Cultura Esperando Godot
Especialistas em políticas culturais fazem balanço da aplicação de recursos da Lei Aldir Blanc
O setor cultural segue no Brasil uma estagnação sem precedentes. Enquanto os recursos da Lei Aldir Blanc dão alguma segurança para parte dos trabalhadores, estruturas de trabalho fecham e profissionais mudam de ocupação. Como na peça de Samuel Beckett, “Esperando Godot”, os trabalhadores da cultura aguardam os recursos que não chegam, os espaços e empresas que abrem e fecham, e carreiras que se encerram.
Para realizar um primeiro balanço da Lei Aldir Blanc, a reportagem ouviu especialistas em políticas culturais para analisar os caminhos dos últimos dois anos de crise do setor cultural.
Mesmo com o propósito de socorrer o setor cultural impactado pela pandemia, a Lei Aldir Blanc é objeto de questionamentos enquanto solução para a crise, tendo em vista a maneira como muitos municípios e estados aplicaram os recursos, fazendo a regulamentação da lei de acordo com decisões locais. Em boa parte dos casos, foram adotados os mecanismos que julgaram mais adequados e que, no geral, repetiu o formato de editais. Existia a possibilidade de transferência direta por meio de previdência pública, o que poderia simplificar os repasses.
A necessidade de auxílio era evidente, segundo apontam os especialistas. No entanto, há críticas quanto ao formato utilizado para distribuir os recursos. Segundo Maria Alice Gouveia, mestre em Artes Plásticas pela Unesp, “as pessoas ficaram em situação financeira péssima. Havia necessidade de se dar um auxílio. Agora, esse auxílio ser feito a partir de avaliação de projeto eu acho um absurdo porque via projeto não é maneira de fazer chegar o dinheiro nas mãos de quem mais precisa”, critica.
Entrevistados ouvidos por esta série questionam o mecanismo, por exigir não só um determinado conhecimento (capital simbólico), mas habilidades com questões burocráticas, como formulários, de modo que os editais com seleção de projetos se mostraram excludentes, pois nem sempre os trabalhadores da cultura que precisam ser atendidos por políticas públicas têm familiaridade com este universo. Deste modo, as verbas não chegavam em muitos trabalhadores.
A regulamentação da Lei Aldir Blanc foi um dos principais questionamentos dos entrevistados desta reportagem. Em sua estrutura, a lei trouxe mecanismos que poderiam funcionar de um modo mais efetivo, o que ocorreu de forma desigual pelo país. “No final das contas, quem regulamentou foram os estados e municípios. E aí é que foi um dos grandes problemas, pois a falta de norma geral fez com que cada um fizesse de um jeito”, completa Cecilia.
De acordo com Humberto Cunha, o grande motivo da criação da lei Aldir Blanc não foi propriamente cultural, mas econômico, pois os votos dos parlamentares foram dados mais em preocupação com “o mercado imobiliário não sofrer a bancarrota com atrasos dos aluguéis, as companhias energéticas não deixarem de receber, do que propriamente com a cultura”, afirma o professor em Direito da Universidade de Fortaleza, onde lidera o Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais. “Dói dizer isso, mas o problema foi efetivamente emergencial, tanto que não se cobrou resultados culturais propriamente ditos, e o retorno social não foi satisfatório, pois eram apresentações em lives com pouquíssimos acessos”.
Para Humberto, a oportunidade de formar uma frente ampla em prol da cultura no Congresso foi perdida. A Lei Aldir Blanc também foi marcada por disputas de territórios, movimentos sociais, políticos e partidários. Esses usos políticos podem ter se reproduzido conforme a região, gerando conflitos locais no uso dos recursos. Gestores de muitas regiões acabaram por ignorar o caráter assistencial da lei e suas novas modalidades que não existiam antes nas leis da cultura. Quando os recursos chegaram, as secretarias acabaram fazendo editais e chamadas nos mesmos moldes que já faziam antes. “Não funcionou porque a lógica era diferente, a Aldir Blanc chega em outro contexto de pandemia e os editais continuaram os mesmos, com as mesmas regras, as mesmas burocracias”, explica Cecilia Rabêlo, presidente do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais – IBDCult.
Na análise Manoel J de Souza Neto, a questão pode ser dividida entre a legal, a moral e a política. “No sentido legal, a lei está correta, no sentido constitucional, ainda está vaga em alguns pontos, especialmente no Inciso III. Mas no sentido moral, em uma emergência causada por uma pandemia, foi um desvio perigoso tentar articular a lei Aldir Blanc com mecanismos do Sistema Nacional de Cultura (SNC) e Fundo Nacional de Cultura (FNC) para provocar politicamente os repasses por meio das secretarias dos estados e municípios, causando burocracia”, analisa o editor do Observatório da Cultura do Brasil.
Celio Turino, que contribuiu com a formulação da lei em 2020, alerta que se os repasses ficassem condicionados à adesão ao Sistema Nacional de Cultura, cerca de quatro mil municípios ficariam excluídos. “Estaria excluindo os trabalhadores e trabalhadoras”, afirma um dos criadores do programa Cultura Viva e os Pontos de Cultura.
Porém, para Cecilia Rabêlo o SNC poderia facilitar o repasse. “Em tese, o governo federal poderia ter repassado esses recursos para os fundos que existiam, estaduais ou municipais, por meio da lógica do Sistema Nacional de Cultura”. Segundo ela, o SNC existe, mas após dez anos nunca foi regulamentado. “A Constituição fala que a União vai fazer uma norma geral. Essa norma não existe até hoje”, lembra. “A Lei Aldir Blanc caiu de paraquedas, porque de fato não tinha um sistema estruturado”, avalia. O SNC previa repasses fundo a fundo (como por exemplo do Fundo Nacional de Cultura para os estaduais, e dos estaduais para os municipais), mas isso nunca aconteceu. “A Lei Aldir Blanc apareceu nesse contexto deficitário. Cada estado e município fazia do seu jeito”.
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Segundo o professor Humberto Cunha, para que fossem efetivadas as transferências de recursos, os estados e municípios acabaram por criar o que ele chamou de “sistema de escalonamento”, para garantir os repasses, foi necessário criar ferramentas de controle e burocracias excessivas, e isso teria ocorrido tanto na produção das normas no âmbito dos estados e municípios, quanto no sistema de prestação de contas. “Tudo poderia ser facilitado exatamente por causa da situação emergencial”.
Estes apontamentos questionam se a Lei Aldir Blanc, ainda que necessária, teve o melhor modelo de repasses para recursos emergenciais. Ainda segundo Manoel J de Souza Neto, “a decisão política intentou lançar uma fagulha para fazer ‘pegar no tranco’ o Sistema Nacional de Cultura, ainda que legalmente constituído, de fato não estava em funcionamento, e resultou em atrasos que causaram dolo para muitos cidadãos. Existem critérios na formulação de políticas públicas. Repasses diretos por assistência social seriam mais rápidos”.
A necessidade de uma norma geral para repasse de recursos
Enquanto outros setores têm planos e normas gerais para repasses de verbas federais – como a Educação, que possui a Lei de Diretrizes e Bases -, o mesmo não ocorre no setor cultural. Os entrevistados pela reportagem afirmam que há problemas relacionados aos aspectos estruturais das políticas culturais brasileiras – SNC, PNC, FNC e suas regulamentações.
“A Constituição diz que a União tem que fazer norma geral sobre cultura, os estados têm que fazer as normas suplementares e os municípios, as normas locais, explica Cecilia. “Como é que eu vou fazer o repasse de um recurso do Fundo Nacional para o Fundo Estadual sem uma lei que regulamente esse repasse? Toda hora tem que criar uma lei diferente para garantir o repasse do recurso. Se houvesse uma norma geral, já poderia prever quanto seria repassado a cada ano. É como se a gente estivesse enxugando gelo”, completa.
Questionamentos sobre os usos contraditórios de recursos públicos são recorrentes em todos os campos sociais. Os especialistas ouvidos nesta reportagem manifestaram preocupação com o uso indevido dos recursos assistenciais. Existem princípios que regem a administração pública, que são os da “legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”, que determinam que tanto os agentes públicos quanto a administração pública devem agir conforme os preceitos éticos. “Por causa desse princípio, a gente não pode ter uma pessoa que participa da decisão ser beneficiada pela decisão”, afirma a presidente do IBDCult.
A Lei Aldir Blanc está em sua fase final de execução de gastos. Alguns editais ainda estão abertos, e em seguida entrará na fase de prestação de contas, mas a pandemia não acabou, enquanto do outro lado, o setor da cultura e entretenimento segue devastado. Neste contexto surge a lei Aldir Blanc 2 e a Lei Paulo Gustavo, abordadas em artigo desta série. A mensagem que fica é que são necessários mais recursos, porém os mecanismos podem melhorar.