Cristropicalismo: a reimaginação do moderno no Brasil contemporâneo
O lançamento da nova versão de “Deus cuida de mim”, música recriada pelo pastor e estrela gospel Kleber Lucas e o cantor e compositor Caetano Veloso, em dezembro de 2022, suscitou indagação pública sobre o sentido da parceria
O lançamento da nova versão de “Deus cuida de mim”, música recriada pelo pastor e estrela gospel Kleber Lucas e o cantor e compositor Caetano Veloso, em dezembro de 2022, suscitou indagação pública sobre o sentido da parceria. Ao nosso ver, esses questionamentos têm relação com o fato de que os dois artistas se comunicam com audiências que são percebidas como incomunicáveis uma com a outra e ao mesmo tempo encenam duas faces bem distintas do que seria o popular.
Interessa-nos neste artigo evidenciar que a parceria musical interpela a crença compartilhada na incompatibilidade do moderno com a presença pública do religioso. Essa parceria instiga a refletir ainda sobre a constituição do moderno no Brasil por artifícios linguísticos que recriam o religioso, transmutando-o em cultura. É irônico e revelador que o mesmo Caetano que canta, em sua “Milagre do povo”, de 2008, “Quem é ateu e viu milagres como eu/ Sabe que os deuses sem Deus/ Não cessam de brotar, nem cansam de esperar/”, atualize a promessa do tropicalismo gravando um louvor.
“Eu acho que foi Deus!”
“Deus cuida de mim”, lançada originalmente em 1999, é um dos maiores sucessos da carreira solo de Kleber. O pastor, convertido numa igreja neopentecostal que promovia evangelismo nas ruas por meio da música e mais tarde fundou a Soul Igreja Batista, é doutorando em História na Universidade Federal do Rio de Janeiro e tem uma bem-sucedida carreira junto ao segmento gospel, a qual lhe rendeu um Grammy Latino em 2013. Suas canções marcam presença em um leque abrangente de pequenas, médias e grandes igrejas evangélicas espalhadas por todo o Brasil.
Em 2022, na contramão da cobiça pelo chamado ‘voto evangélico’, Kleber fez coro com Leonardo Gonçalves, outro conhecido cantor gospel, em crítica da “instrumentalização da religião para fins políticos e da política para avançar uma agenda religiosa”. A parceria de Kleber com Caetano se insere nessas disputas que têm cercado as relações de evangélicos com a política, num momento em que se renova seu lugar no espaço público brasileiro. Ele foi, além disso, um dos artistas que se apresentaram no Festival do Futuro, durante a posse de Lula.
Disponível em todas as plataformas de música na noite de 4 de dezembro de 2022, o clipe da mais nova versão do sucesso de Kleber foi lançado em primeira mão no Show da Vida, quadro do programa dominical Fantástico, com de uma conversa com eles na casa de Caetano. Nessa conversa, Caetano fala do catolicismo de sua família de origem, lembra as novenas da mãe, Dona Canô, em Santo Amaro da Purificação, Bahia, fala da sua disposição antirreligiosa quando jovem e da religião de seu filho, Zeca, músico e frequentador da Igreja Universal do Reino de Deus, denominação neopentecostal liderada pelo bispo Edir Macedo. A conversa muda quando o artista, interrogado sobre a inspiração para o trabalho com Kleber, solta que só pode ter sido inspiração divina: “Eu acho que foi Deus!”, responde o artista baiano sorrindo, surpreso com a própria declaração. “Realmente, é a única coisa que posso responder”.
Religião, expressões artísticas e a deificação do popular
Em reportagem sobre a parceria do tropicalista com o pastor protestante para a Folha de S. Paulo, Anna Virginia Balloussier recupera uma entrevista que Caetano deu em 2011 à revista Serafina. Falando sobre seus filhos Zeca e Tom frequentarem a Igreja Universal, o artista contou que ia aos cultos assisti-los tocar e era bem recebido. Então refletiu: “Minha geração teve que romper com a religiosidade imposta, a deles teve que recuperar a religiosidade perdida”.
Nascido nos anos 1940, Caetano pertence a uma geração que cresceu sob a hegemonia católica. Mesmo na sua Bahia, as religiões afro, o kardecismo e o protestantismo histórico tinham no catolicismo uma espécie de esquema matricial no qual as diferenças eram combinadas sem abalar fosse a lógica, fosse linguagem que as punha em relação. Já seus filhos Zeca e Tom, nascidos nos anos 1990, conheceram o neopentecostalismo em uma configuração social marcada pelo pluralismo religioso, resultante de um processo de arrefecimento da hegemonia católica e ascensão dos direitos humanos ao papel que antes que cabia ao catolicismo, até então a matriz brasileira da ideia de universalidade e organizador das diferenças.
Em uma dimensão, Caetano foi sensível às mudanças na sociedade brasileira. Um dia antes do lançamento do seu trabalho com Kleber, ele postou no Twitter que “não está vendo o Brasil quem despreza os pentecostais e os neopentecostais, que são maioria entre os pobres e pretos, sobretudo entre pretas pobres, e produzem o gênero musical mais buscado depois do chamado sertanejo”. Em outro plano, fez funcionar o modus operandi tropicalista, postulando-se como mediador e, consequentemente, chancelador de expressões culturais proscritas pelo ‘bom gosto’ das elites culturais nacionais.
Podemos remontar essa trajetória lembrando as parcerias de Caetano com o romantismo de Peninha, considerado “brega”, o apadrinhamento de cantoras do funk das favelas cariocas e a homenagem à sertaneja e interiorana Marília Mendonça, em faixa de seu mais recente trabalho. Expressões artísticas, a música inclusa, já tinham se mostrado eficazes para a construção de pontes estéticas e mercadológicas, revelando às elites culturais nacionais o talento, a sensibilidade e as imaginações de parcela de uma população à qual elas eram alheias. A novidade que porta a parceria de Caetano com Kleber é a pretensão de produzir conexões que as incitem a reconhecer a religiosidade desse “outro” desconhecido e de transmutá-la em arte.
É bem estabelecido o entendimento de que a tensão acerca das religiosidades tradicionais e/ou populares brasileiras com as proposições secularistas da nossa intelectualidade foi em algum grau resolvida com a culturalização do religioso: quando “o afro”, “o indígena”, “o campesinato”, “o suburbano”, “o imigrante”, “o periférico” são imaginados como aqueles creem e fazem em nome do que creem, fazem porque têm uma cultura, a qual é alvo de respeito e salvaguarda. Da construção inaugural do patrimônio artístico e arquitetônico nacional em torno da arte barroca católica até as inscrições de bens culturais de natureza imaterial no Inventário Nacional de Referências Culturais, a religião “do outro” – geralmente dito como não moderno – é interpretada pelo Estado e por parte de suas elites culturais como expressões de uma generalidade popular que traduz imaginações em artefatos, músicas, ritos, saberes e modos de fazer.
Em resumo, a culturalização da religiosidade desses “outros nacionais” foi possível graças à percepção de que ela tinha um caráter não moderno e antissistêmico. Mas que fazer com uma religiosidade que se autoproclama moderna e integrada aos padrões vigentes de ordem e convenção?
A versão tropicalizada de “Deus cuida de mim” marca um novo momento político e cultural no Brasil. Já se sabe que os evangélicos vêm ganhando presença no espaço público nacional e, segundo projeções do demógrafo José Eustáquio Diniz Alves, podem vir a superar em número o contingente que se declara católico. Seria chegada a hora, então, de reconhecer os evangélicos como agentes culturais, igualmente capazes de traduzir a alma popular em bens artísticos.
Com sua parceria, Kleber e Caetano se lançam como artífices dessa operação. Para traduzir a alma popular de um Brasil que se refez plural, usam uma linguagem na qual os afetos, sejam eles prosaicos, associados à ordem do social e material, sejam sublimes, associados ao imaterial e metafísico, adquirem forma reconhecível como religião e como arte pela intelectualidade nacional. Com isso, acomodam a música gospel na convenção da modernidade nacional e dissolvem a percepção dos evangélicos como uma ameaça à sociedade secularizada, que teria emergido pari passu ao processo de culturalização do catolicismo e laicização do Estado.