Cultura também é direito humano fundamental
A arte se revela como necessidade social. É tão necessário ter artista na sociedade, para estimular a reflexão geral, quanto é necessário ter gari nas ruas. Sem eles, as cidades são engolidas pelo lixo.
A ideia de cultura habita uma dicotomia complexa no imaginário social. Ora é vista como luxo, ora é vista como balbúrdia. Independentemente da escolha, ambas acabam reforçando discursos que afirmam sem dó que ela é descartável, desnecessária em uma sociedade faminta e sofrida, e endossa supostas justificativas para que sejam as primeiras políticas a serem cortadas em momentos de arrocho orçamentário.
Em uma sociedade em que pessoas morrem nas filas dos hospitais por falta de atendimento, como reivindicar lugar ao sol para a cultura que a coloque no mesmo patamar de importância que direitos sociais, como transporte e saúde? A reposta vem simples e direta: nenhuma sociedade conseguirá superar suas desigualdades e atingir uma maturidade de justiça se a proteção e a valorização da cultura não estiverem inseridas neste processo. A exploração e a alienação da população só podem ser rompidas pela cultura, em amplo diálogo com a educação. Se no último 15 de maio milhões de pessoas tomaram as ruas do País contra os cortes das universidades, que saibam que não há educação efetiva sem que seja permeada pela cultura.
Ambas estão na base da formulação do pensamento crítico, que por sua vez é a chave para emancipação de qualquer cidadão. Na sociedade administrada em que vivemos, que dita nossos horários, nossos gostos e controla nosso cotidiano inerte, ocupado em nascer e morrer, a cultura nos resgata da monotonia, da obediência, do silenciamento, da ignorância, e substitui tudo isso por reflexão, autoconhecimento, consciência social e pensamento crítico. Falamos aqui de cultura tanto em sentido antropológico, referente a manifestações de identidade em territórios específicos, quanto em sentido artístico e político, por mais que possa parecer redundância essa afirmação, afinal, toda arte é política.
Até as obras de arte que parecem ser meramente estéticas carregam consigo a potência política porque são expressões de um determinado tempo, de um determinado espaço, resultado de vivências específicas, mas principalmente porque suscitam nas pessoas observadoras o desejo de reflexão. Só de responder intimamente à pergunta “gosto ou não gosto?” é um exercício grandioso de pensamento, diante da sociedade domesticada em que estamos inseridos. Nesse aspecto, a arte se revela como necessidade social, é ofício. É tão necessário ter artista na sociedade, para estimular a reflexão geral, quanto é necessário ter gari nas ruas. Sem eles, as cidades são engolidas pelo lixo.
É por essa necessidade social emancipatória que a cultura se apresenta como um direito humano que deve ser garantido. Essa constatação vem acompanhada de um amplo aparato legislativo. Está lá na septuagenária Declaração Universal dos Direitos Humanos, mais especificamente no artigo 27, que diz que “toda pessoa tem o direito de tomar parte livremente na vida cultural da comunidade” e “de fruir as artes”; que “todos têm direito à proteção dos interesses morais e materiais ligados a qualquer produção científica, literária ou artística da sua autoria.”
Além do documento internacional, no Brasil mesmo são muitas as leis que cobram atenção para as artes e para a cultura, enquadrando-as como parte de direitos sociais fundamentais que devem ser garantidos para o mínimo desenvolvimento do País. Digo “mínimo” propositalmente, para refutar aquela ideia infundável de que a cultura é luxo e vaidade, que só pode ser garantida por nações plenamente desenvolvidas. Não é a riqueza de um lugar que precede a proteção de sua cultura, mas o inverso. Sociedades que desde sempre valorizaram suas raízes e incentivaram a produção artística estão na ponta do desenvolvimento mundial.
No Brasil, as obrigações constam apenas na teoria por enquanto. Estão previstas, por exemplo, no Estatuto da Criança e do Adolescente, no artigo 59, para ser mais exata: “municípios, com apoio dos estados e da União, estimularão e facilitarão a destinação de recursos e espaços para programações culturais.” O Estatuto da Juventude também dá destaque para a matéria: “O jovem tem direito à cultura, incluindo a livre criação, o acesso aos bens e serviços culturais e a participação nas decisões de política cultural, à identidade e diversidade cultural e à memória social.”
Não bastasse tudo isso, a exigência de políticas culturais também consta na Constituição Federal, tão surrada, coitada. Apesar de todos os atentados que sofreu e que vem sofrendo ultimamente, a Carta Magna brasileira dedica uma seção especial para a garantia dos direitos culturais no País. O artigo 215 ordena que o Estado assegure a todos “o pleno exercício dos direitos culturais e o acesso às fontes da cultura nacional”, além de estabelecer que também é dever do Estado o apoio, o incentivo, a valorização e a difusão das manifestações culturais. Para os que defendem uma arte circunscrita aos monumentos megalomaníacos e eruditos, é necessário reivindicar aqui o texto do artigo 216 da mesma Carta: constituem o patrimônio cultural brasileiro as formas de expressão, os modos de criar, de fazer e de viver.
Modos de viver são cultura. Se no País, existem secretários de cultura por aí que focalizam seus esforços em revitalizações de patrimônios culturais restritos à uma elite, baseando-se em discursos frágeis e segregacionistas, que se lembrem que tão importante quanto uma Orquestra Sinfônica são os modos de vida da periferia. Não que uma coisa deva competir com a outra, porque não deve. Mas infelizmente ainda vemos gestores alimentando disputas dentro de uma pasta que sobrevive de migalhas. Políticas culturais não devem competir orçamento entre si. O caminho, como sempre parece ser, passa por uma reforma tributária, para alteração de um regime que garante grandes isenções fiscais a empresas já abastadas, enquanto concede menos de meio porcento do orçamento a pastas de cultura.
A cultura é diminuída pelos governantes com um propósito político muito claro. A negligência é medo da revolução. É pela proteção da memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira que conhecemos de fato a nossa história, que conhecemos o lado violentado do nosso passado, que nos conectamos com nossas raízes, que desenvolvemos o sentimento de pertencimento que desemboca na vontade de lutar por mais justiça e igualdade. É pelo fomento à produção artística que o pensamento crítico geral é exercitado. E aí, se pessoas começam a pensar se gostam ou não de uma pintura, por exemplo, logo estarão pensando se gostam ou não da proposta de alteração previdenciária apresentada pelo governo.
Em um país em que mais da metade da população diz desconhecer o conteúdo de uma PEC cujos impactos reverberarão por toda sua vida, de fato é muito perigoso para o governo que as pessoas comecem a pensar criticamente. “Tem que acabar com isso aí, tá ok?”, vão dizer. “Bando de idiotas úteis”, vão xingar. Mas isso é medo. Arthur Danto, um filósofo da arte que muito me agrada, fala que aquele velho discurso existente de que a arte não pode fazer nada além de ser bela é na verdade uma tentativa desesperada para que essa mesma arte não tenha consciência do seu poder revolucionário e emancipatório. É o mesmo que dizer que as mulheres também não podem ser nada além de belas. Tentam silenciar a potência tão desejada da mudança da ordem social.
Se nos tiram um ministério, se minguam as secretarias, se censuram exposições, se a vigilância se torno regra, que nos lembremos daquela passagem bíblica: “Nem só de pão viverá o homem, mas de toda a palavra que procede da boca do artista”. Acho que é algo assim, não me lembro bem. Só sei que a guerra agora é cultural. E se é guerra que querem, é guerra que vão ter. Nada resiste mais do que a cultura. Resistiremos sempre, até alcançarmos a sociedade justa e igualitária que queremos.
*Raisa Pina é jornalista e pesquisadora em artes, cultura e política. Doutoranda em História da Arte pela Universidade de Brasília.