial de 2011, quando foi derrotada por Ollanta Humala. As sessões de justiça envolvendo a ex-candidata que encontra-se em prisão preventiva por 36 meses são mais assistidas do que os principais programas da TV peruana, segundo relato de locais.
“A espera é interminável, vivo os minutos mais longos da minha vida”, escreveu a líder em sua conta no Twitter no final de 2018.
Diante do novo cenário, o Força Popular, principal expressão do fujimorismo nem parece o mesmo grupo político de poucos meses passados. Apesar de Keiko sofrer novo revés na disputa presidencial de 2017, o poder real estava era uma vez mais dos fujimoristas após a eleição de 73 congressistas dentre um total de 130, número possível na avaliação dos críticos pela forma de atuação ligada à mercenarização da política e controle territorial sobre o norte, a selva e outras localidades.
“Os fujimoristas controlam o parlamento e para isso se utilizam de compras de votos e outras estratégias para se perpetuarem” ressalta Maria Foronda, congressista da Frente Ampla, principal agrupamento da esquerda.
Essa maioria seria decisiva na obtenção do indulto ao ex-presidente e ditador Alberto Fujimori, à frente do executivo de 1990 a 2000 e sentenciado por crimes contra a humanidade, evidenciando que o poderio seria utilizado para retomar o protagonismo de duas décadas atrás. Alvo de um pedido de afastamento por supostas irregularidades em sua relação também com a Odebrecht na época em que foi ministro da economia nos anos 2000, PPK indultou Fujimori para garantir sua permanência diante do acerto de que parte da bancada ligada à direita não apoiaria sua saída.
Mais tarde, a decisão se mostraria uma armadilha dado que os mesmos parlamentares pressionaram e obtiveram a renúncia de PPK , pouco identificado com o povo e envolvido em uma tentativa de compra de votos protagonizada por Kenji Fujimori, irmão e adversário político de Keiko que acabou afastado após o vazamento de vídeos em que aparecia negociando com congressistas benefícios em caso de continuidade do então presidente PPK.
“Nem todos acreditam na divisão na família e em termos econômicos eles são o mesmo. Muitos falam tratar-se de uma estratégia para ver qual posiciona-se com mais chances de ser presidente. Kenji é considerado a renovação por defender direitos das mulheres, da comunidade LGBT, além de ser visto como um bom filho por buscar a liberação do patriarca. Keiko tem imagem de obstrucionista e excessivamente ambiciosa, embora tenha pedindo desculpas por erros do passado. É como uma novela entre irmãos para refundar o fujimorismo, mas quem manda ainda é o pai.”, observa José Zunina, assessor parlamentar.
A queda de braço com Vizcarra
A mudança na presidência fortaleceria definitivamente o fujimorismo não fosse a guinada empreendida por Vizcarra. No Peru existe uma espécie de presidencialismo híbrido uma vez que o presidente deve pedir ao Congresso o chamado voto de confiança ao apresentar sua equipe de governança. Caso os parlamentares vetem a composição por duas vezes consecutivas, o executivo tem a prerrogativa de chamar novas eleições, algo que não interessa à bancada majoritária, que ao longo da gestão PPK havia sancionado o então ministro da educação devido a uma falsa polêmica sobre a ideologia de gênero nas escolas, desinformação espalhada sobre tudo pelo bloco evangélico que compõe atualmente o Força Popular.
“A população está favorecendo o presidente, mas há problemas graves como a reconstrução de pontes, casas e hospitais destruídos há mais de um ano e meio devido ao El Nino. É preciso responder a essas questões e implementar as leis que tornem possível o resultado do referendo”, expressa o analista Luis Fernando Nunez.
A conflagrada arena política não interferiu nos investimentos do país , que sediará os Jogos Panamericanos de 2019 na capital Lima e acumula o segundo maior avanço do PIB na América Latina, estimado em 4%, inferior somente aos índices da Bolívia. Apesar do crescimento e da gradual diminuição da pobreza ao longo dos últimos períodos, a dependência da exploração mineira – quase 70% da atividade econômica está relacionada à atividade – e a excessiva concentração de renda fazem com que muitos peruanos tenham a sensação de viver muito parecido aos anos 90.
Sob essa realidade, a pressão social sobre minorias e pobres despertou a reação popular depois de longo período de retraimento dos movimentos coletivos e da participação dos cidadãos em mobilizações de rua. Além dos protestos contra o indulto a Fujimori, que está sob revisão, na maior greve de professores dos últimos trinta anos os servidores permaneceram por um mês na segunda maior praça da capital Lima acampados para exigir valorização salarial e melhores condições de trabalho. Produtores de batata e médicos do sistema público também realizaram ações com grande repercussão, apesar da criminalização de parte dos meios de comunicação , situação replicada na imagem distorcida acerca da esquerda no país, ainda identificada por setores como alinhada ao grupo armado Sendero Luminoso, já extinto.
Isso ajuda a explicar por que é comum chegar a casa de pessoas humildes e encontrar a foto de Alberto Fujimori, cuja imagem difundida por seus apoiadores é a de um presidente que estabilizou a economia e derrotou o Sendero. Ao contrário da parte da sociedade, sobretudo do interior, que lembram-se do “chino” como uma figura messiânica, outra parcela significativa não esquece os tempos ditatoriais vividos sob a presidência de Fujimori e seus mecanismos para controlar a opinião pública através da compra de meios de comunicação, cooptação de deputados e das campanhas de medo recorrentemente utilizadas. Na época em que dissolveu o parlamento, em 1993, o então mandatário colocava na televisão cenas de parlamentares dormindo nas sessões e incentivava jornais baratos a detratar seus adversários.
“Fujimori era visto como um outsider, uma resposta aos partidos tradicionais. Essa figura trazia honradez, tecnologia e trabalho. Ele foi o primeiro a chegar a determinados povoados e construir escolas e hospitais. Mesmo se essas obras não funcionassem pouco depois, a lembrança das pessoas era de que chefe do Estado havia estado lá. Foi um presidente próximo do povo, curiosamente algo parecido com o que faz agora Vizcarra, a sua maneira”, compara a estudante Cinthya Debaulde, desde Cuzco.
O jornal El comercio, um dos principais veículos da mídia, publicou neste final de ano texto em que um de seus colunistas sugere semelhanças entre o passado nos anos 90 e a atualidade, ressaltando que Fujimori controlou o parlamento pela força enquanto Vizcarra obteve o mesmo resultado valendo-se da estratégia política. Na contínua instabilidade peruana, os progressistas apontam a criação de uma assembleia constituinte que enterre a constituição fujimorista como o próximo enfrentamento fundamental para a construção de um novo tempo, mas os experientes advertem que na política do país não há mortos, somente zumbis que a qualquer momento podem voltar a decidir sobre o futuro da nação.
*Murilo Matias é jornalista