Cuba quer o mercado, mas sem capitalismo
O presidente Raul Castro anunciou que deixará suas funções em 2018. Cotado para substituí-lo, o primeiro vice-presidente, Miguel Díaz-Canel, nasceu um ano antes da chegada dos guerrilheiros a Havana, em 1959. Uma transição como essa seria uma pequena revolução, logo após outra: a que Castro tentou impulsar com a “atualização” do modelo econômico cubano
Berimbau de boca, fachadas degradadas, estéticas ultrapassadas: para a maioria dos observadores, a vida cotidiana cubana ilustra a obsolescência de sua retórica política. Comunista, a ilha parece parada no tempo. O cheiro de naftalina só é interrompido durante o tempo que dura uma fumarola de parafina: aos 86 anos, o presidente Raul Castro raramente inicia um discurso sem assoprar velinhas. “Os 55 anos da proclamação do caráter socialista da revolução”, na abertura do VII Congresso do Partido Comunista Cubano (PCC), em 16 de abril de 2016; “o 161º aniversário de nascimento de nosso herói nacional, José Martí”, na inauguração do Porto de Mariel, em 27 de janeiro de 2014; “os 55 anos do triunfo da revolução”, no encerramento da 8ª legislatura da Assembleia Nacional, em 21 de dezembro de 2013.
Mas, se por um lado na Praça da Revolução, em Havana, com seus imensos painéis que marcam a entrada de Camilo Cienfuegos na cidade, os rostos dos heróis da Sierra Maestra parecem onipresentes, a questão é menos invocar um passado revolucionário que dar concretude a uma atualidade. A ilha, sem dúvida, é datada, mas também vive o presente: o de uma revolução ainda em disputa.
Há quase sessenta anos de seu “triunfo”, resta saber como os “barbudos” apreciariam a evolução do país e daqueles pelos quais deram a vida. Um Ernesto “Che” Guevara ressuscitado reconheceria a terra que o acolheu? A continuidade da luta o abalaria tanto quanto a mudança? Não há tanta certeza, já que um jornalista que percorreu a ilha em 2011 encontrou poucas marcas – imagine seis anos depois.
Museu da Revolução, Havana. As salas do antigo palácio presidencial relatam, ano após ano, o trajeto da guerrilha e suas investidas: ataque contra o La Moncada, em 26 de julho de 1953; embarque no Granma, em 26 de novembro de 1956; chegada vitoriosa de Fidel Castro a Havana no dia 8 de janeiro de 1959… Relatos de batalhas épicas diante dos conflitos da Guerra Fria; apenas uma peça foi consagrada às questões econômicas e sociais. E mais: está em restauração, motivo pelo qual os visitantes são incitados a passar rapidamente por ela.
É preciso passar por cima da barreira de segurança – com o acordo prévio de uma responsável que saiu de sua letargia – para se aproximar de um dos painéis expostos, atravessados, contra uma parede. Aí está a manchete da edição de 16 de março de 1968 do Granma, o órgão oficial do PCC: “Vamos deixar a atmosfera leve, limpar tudo, vamos criar um verdadeiro povo trabalhador”, explica Fidel Castro, em letras maiúsculas. Mais abaixo, o jornal detalha as medidas da grande “ofensiva revolucionária” que o dirigente acabava de anunciar: “As autoridades procedem com a nacionalização de todos os comércios privados que restam no país. […] Não apenas todos os bares privados foram expropriados, como foram – até mesmo os estatais – fechados”. “Temos de ensinar ao povo que a única coisa que lhe permite usufruir o que é necessário, o que pode enriquecê-lo, é seu trabalho, seu suor, seus esforços”, conclui Fidel.
A dois passos dos fundos do museu onde, no mês de abril, turistas acalorados contemplam relíquias da guerrilha, os serventes do Chachachá trabalham ao som de um cover de Madonna: “’Cause we are living in a material world. And I am a material girl…”. Esse restaurante privado – um paladar, como são designados esses estabelecimentos – abriu há cerca de dezoito meses. Uma dezena de funcionários serve pratos que agradariam ao paladar mais delicado: filé mignon de porco envolto em presunto espanhol (R$ 52), peixe fresco grelhado ao alho (R$ 49), lagosta na chapa (R$ 71). Aqui, os preços são fixados em peso conversível (CUC), uma divisa inicialmente reservada ao setor turístico, mas atualmente utilizada por todos. Ao lado dessa moeda “forte” alinhada ao dólar, circula outra: o peso tradicional, vinte vezes menos valorizado. Enquanto o salário mínimo cubano se estabeleceu em 225 pesos (R$ 30), tomar um mojito no Chachachá custa 5 CUCs (R$ 17).
Em 2010, não passavam de cem os paladares em Havana. Hoje, são mais de 2 mil. “Uma boa dezena registra, sem dúvida, números superiores a US$ 1 milhão”, assegura um conhecedor do setor hoteleiro, que, como muitos de nossos interlocutores, considera a discrição uma premissa da conversa.1
Regras estritas, pessoas flexíveis
A explicação para esse abalo? A “atualização do socialismo cubano”, um processo de reformas lançado por Raul Castro em sua chegada à presidência (como interino em 2006 e em seguida como eleito em 2008) e validado pelo Congresso de 2011.2 Proclamando alinhamento ao irmão mais velho, Raul trabalhou para a multiplicação de “trabalhadores autônomos”, atualmente convidados a participar da solene parada do 1º de Maio. Esses empreendedores tropicais podem exercer uma das 201 profissões autorizadas, principalmente manuais: luthier, pedreiro, locador de equipamentos de festas, palhaço, vendedor ambulante de produtos agrícolas, passeador de cachorros, gerente ou dono de restaurante.
Fidel desejava acabar com o setor privado? O número de cuentapropistas passou de cerca de 150 mil em 2010 para mais de 500 mil em 2016, e o setor privado (trabalhadores por conta própria e cooperativas) representa atualmente 30% da população ativa (para um total de 5 milhões de pessoas).
Os centros das cidades agora se deparam com algo raro até então. Havana descobre seus primeiros (pequenos) engarrafamentos, notadamente no Malecón, a célebre avenida à beira-mar. Longe da capital, o trânsito também se encontra em uma nova situação. A rua principal de Cárdenas, mais a leste, parece uma colmeia onde táxis-bicicletas e charretes disputam as faixas de asfalto que contornam os buracos. Em Trinidad, ao lado do Caribe, o número de restaurantes se multiplicou por nove desde 2010. Não há sequer um térreo dos edifícios do centro que não tenha algo à venda: lembrancinhas de couro, de madeira, bijuterias, estátuas de índios Sioux (!), quadros difíceis de distinguir uns dos outros. E, claro, a figura de Che por toda parte: xícaras, chapéus, camisetas, cinzeiros. “Com Raul, o país mudou mais rápido que em cinquenta anos de revolução”, concluem todas as pessoas que entrevistamos. Porque a “atualização” não se limita aos cuentapropistas.
Sob as árvores que margeiam o Paseo del Prado, uma avenida sombreada do centro da capital, cartazes chamam atenção: “Vende-se casa de dois andares: é chegar e se instalar, US$ 25 mil”, “Vende-se apartamento capitalista, centro de Havana, US$ 18 mil”. Desde 2011, os cubanos podem comprar e vender suas residências, até as “capitalistas”, ou seja, as construídas antes da revolução (“uma garantia de qualidade”, explicam). Assim como todas as profissões atualmente autorizadas eram praticadas discretamente antes de 2011, o mercado imobiliário não apareceu apenas neste momento. A diferença é que agora está legalizado e regularizado: apenas residentes em Cuba podem obter um título de propriedade. Mas, se as regras são estritas, as pessoas são flexíveis.
“Onde posso encontrar um agente imobiliário?”, perguntamos a um pequeno grupo reunido em torno de uma árvore nesse calor primaveral. “Aqui mesmo, comigo”, responde uma jovem estendendo seu cartão: a profissão figura em 148º lugar entre as recentemente autorizadas. Em um caderninho, ela escreve as propostas de compra e venda de pessoas que vêm ao seu encontro nesse domingo à tarde. O pedido de um estrangeiro buscando adquirir algo parece não surpreendê-la. Além disso, dispõe de uma solução para essa dificuldade: “Basta casar-se com uma cubana”. O custo da operação: “cerca de US$ 2,5 mil”. Para garantir os benefícios em termos de propriedade imobiliária, a união precisa durar cinco anos. E nossa interlocutora acrescenta: “mas a jovem que será apresentada para isso será tão linda, que você não vai querer deixá-la”.
“US$ 2,5 mil? Ela está te gozando”, diverte-se Fernando, artista, com uma gargalhada que faz vibrar sua barriga. “A maioria das pessoas se casaria gratuitamente! Você tem ideia do dinheiro que uma pessoa pode fazer em Cuba tendo dupla nacionalidade?” Em outubro de 2012, Havana aumentou as restrições de viagens internacionais aos residentes.3 Os cubanos com dupla nacionalidade, contudo, podem aproveitar-se dela e ir e vir entre a França e a ilha, por exemplo, com as malas cheias de bens de consumo que vendem a preço de ouro. “Há uma grande fatia de pessoas que vive disso – muito confortavelmente, aliás”, esclarece Fernando.
Logo após a aproximação diplomática entre Washington e Havana empreendida por Raul Castro e Barack Obama a partir de 2015,4 a sucessão de “primeiros fatos históricos” é impressionante: primeiro show dos Rolling Stones; primeiro lançamento de um filme hollywoodiano blockbuster (Velozes e furiosos 8); construção do primeiro hotel 5 estrelas “plus”; primeiro desfile de moda (organizado por Chanel e Karl Lagerfeld); primeira reserva de quarto feita pelo Airbnb, atualmente operando na ilha; primeira passagem de um cruzeiro norte-americano desde 1959. Em 1961, os revolucionários repeliam a invasão de mercenários financiada por Washington na Baía dos Porcos. Em 2017, a revista How to Spend It concluía que o “monumental ano de 2016” havia transmitido sua mensagem: “A invasão gringa começou oficialmente”.5
Bem-vindos ao Free Market Havana Tour
No ano passado, a ilha recebeu 4 milhões de turistas, um recorde que colocou o setor em terceiro lugar na fonte de divisas (depois da venda de serviços, notadamente médicos, e da remessa de dinheiro). Enquanto a atividade cresce de 5% a 10% há vinte anos, 2016 foi marcado por uma explosão no número de turistas provenientes dos Estados Unidos: 615 mil no total (dos quais 329 mil são cubano-americanos), número 74% maior em relação a 2015. O ano de 2017 pode ser marcado por um recuo: Donald Trump prometeu revogar algumas medidas de abertura tomadas por seu predecessor, e o furacão Irma devastou uma parte das infraestruturas da costa norte em setembro. Mas os turistas vão ignorar por muito tempo os prazeres que a ilha promete?
“A qualidade da experiência que você pode viver em Cuba é de primeira ordem”, explica um especialista do setor à jornalista do How to Spend It. Pois nada é mais agradável aos turistas refinados que misturar praias paradisíacas e conteúdo cultural. E, nesse quesito, a revolução trabalhou para encantar seus futuros visitantes: “Se você se interessa pelo afrocentrismo, você pode encontrar um historiador respeitado, um representante importante da cena hip-hop ou um militante da causa das mulheres negras nos bairros populares. […] Especialistas norte-americanos consideram até experiências LGBT inteligentes, como um jantar com o primeiro membro transexual da Assembleia”. De seu lado, a agência de viagem OnCuba Travel anuncia o lançamento próximo do Free Market Havana Tour, uma visita guiada pelos lugares que homenageiam o deus Mercado (diversas manifestações erigidas como encarnações do “espírito empreendedor”; butiques de luxo; centros de comércio e negócios…).
Alguns meses antes do Congresso de 2011, José Azel, pesquisador da Universidade de Miami, mostrou-se pouco convencido sobre as reformas anunciadas por Raul Castro: “Está claro que poucas coisas vão mudar”.6 Contudo…
“Raul fez muitas coisas, mas desde a visita de Obama, em março de 2016, observamos o contrário do que se esperava, como o congelamento do processo de aproximação, de uma parte e de outra do Estreito da Flórida.” O economista que nos recebe é conhecido por ter sido influente conselheiro do presidente em 2011; alguns até mesmo o apresentam como um dos grandes inspiradores da abertura econômica. Cinco anos depois, Omar Everleny Pérez foi expulso do Centro de Estudos de Economia da Universidade de Havana com a justificativa de que discutia muito com os jornalistas estrangeiros. Sua saída ilustra principalmente a recuperação das forças dos oponentes às reformas de Raul Castro – no interior do aparelho estatal – para entravar seus desejos, pois o contexto geral está degradado.
“Obama deveria ter ido mais longe”, prossegue Pérez. “Quanto mais tivesse avançado nas medidas, mais difícil seria para Trump voltar atrás.” Se a chegada do bilionário nova-iorquino à Casa Branca não traz bons agouros para a situação em Cuba, as dificuldades da ilha já se acumulavam em seu interior antes mesmo da passagem do Irma. No campo econômico, notadamente: em 2016, o país sofreu uma recessão (–0,9%), a primeira desde o “período especial em tempos de paz” que se sucedeu à dissolução do bloco soviético e provocou uma queda de 35% do PIB entre 1991 e 1994. “É a história de uma morte anunciada: era preciso suspeitar que nossa dependência em relação à Venezuela teria consequências em caso de problemas naquele país.”
“Aqui, lutamos contra a riqueza”
Queda do petróleo, crise política interminável: a produção de riqueza venezuelana se reduziu a um quinto em 2016, enquanto a inflação ultrapassou 700%. Caracas estava vendendo 100 mil barris de petróleo por dia a Cuba com preços subvencionados, e essas remessas se reduziram em 40% em 2016. É preciso, assim, economizar energia: alguns escritórios do governo fecham mais cedo, abrem-se janelas para ventilar em vez de ligar o ar-condicionado, a iluminação pública diminuiu (ainda mais). “Todos os gastos não essenciais devem ser cortados”, prevenia Raul Castro em 2016. E é justo o setor do turismo, em crescimento, que se caracteriza pela voracidade energética: conversar com “uma militante pela causa da mulher negra em bairros populares”, certo, mas só se o encontro for agraciado com o zumbido de um ventilador e acompanhado de um mojito bem fresco, com muito gelo!
A Venezuela constitui, além disso, o principal destino dos serviços exportados por Havana, notadamente os médicos (30 mil em 2016). Em 2014, o economista Carmelo Mesa-Lago concluía que “o valor combinado da relação econômica [de Cuba] com a Venezuela” chegava a 21% do PIB cubano.7 Outras estimativas calculam esse índice em 25%. Se o Brasil acolhe um pouco mais de 4 mil médicos cubanos, a diversificação de “oportunidades” se anuncia delicada. Sem surpreender, a oposição venezuelana proclamou que romperia com a ilha, denunciando o presidente Nicolás Maduro como marionete de Havana.
“Sabíamos de tudo isso”, retoma Pérez. “É justamente uma das razões pelas quais é preciso avançar com as reformas, mas Raul parou no meio do caminho com as medidas iniciais que ele lançou, chamando outros a colherem seus frutos. Mas não: procede-se a conta-gotas, e outros problemas aparecem.” Como as penúrias e as apropriações.
Se por um lado atualmente é legal abrir um restaurante ou vender pizzas na rua, por outro o Estado não previu uma cadeia de abastecimento específica para o setor alimentício. Os paladares esvaziam, assim, lojas e supermercados. As consequências de um contexto de tensão desse tipo são conhecidas: alta dos preços, o que obriga certos cubanos a apertar (ainda mais) o cinto; especulação, pois se ganha mais revendendo ovos que trabalhando como professor; e penúria, como em agosto de 2014 ou abril de 2016, quando se tornou complicado encontrar cerveja na ilha.
Enquanto isso, o telefone de Pérez toca três vezes. Ele termina por atender. A conversa é rápida. Ele ajeita o aparelho chacoalhando a cabeça, com a expressão consternada: “Eu trabalho com um jovem, brilhante. Fazemos acordos sobre os prazos dos trabalhos que ele precisa me entregar, e sempre é a mesma coisa: nunca dá certo. Seu lance é a econometria, mas ele ganha a vida alugando quartos aos turistas. Eu tento recuperá-lo, tento fazê-lo não deixar a economia. Mas regularmente ele me liga: ‘Escute, sinto muito, mas tenho um casal de norte-americanos chegando esta noite. Será que é possível estender o prazo?’. Eu me aborreço, mas depois relaxo. Só que, para o país, é uma perda considerável”.
Ninguém se imagina vivendo apenas do salário em Cuba. Se o paladar Chachachá pratica preços sob medida para os turistas, um mojito custa do mesmo jeito 1 CUC nos bairros populares de Havana, ou seja, um oitavo do salário mínimo mensal. Cada um deve, assim, “se virar” imaginando as mais diversas combinações de renda possíveis8 ou se aproximar de setores de atividade mais lucrativos: já são incontáveis os titulares de um diploma de engenheiro que trabalham como garçons ou emigram, enquanto o país destina cerca de 25% de seu orçamento à educação.
Aumentar os salários figura entre as numerosas prioridades definidas pelo presidente. Insuflar as remunerações sem elevar a produção de bens e serviços pode conduzir, por outro lado, ao aumento da inflação. Além disso, Cuba consiste em um coquetel singular de serviços sociais dignos de países avançados e de uma produtividade regulada com os países em desenvolvimento. Aumentar a primeira para “salvar” a segunda – o projeto proposto por Castro – implica cortar efetivos do Estado, convidando os cubanos a ingressar no setor privado – considerado por alguns dirigentes do PCC um dos inimigos jurados da revolução.
“O problema principal é a rigidez ideológica de uma parte do poder”, conclui Pérez. “O país está em recessão, mas a principal inquietude é que as pessoas possam construir um patrimônio. Como diz o economista Pedro Monreal, enquanto a maior parte dos países luta contra a pobreza, Cuba luta contra a riqueza!” O texto programático do Congresso de 2016, os lineamientos, caracterizam-se por certa rigidez em relação ao anterior. “No seio das novas formas de gestão não estatal, a concentração da propriedade por pessoas jurídicas ou naturais não será permitida”, proclamava o documento de 2011 – anúncio reforçado pelo parágrafo seguinte, que igualmente proíbe “a concentração de renda”. Durante a sessão extraordinária da Assembleia Nacional de junho de 2017, dedicada à discussão desses lineamientos, o tema mais discutido foi – de longe – a “ameaça” da acumulação.
Trata-se unicamente de uma manifestação do monolitismo ideológico cubano? Da autorização das remunerações baseadas na produtividade ao crescimento das somas que os cubano-americanos podem enviar a seus próximos, o período atual se traduz por um crescimento das desigualdades assumido pelo presidente. Raul Castro reformula à sua maneira os clássicos da teoria socialista: “De cada um de acordo com suas capacidades e para cada um segundo suas necessidades” se transformou em “De cada um de acordo com suas capacidades para cada um segundo seu trabalho” durante um discurso diante do PCC no dia 17 de abril de 2016. Não mais em Cuba que em outros lugares, o trabalho não explica tudo. Entre 70% e 80% dos cuentapropistas lançaram seu “negócio” graças ao envio de dinheiro de seus parentes exilados em Miami: em geral são oriundos de famílias mais abastadas, inquietas com o projeto socialista. Tanto que o pequeno patronato emergente deriva dos setores mais hostis ao projeto político da revolução. Raramente se vê um negro nesse meio.
“Aqui, há pequenos e médios empreendedores até a ofensiva revolucionária do 13 de Março de 1968”, lembra Rafael Hernández, diretor da revista Temas, que acaba de dedicar uma edição à questão das desigualdades. “Entre 1º de janeiro de 1959 e essa data, ninguém imaginaria dizer – nem Fidel nem Che – que o setor privado era uma ‘classe burguesa’, estranho à revolução. O que Raul fez foi reafirmar a ideia segundo a qual o setor privado não é uma célula maligna do capitalismo que teria penetrado na sociedade cubana. Após se tornar legal, apenas fez com que a atividade por conta própria, autônoma, se tornasse legítima”, completa.
O problema é que, em um contexto em que os cubanos não podem fazer valer suas competências técnicas ou científicas, eles se veem confrontados com o que a lei do mercado oferece, sem dúvida, de mais violento. “O patrão trabalha aqui?” A garçonete desse grande paladar em Trinidad reage à nossa pergunta com uma gargalhada. “Não! O patrão não está, está descansando! É melhor assim, porque, quando ele vem, é apenas para dar ordens.” E seus horários? Seguimos com as perguntas. A jovem vira os olhos para o céu.
“O setor privado se desenvolve respeitando a lei, notadamente a relacionada aos direitos do trabalhador?”, continua Hernández. “Isso é um problema. Se você interroga uma pessoa que trabalha em um paladar, é bem possível que ela explique que o patrão pede que ela trabalhe mais de oito horas, que a regra do salário correspondente às horas de trabalho não é respeitada, que o patrão não gosta de empregar negros etc.” A solução? “Fazer valer nossa lei trabalhista, mas sem asfixiar o setor privado por controles intempestivos. Como é na França, por exemplo.”
Um setor privado sem poder político
Sem dúvida, o crescimento do setor privado termina por criar um poder que lhe abre as portas do mundo político, a ponto de, na França, a definição de “controle intempestivo” nos corredores do Palácio do Eliseu parecer vir do patronato, e não do sindicato. “Essa preocupação também temos, mas as circunstâncias em Cuba são bem diferentes. Não acredito que exista um só integrante do setor privado capaz de influenciar as autoridades políticas neste momento, o que não significa que futuramente não será um problema”, admite Hernández.
Assim, duas lógicas se opõem na ilha. Engenheiro em física nuclear e motorista de táxi, Javier resume a primeira nestes termos: “Ontem, era a URSS que financiava nossas conquistas socialistas. Hoje, é o turismo e os pequenos empreendedores: é preciso, portanto, um pouco mais de mercado para salvar nossa revolução”. A essa análise, igualmente defendida por Raul Castro, opõe-se outra que reúne os membros mais ortodoxos do PCC e os anticastristas. Para eles, a introdução de uma dose de capitalismo não terá como principal efeito consolidar o socialismo cubano, ao contrário. Tomando a palavra diante de uma plateia de empresários desejosos de investir na ilha, Maria Contreras-Sweet, que representava o governo Obama, não se intimidava com protocolos diplomáticos: “O que vocês deveriam exportar são os valores americanos e o espírito do capitalismo”.9
Diante desse cenário, qual seria então a posição dos heróis da Sierra Maestra: ortodoxia ou reforma? Talvez julgassem a questão desprovida de sentido, lembrando-se, com o jornalista Fernando Ravsberg, que “o socialismo soviético jamais constituiu um projeto político em Cuba: tratava-se de um meio de salvar a revolução, antes de mais nada concebida como um projeto de independência nacional. Nessas condições, socialismo ou não, o combate continua”.
*Renaud Lambert é jornalista do Le Monde Diplomatique.
El paquete e você, tudo a ver!
Instalar-se diante da televisão não é necessariamente mais animador em Havana que em Paris. Boletins de informação obsequiosos do ponto de vista do poder, emissões educativas didáticas, “seleção” de programas da Telesur, que apesar de amplamente financiada pela Venezuela não é difundida ao vivo. Como fazem os cubanos?
“É simples: não assistimos à televisão”, responde Mariela. “Aqui, preferimos El Paquete (‘o pacote’). Última inovação cubana com o objetivo de contornar o bloqueio das ondas, El Paquete propõe uma seleção de artigos, boletins de informação, séries ou ainda revistas reunidas em um pen-drive USB ou um HD externo. Concebido em Miami, circula na ilha todo domingo e pode ser comprado por US$ 1 ou 2. Segundo a revista The New Yorker, trata-se da mais importante empresa privada da ilha: cerca de 45 mil “funcionários”, com números que chegam a US$ 500 mil por semana. A seleção chega à metade dos cubanos, inclusive nas zonas que dispõem de apenas algumas horas de eletricidade por dia.
A edição de 5 de junho de 2017 pesava 921 gigabites. Nela estavam diversos “ciclos de cinema” classificados por gênero (o dessa semana era “aventura”), por atores (“Bruce Willis”) e sagas (Exterminador do futuro); informação sobre o lançamento de novos games, filmes ou ainda novas tecnologias; 41 gigabites correspondiam a emissões de reality shows em espanhol e alguns em inglês; as últimas publicações de Revolico.com, um site de compra e venda de bens e serviços (inclusive prostituição); games para todos os tipos de consoles; aplicativos de smartphone; música, mangás; séries (“clássicas”, “cubanas”, “novidades”); documentários (Os grandes crimes da história; Os Estados Unidos); uma seleção de episódios do The Voice; revistas (moda, esporte, foto, tecnologia). As únicas informações políticas provinham da imprensa oficial cubana (Granma, Juventud rebelde etc.), o que talvez explique por que, apesar de ilegal, El Paquete seja tolerado.(R.L.)