A crise na Catalunha nasceu em Madri
Adversários em relação à independência da Catalunha, os dirigentes de Barcelona e Madri são parecidos: eles esperam que sua intransigência provoque o esquecimento dos escândalos de corrupção em que estão envolvidos. Uma solução para o conflito passa, ao contrário, pelo aprofundamento do estudo sobre as raízes da crise
Vistas da Europa, as posições dos partidos que se opõem na questão catalã podem parecer estranhas ou mesmo confusas. No entanto, elas obedecem a duas estratégias que percebemos melhor quando colocamos de lado a grade de leitura “separatismo versus Estado centralizado”. Não que essa grade seja falsa – todos a reivindicam –, mas ela esconde outro problema, mais profundo: a Constituição espanhola não evoluiu após a morte do ditador Francisco Franco (1892-1975), perdendo aos poucos o contato com a realidade da sociedade que devia estruturar. A leitura separatista não explica por que o primeiro-ministro espanhol incendiou a Catalunha em 1º de outubro e em seguida convocou eleições para a região, nem por que seu colega catalão declarou uma independência sem nenhum efeito real, que descontentou tanto seus adeptos quanto seus adversários. A resposta é que a crise catalã constitui uma forma de territorialização de conflitos oriundos de outra parte.
Desde a aplicação de políticas de austeridade draconianas em 2011, a Espanha vive um período de instabilidade que se traduz por crises cada vez mais graves: movimentos de ocupação de espaços “do 15-M” em 2011;1 crise da representação parlamentar em 2015 e 2016 (que conduziu a 315 dias sem governo, ficando os assuntos correntes a cargo de um conselho de ministros em aviso prévio) e desafio separatista catalão. Qual é o problema subjacente a essas três crises? Os princípios de uma Constituição adotada em 1978 e concebida como o ponto de partida da transição entre franquismo e democracia, mas que acabou por travar o processo que ela deveria promover.
Já houve texto mais democrático. O sistema de aforamiento, por exemplo, é uma reminiscência do Antigo Regime que confere a 17 mil pessoas a possibilidade de escapar da justiça de primeira instância e serem julgadas apenas por tribunais superiores, mais sensíveis às pressões do Poder Executivo. Semelhante ao estatuto excepcional que protege, na França, o presidente e o governo central, o foro privilegiado espanhol protege o conjunto dos parlamentares (inclusive dos Parlamentos regionais) e os magistrados. Os partidos políticos também assumem um papel “fundamental” na “participação política” (artigo 6) que ultrapassa em muito o de trabalhar pela formação da opinião pública, como na maior parte das democracias.2 Se, em outros lugares, concebe-se a vontade geral como a superação dos interesses individuais, o sistema espanhol adota uma visão organicista do mundo: as massas devem ser contidas para formar um povo. Assim, o regime franquista organizou a sociedade em torno do movimento nacional e de um sindicato vertical. Após a morte do ditador, a Espanha se abriu ao pluralismo político e sindical, mas não modificou fundamentalmente a definição de sua função. Os cidadãos votam em um grupo que escolhe depois seus deputados em uma lista fechada, na proporção do resultado geral obtido.
Longe de serem associações de indivíduos consolidadas por afinidade ideológica, os partidos políticos espanhóis se estruturam, assim, como corporações pouco permeáveis aos anseios públicos e blindadas contra suas próprias bases militantes. É de estranhar seu grau de corrupção? As revelações ligadas ao “caso Gürtel” – 43 milhões de euros desviados em favor do Partido Popular (PP) – se acumulam na imprensa quase diariamente, há vários anos. Contudo, esse é apenas um dos inúmeros escândalos ligados a uma corrupção que se tornou sistêmica. Em 2014, o ramo espanhol da organização Transparência Internacional pediu que fossem “desbloqueadas as listas fechadas dos partidos” e que estes “publicassem seus gastos de campanha no prazo de três meses após as eleições”.3 Ninguém deu ouvidos.
Nostalgias republicanas
Devemos estranhar, porém, que, à semelhança do sistema partidário, as instituições oriundas da Constituição de 1978 se limitem a um compromisso entre democracia e franquismo? Os pais do texto procuravam, antes de tudo, impedir o recomeço da guerra civil. O projeto buscava então uma base situada entre o caciquismo típico da Espanha nacional católica e a democracia, a partir da qual se construiria a “democracia pura” à medida que a sociedade evoluísse. Em lugar de aprimorar o texto de 1978, o país o congelou: desde sua redação, a Espanha não retomou a tarefa constituinte, uma promessa que, no entanto, a transição democrática implicava.
Sem dúvida, a sociedade espanhola abandonou os valores e comportamentos que a prendiam à ditadura. Quarenta anos após o fim da censura, discute-se aqui, livremente, a eutanásia, as questões de gênero, de sexualidade ou de consumo de drogas recreativas. A frequência e a liberdade com que os astros da televisão interpelam o poder lembram mais os Estados Unidos que a Europa católica. Na Espanha de 1978, nem todas as crianças iam à escola, as ruas de muitas cidades médias não tinham asfalto, alguns bairros não recebiam o correio, outros não possuíam redes de esgoto, os sistemas de transporte coletivo e de saúde eram rudimentares… Em 2017, a transformação econômica, social e cultural é notória. Mas, concentrando-se nessa tarefa, o país esqueceu o resto. A entrada no Mercado Comum, em 1985, mascarou a ausência de reformas constitucionais: uma vez que a sociedade se tornara democrática em tão pouco tempo, não deveriam as instituições ter atingido um equilíbrio?
Nesse contexto, o desafio catalão, que se apresenta como um movimento separatista, tira sua força motriz do fosso escavado entre os espanhóis e suas instituições, do repúdio à corrupção (presente, contudo, também na Catalunha), sem esquecer uma hostilidade muito especial aos vestígios do absolutismo, ainda numerosos na Espanha – onde o rei, a Igreja e os “grandes” continuam sendo os maiores donos de terras do país e, por isso, se beneficiam da ajuda europeia ao desenvolvimento das regiões (em 2008, a falecida duquesa de Alba recebeu 1,85 milhão de euros em subvenções).
A suspensão do estatuto de autonomia da Catalunha pelo Tribunal Constitucional, em 2010, foi a fagulha que esbraseou a planície catalã. A esse respeito, dois fatos merecem consideração. O primeiro, circunstancial: a suspensão foi provocada por uma petição judiciária do PP, apresentada por Mariano Rajoy, numa fase em que seu partido estava em baixa junto aos eleitores e em que ele próprio sofria ataques de adversários no seio da própria legenda. Rajoy se pôs então a recolher assinaturas contra o estatuto da Catalunha por toda a Espanha, um tipo de provocação que sempre dera frutos no seio de seu eleitorado mais reacionário.
O segundo elemento é histórico: explica por que a suspensão do estatuto de autonomia reabriu uma velha ferida e esclarece a estratégia do presidente do Governo Regional da Catalunha, Carles Puigdemont. Em 14 de abril de 1931, os republicanos espanhóis venceram as eleições municipais em quase todas as grandes cidades e proclamaram várias repúblicas, entre as quais a catalã, sob a égide de Lluís Companys, vereador da Esquerra Republicana (Esquerda Republicana, ER). Aplicando um programa federalista, esses republicanos independentes proclamaram a Segunda República espanhola, à qual Franco pôs fim. Morto o ditador, os republicanos argumentaram que a república federal ainda era o regime legal a que se convinha regressar. A questão – bem como a da unidade territorial – foi regulamentada por um compromisso: os catalães desistiam de formar uma república federal e aceitavam tanto o regime monárquico (artigo 1.3 da Constituição) quanto “a indissolúvel unidade da nação espanhola” (artigo 2), abandonando o projeto de declarar unilateralmente sua independência, como em 1931. Em contrapartida, obtinham o direito de adotar um estatuto de autonomia e uma legislação civil própria, ainda que esse direito permanecesse estritamente limitado. A reforma do estatuto de autonomia que ampliava os poderes do Governo Regional, em 2006, devia passar: primo, por sua aprovação ordinária no Parlamento catalão; secundo, por sua aceitação na Assembleia e no Senado espanhóis, com maioria qualificada; tertio, por um referendo. Embora seus promotores tenham preenchido todas as condições, esse novo estatuto foi suspenso pelo PP em 2010, num tribunal constitucional cujos membros, em sua maioria, tinham sido nomeados pelos conservadores. Daí a ideia de que devemos a crise atual à agressividade da ala dura do PP…
Até as eleições de 2015, a direita conservadora CiU (produto da aliança entre a Convergència Democràtica e a Unió Democràtica de Catalunya) exercia um controle hegemônico sobre o Parlamento catalão. Antes de 2012, ela abominava a secessão; entretanto, seu dirigente, Artur Mas, percebeu na onda independentista das ruas – alimentada pela austeridade atribuída a Madri4 – uma maneira de disfarçar os escândalos de corrupção que colocavam a CiU não muito longe do PP na escala do opróbrio. A direita excogitou um referendo em 2014, organizado em torno de uma pergunta que admitia três respostas – unionista, federalista ou independentista: “Você quer que a Catalunha se torne um Estado? Se sim, quer que ele seja independente?”. A anulação do referendo não abalou os conservadores, pouco importando o que dissessem publicamente, pois seu projeto consistia em contar os votantes – assim como um sindicato conta os manifestantes – antes de negociar o restabelecimento dos artigos suspensos do Estatut (o estatuto de autonomia catalão). Se retomasse o poder graças a possíveis eleições antecipadas, em que Rajoy punha todas as suas esperanças, essa faixa da elite catalã se contentaria, sem dúvida, com o retorno ao statu quo ante de 2010 e a crise institucional (que ela detesta visceralmente) logo terminaria.
Desde 2015, porém, é a ER que domina a coalizão hegemônica na Catalunha, cuja maioria relativa só se sustenta em razão do apoio da extrema esquerda da Candidatura de Unidade Popular (CUP). Essa alteração do equilíbrio interno explica a inclusão do regime republicano na questão do referendo de 2017, a mudança de atitude de Madri e a radicalização das posições a partir de 1º de outubro. Nessas circunstâncias, a recente proposta apresentada pelo Partido Socialista e pelo PP de enfim reformular a Constituição não convence: é vista como a mais ínfima concessão imaginável de dois partidos igualmente responsáveis por quarenta anos de imobilismo num país à beira do abismo. E já não se pode ignorar que as ruas rejeitam um acordo insuficiente: a “paralisação geral do país” em 3 de outubro (convocada pelas organizações patronais e os sindicatos, sem excluir a Confederação Nacional do Trabalho [CNT] anarcossindicalista e as associações pró-independência) deixa claro que a rejeição aos partidos corruptos e às instituições obsoletas é de toda a sociedade. Do outro lado, as manifestações contrárias à independência também querem participar dos debates, conclamando a “maioria silenciosa” a se fazer ouvir.
A tática da tensão
Grande parte das forças políticas e da mídia espanholas parece seguir Rajoy em sua estratégia de transformar o problema político em questão jurídica (apoiando-se nos tribunais superiores) e provocar, ao mesmo tempo, cada vez mais tensões. O apelo à “mobilização permanente” de certos líderes catalães ou a recente campanha da CUP (“Viver é tomar partido”) mostram que a radicalização encanta igualmente outros atores. As investidas policiais de 1º de outubro acabaram por dividir a Espanha em dois campos – e cada pessoa se sente impelida a aderir a um deles. Em 10 de outubro, por ocasião de uma coletiva de imprensa do PP que anunciava o repúdio a qualquer mediação, o porta-voz do partido, Pablo Casado, advertia o presidente catalão de que ele poderia “acabar como Companys”,5 fuzilado pelos franquistas em 1940. Uma semana depois, ocorreram as primeiras prisões, de Jordi Sánchez e Jordi Cuixart, presidentes de duas associações civis pró-independência (Assemblea Nacional de Catalunya e Òmnium Cultural), acusados de sedição.
Um fator é preocupante: por que o rei entrou no jogo da tensão discursando publicamente para pedir ao governo de Rajoy “o restabelecimento da ordem constitucional”? A Constituição limita as manifestações do monarca, que não tem autoridade sobre assuntos de política interna (seu pai interferiu duas vezes pelo rádio, mas não para defender um partido contra o outro). Agindo assim, Felipe VI dá crédito à ideia de que a monarquia entrou na órbita do PP (do qual nunca esteve muito longe). A escolha de uma retórica agressiva e de um pano de fundo repleto de significados (o rei falou diante do retrato de seu ancestral Carlos III, que impôs o castelhano como língua única a todo o território no século XVIII) contribuiu para esquentar ainda mais os ânimos.
A estratégia da tensão de Rajoy responde mais à necessidade de salvar seu partido que ao desejo de resolver a questão da Catalunha. Da anulação de catorze artigos do estatuto de autonomia catalã em 2010 aos acontecimentos mais recentes, sua teimosia em agir como aprendiz de feiticeiro num país mal curado das feridas da guerra civil ajudou a legitimar a opção separatista, que, há pouco tempo, contava com a adesão de apenas 12% do povo da Catalunha.6 Depois que o movimento social de 2011 falhou em impulsionar a mudança política necessária e que a longa crise parlamentar de 2015-2016 terminou com a volta do governo anterior, o desafio catalão representa uma ameaça… mas também uma oportunidade: apaziguar as tensões que dilaceram uma sociedade espanhola plenamente democrática, porém entravada por uma Constituição obsoleta. Para tanto, será necessário olhar além da atualidade imediata… Mas isso ainda é possível?
*Sébastien Bauer é diretor da revista catalã Quadern de les Idees, les Arts i les Lletres e professor assistente da Toulouse Business School.