Crítica ao artigo sobre ambientalismo empresarial
O texto se utiliza de exemplos que parecem mais legitimar o atual modelo de desenvolvimento do que questioná-lo. O autor sugere que as empresas direta ou indiretamente mencionadas praticam uma boa gestão ambiental e social, o que é bastante questionável
Em agosto de 2007, tive a grata surpresa de encontrar o Le Monde Diplomatique Brasil nas bancas. Eu já era leitor da versão francesa online e fiquei muito contente diante da perspectiva de ter acesso a textos com a mesma qualidade crítica direcionados aos problemas brasileiros. Entretanto, fiquei muito decepcionado com o artigo “Ambientalismo empresarial”, de Ricardo Abramovay, publicado na edição do mês de outubro. O artigo não apenas carece do olhar crítico que caracteriza o periódico, como também se utiliza de explicações teóricas e exemplos que parecem mais legitimar o atual modelo de desenvolvimento do que questioná-lo. Ao longo do texto, Abramovay apresenta o ambientalismo corporativo como sendo um processo já em curso e sugere que as empresas estão adotando voluntariamente ações efetivas para reduzir seu impacto social e ambiental. Para tentar explicar esse fenômeno, o autor se utiliza de “dois férteis programas de pesquisa”: um americano e um francês. Não pretendo aqui criticar os trabalhos mencionados, mas questiono a decisão do autor de se basear apenas em estudos realizados em países centrais na economia global. Essa crítica é, ao mesmo tempo, política e metodológica.
Visões alternativas
Do ponto de vista político, acredito que uma publicação que se propõe a lançar “um novo olhar” sobre determinados problemas deveria buscar visões alternativas e valorizar pensadores e pesquisadores de países africanos, asiáticos e, no nosso caso particular, latino-americanos. Felizmente, já existem iniciativas que tentam criar explicações para o ambientalismo empresarial baseadas na realidade do Brasil1. Certamente, tais trabalhos não são tão bem divulgados em nosso país quanto as obras produzidas na Europa e nos Estados Unidos, mas acredito que a promoção desses estudos seria mais consistente com a missão social de Le Monde Diplomatique Brasil.
Quanto à perspectiva metodológica, as teorias mencionadas no artigo foram criadas a partir da realidade estadunidense e francesa, e não necessariamente se aplicam ao caso brasileiro. Estudos sobre práticas ambientais corporativas normalmente consideram aspectos como capacidade institucional do governo, acesso das empresas a financiamento e tecnologia, consciência ambiental da população, poder aquisitivo dos consumidores, ideologia e grau de profissionalização dos movimentos sociais, entre outros. Poucos desses fatores no Brasil são semelhantes àqueles encontrados na França e nos Estados Unidos e, portanto, dificilmente as teorias desenvolvidas para o contexto desses países serão válidas aqui.
Porém, mais preocupante do que os referenciais teóricos usados no artigo são os exemplos que o autor menciona como casos positivos de ambientalismo empresarial.
Ao escolher a moratória de compra de soja da Amazônia e o Instituto Carvão Cidadão, o autor sugere ao leitor, mesmo que implicitamente, que as empresas que fazem parte desses arranjos (algumas das quais são mencionadas nominalmente) praticam uma boa gestão ambiental e social, o que é altamente questionável.
O desmatamento é apenas uma das questões problemáticas relativas à monocultura da soja; acredito que um texto crítico sobre essa atividade deveria abordar aspectos como concentração fundiária, uso de agrotóxicos e plantação de variedades geneticamente modificadas. A moratória na Amazônia parece mais um caso de maquiagem verde, uma vez que não é central ao negócio das empresas. A Amazônia, por enquanto, é marginal na política de expansão da soja, que vem concentrando seus investimentos no que resta do Cerrado. Talvez esse cenário (e a boa vontade das empresas) mude com o fim das obras de infra-estrutura do PAC e com a redução dos custos de transporte na Amazônia, mas só saberemos isso no futuro. Ao contrário do que ocorre com a Floresta Amazônica, não é divulgado um acompanhamento sistemático da destruição do Cerrado e, dessa forma, não consegui localizar dados que mostrassem claramente quanto a soja contribui diretamente para o seu desmatamento.
As informações que consegui foram:
• Segundo dados do Ministério da Agricultura, em 2005 o Centro-Oeste detinha 48% da área plantada de soja no país (Mato Grosso, 27%, Goiás, 12%, e Mato Grosso do Sul, 9%). O Paraná, estado mais tradicional na produção da soja, correspondia a 18%2.
• Em um trabalho apresentado em 2003, uma equipe do Inpe monitorou por satélite a transformação do uso do solo em três municípios do Mato Grosso. Os autores constataram que entre os biênios 1986-1987 e 2000-2001 a área de Cerrado ocupado pela soja passou de 2,5% para 19,2%; por outro lado, não houve nenhuma derrubada de floresta para plantação de soja. Esses dados sugerem uma preferência natural dos plantadores de soja pelo Cerrado3.
• Pesquisa realizada pela Conservação Internacional Brasil sugere que a expansão da soja já superou a pecuária como principal indutor da destruição do Cerrado. A partir de alguns pressupostos, que (os autores reconhecem) podem ser questionados, o relatório estima uma perda de cerca de 2,2 milhões de hectares de Cerrado nativo por ano e alerta para o risco de o bioma desaparecer até 20304.
Vale lembrar que, mesmo que as plantações de soja se mantenham apenas no Centro-Oeste, ainda existe o processo de ocupação das áreas de pecuária, que se desloca, então, para regiões recém-desmatadas na Amazônia. Com base nessa realidade, uma ação efetiva de responsabilidade ambiental das empresas de soja seria a moratória na expansão agrícola de forma geral, ou a expansão somente para áreas reconhecidas como degradadas e aptas ao plantio de soja (esse reconhecimento teria de ter o aval dos órgãos ambientais federais e movimentos sociais). Qualquer outra iniciativa com relação ao desmatamento soa como cortina de fumaça.
O segundo “caso exemplar” mencionado pelo autor me parece ainda mais questionável. Ele cita o Instituto Carvão Cidadão (ICC), mas dados sobre algumas empresas filiadas ao Instituto indicam práticas nem sempre adequadas do ponto de vista social e ambiental. Entre 2004 e 2006, algumas empresas ligadas ao ICC foram autuadas pelo Ministério do Trabalho por comprar carvão de carvoarias acusadas de praticar trabalho escravo5. Do ponto de vista da “responsabilidade ambiental”, houve ainda companhias multadas em 2005 pelo Ibama por não comprovarem a origem legal do carvão vegetal e não cumprirem a reposição florestal6.
Marketing ambiental?
Diante desses fatos, como acreditar que essas empresas têm alguma preocupação real com seus trabalhadores e o meio ambiente? O instituto, cujo site apresenta um estatuto social datado de 20047, pode ser considerado mais do que uma simples estratégia de marketing ambiental? Muito me impressionou que Le Monde Diplomatique Brasil mencionasse esse instituto sem as devidas ressalvas. Pensadores que defendem o modelo de desenvolvimento vigente e a ideologia neoliberal têm por hábito afirmar, com relação ao campo ambiental, que o Estado não é dotado de capacidade técnica ou institucional para tomar medidas adequadas. Com base nessa argumentação, essas pessoas defendem a auto-regulação e as iniciativas voluntárias de “responsabilidade corporativa” como o melhor instrumento para a gestão ambiental.
Não conheço a realidade do “ambientalismo empresarial” na França e nos Estados Unidos, mas tenho a forte impressão de que é algo ainda muito incipiente no Brasil. Acredito que até haja empresas no país que busquem minimizar efetivamente seus impactos sobre a sociedade e o meio ambiente, mas me parecem ser ainda muito poucas. Nesse sentido, não incluiria setores problemáticos (como soja e carvão vegetal) nesse seleto grupo sem uma pesquisa muito cuidadosa. Confio na seriedade da equipe de Le Monde Diplomatique Brasil e, por acreditar no projeto de um jornalismo crítico e independente, redigi esta crítica.
*Bruno Milanez é pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz).