Da Alca à IIRSA
Criada ainda na gestão FHC, a iniciativa desenvolve grandes projetos nas áreas de transporte, energia e comunicações. Cada um de seus eixos tem como objetivo dotar a região de infraestrutura para extrair, em níveis nunca vistos, todo tipo de commodities, exportando-as para os mercados consumidores mais ricos
No final de agosto de 2000, o neoliberalismo parecia inevitável e imbatível. Fernando Henrique Cardoso, então presidente do país, chamou a Brasília os outros 11 mandatários sul-americanos. Entre eles, estavam alguns que mais tarde sairiam “corridos” de seus governos. Como Alberto Fujimori, do Peru, e Fernando de La Rúa, da Argentina. A Bolívia enviou o general-ditador Hugo Bánzer Suárez e a Colômbia, Andrés Pastrana. Ambos estavam afogados em denúncias de corrupção. Do Equador veio Gustavo Noboa, derrubado por um movimento popular sob a acusação de ampla capitulação diante dos interesses dos Estados Unidos. Hugo Chávez, eleito havia apenas dois anos na Venezuela, era pouco conhecido fora de seu país e visto com ceticismo devido à sua tentativa anterior de chegar ao poder através de um golpe militar. Era um outsider.
O objetivo de Fernando Henrique era ambicioso. Ele planejava se aproximar política, diplomática e economicamente dos polos dinâmicos da economia capitalista, em detrimento das demais regiões. Para isso, convocara os presidentes. Juntos eles lançaram, sob seu comando, a Iniciativa de Integração da Infraestrutura Sul-americana (IIRSA), uma ideia desenvolvida no Brasil e consolidada em um trabalho elaborado pelos consultores do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), entre eles Eliezer Batista, ex-presidente da Vale do Rio Doce e ex-ministro de assuntos estratégicos. Todos os agentes políticos e econômicos, é sempre bom lembrar, atuavam segundo a lógica do Consenso de Washington, o decálogo que materializava o espírito neoliberal daqueles anos. Também é necessário resgatar que, em 1994, o presidente democrata dos EUA, Bill Clinton, realizou em Miami a Cúpula da América com todos os países da região, sem Cuba, e que o tema da liberdade radical do comércio foi introduzido na agenda. O republicano George W. Bush, que liderou a Cúpula seguinte, em Quebec (2001), com seu jeito tatibitate manteve a orientação do Estado americano e continuou a ditar o tom para quase todos os governos presentes.
A hegemonia do pensamento neoliberal só veio a ser arranhada recentemente, em 2005 e 2006, por aquele que anos antes participou, mas não emitiu sinais de simpatia, da fundação da IIRSA. Justiça seja feita: Chávez, que em 2000 não mostrou pela IIRSA o entusiasmo de outros governantes, há quatro anos ajudou a enterrar a Alca e ainda fez outra manifestação veemente no ano seguinte, quando da instalação da União de Nações do Sul (Unasur), em Cochabamba, Bolívia. O outsider ganhava o primeiro plano.
Recursos naturais estratégicos
Entretanto, nem ele fizera a análise mais minuciosa da IIRSA numa dimensão central, que começou a ser detectada há cerca de cinco anos pela economista Ana Esther Ceceña, uma das mais importantes intelectuais da atualidade na América Latina. O projeto, diz, é negociar recursos naturais estratégicos.
Professora da Universidade Autônoma do México, coordenadora do Observatório de Geopolítica do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (Clacso), Ana Esther elaborou o mapa das zonas de influência da presença militar dos EUA na América Latina, e o sobrepôs ao mapa da ocorrência de recursos naturais. Sintomaticamente, percebeu que ambos coincidem. Isso ajuda a explicar o interesse de agentes econômicos, que só liberam seus recursos quando conseguem a garantia plena do retorno de seus investimentos e que não contam, para isso, somente com contratos a ser contestados nos tribunais. Querem, também, outras seguranças.
É o caso do BID, há décadas presidido pelos EUA. O organismo, escolhido para ser a secretaria técnica e angariar a ajuda à IIRSA de outros organismos financeiros regionais, conseguiu o apoio da Corporação Andina de Fomento (CAF,) do Banco Mundial e do Fundo Financeiro para o Desenvolvimento da Bacia do Prata (Fonplata).
Há também outra agência fomentadora. Aquela que, desde 2002, vem se transformando na maior delas em termos de recursos, e de onde saem, há 13 anos, os planos de expansão das empresas sediadas no Brasil, as novas transnacionais que mantêm, com os países vizinhos, relações do mesmo tipo que as multinacionais dos países centrais estabelecem conosco. Trata-se do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Historicamente, o principal instrumento do desenvolvimento brasileiro (ao lado da Petrobras), durante o governo Lula, o BNDES incorporou em sua missão o objetivo estratégico de atuar como instituição financeira da integração sul-americana.
Seus cofres, de onde em 2009 desaguarão cerca de US$ 70 bilhões, foram transformados em agência de política externa, evidenciando uma diferença de escala entre a economia brasileira e as demais no continente.
Nesse ambiente, a IIRSA vai-se configurando em enormes projetos nas áreas de transporte, energia e comunicações, orçados em US$ 608 bilhões. Hoje eles são 506, divididos em 10 eixos de projetos internacionais. Cada eixo tem como objetivo econômico dotar a região de infraestrutura para extrair, em níveis nunca vistos, todo tipo de commodity (com ênfase em energia, grãos, madeiras e minérios) e exportá-la para os ricos mercados compradores da América do Norte, Zona do Euro e Ásia (leia-se, China e Japão).
Ovo da serpente
Desde sua criação, a IIRSA persegue 10 alvos prioritários, entre os quais o de “dotar a região de conexões físicas” – algo que, de fato, praticamente não existe e que dificulta a ampla circulação de pessoas e mercadorias. Mas, tanto os alvos quanto a carteira de projetos são apenas a parte visível desse megaempreendimento. Em ambos existem metas distintas que compõem o verdadeiro coração da IIRSA, aquele que, na prática, revela os reais interesses de uma sigla que invoca o simpático e inquestionável sentimento de integração entre as nações do subcontinente.
É precisamente o quinto princípio básico da Iniciativa que esconde o verdadeiro ovo da serpente. Pretende-se, com a IIRSA, “harmonizar políticas, planos e quadros normativos e institucionais entre os Estados” da região, algo que também propõe o até aqui adormecido projeto da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Enquanto a Alca é apenas um acordo diplomático, a IIRSA, com seus projetos, fornece a base física em que se daria a liberdade de fluxo de bens e serviços entre os países. Sem estradas, hidrovias e rebaixamento equânime das legislações nacionais, não há acordo diplomático comercial que consiga se transformar em realidade. Essa, aliás, é uma dimensão muito pouco debatida tanto pelos apoiadores da IIRSA, que não desejam vê-la associada à Alca – proposta que foi rejeitada por parcelas expressivas da sociedade continental e brasileira, em especial – quanto pelos opositores do projeto de Área de Livre Comércio. Principalmente os opositores de esquerda fecham os olhos à estratégia IIRSA porque seu silencio lhes roubaria o argumento moral de terem jogado papel importante numa suposta derrota da Alca.
Entre os projetos escolhidos pelo BID, por meio do Comitê de Direção Executiva da IIRSA, há aqueles que são a verdadeira razão da existência de toda a carteira de obras. Eles são chamados de Agenda de Implementação Consensuada 2005-2010. Trata-se de uma lista de 31 projetos orçados em US$ 10,2 bilhões que figuram entre os primeiros a ser desenvolvidos porque abrem o fluxo de liberação de recursos – a maior parte deles públicos – e também estabelecem novos marcos institucionais, principalmente na questão do licenciamento ambiental.
Esse é o caso das polêmicas hidrelétricas que a estatal Furnas e sua aliada preferida, a Odebrecht, assim como outras empresas estatais e privadas, estão construindo no rio Madeira, em Rondônia.
Entre os 18 projetos do Eixo Brasil, Peru, Bolívia, oito estão relacionados ao rio Madeira – da construção das hidrelétricas às eclusas para torná-lo navegável e transformá-lo em um corredor internacional de grãos que seriam plantados em áreas de floresta e no entorno.
Seus orçamentos somam perto de US$ 10 bilhões e contam com o apoio declarado do BNDES, que não atenta para o fato de que as licenças ambientais para as obras foram concedidas pela presidência do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) contrariando pareceres de técnicos do próprio órgão e que imputam enormes riscos políticos, financeiros, legais, ecológicos e sociais, o que pode atrasar ou até mesmo inviabilizar a conclusão das obras.
O BNDES lidera uma articulação para fornecer perto de 80% dos cerca de US$ 6 bilhões ao Consórcio Madeira Energia (Furnas, Odebrecht, Cemig, Andrade Gutierrez e o banco espanhol Santander) que está construindo a usina Santo Antônio. O negócio será fechado sob a perigosa forma de Project finance, segundo o qual os tomadores do empréstimo não dão qualquer ativo material ou financeiro como garantia, mas apenas a expectativa da venda futura da energia.
“Há muitas coincidências entre os projetos Avança Brasil, do governo Fernando Henrique Cardoso, e do Plano Plurianual, do governo Lula. Ambos estão conectados a outros similares no exterior, tendo sempre como referencial os ‘Eixos de Integração e Desenvolvimento’”, os ENIDs, dos quais tomou parte Eliezer Batista, explica o historiador paraense Guilherme Carvalho.
Hidrelétricas
No livreto “A integração sul-americana e o Brasil: o protagonismo brasileiro na implementação da IIRSA”, publicado pela primeira vez em 2004, Carvalho mostra que o Estado brasileiro adotou uma postura de incentivar um tipo de integração física baseada na exploração da bacia amazônica, como estratégia central. De fato, quatro dos 10 eixos de projetos da IIRSA localizam-se nesta região, a começar pelo maior, o complexo hidroaquaviário-elétrico da bacia do rio Madeira. As obras também atingem Bolívia e Peru, países que estão sendo desconsiderados nos efeitos do barramento do rio, o maior contribuinte do Amazonas.
Os projetos que mais tarde se notabilizaram como obras, sob a rubrica IIRSA, começaram a ser planejadas ainda no início dos anos 1990 e foram introduzidas, governo após governo, no rol de projetos que viriam a conformar o modelo econômico nacional. Dos ENIDs ao Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), as obras financiadas pelo poder central, no Brasil, levam a mesma marca. Nesse sentido, é exemplar, outra vez, o caso das usinas do rio Madeira – e o protagonismo que o BNDES assume em viabilizá-las.
Entre agosto e setembro de 2006, durante a campanha reeleitoral de Lula, uma vasta ação política e empresarial envolveu o BNDES, o Ibama, Furnas, a Odebrecht e respeitados professores universitários: firmar um consenso sobre a necessidade de construir, no rio Madeira, em Rondônia, as bilionárias hidrelétricas Jirau e Santo Antônio. Lula reeleito, as usinas foram colocadas no coração do PAC.
Na época, afirmei que “o processo de fabricação do consenso quanto a Jirau e Santo Antônio configurou uma espécie de Operação Madeira, montada para viabilizar política e financeiramente a construção das enormes usinas, perto da fronteira com a Bolívia. Enquanto Lula e Alckmin se digladiavam diante dos holofotes, suas equipes incluíam nos programas de governo de ambos a construção de controversas usinas. Garantiam, assim, a volta da lógica dos grandes projetos à Amazônia”.
O BNDES diminuiu o custo do financiamento a projetos de geração e transmissão de energia, e uma tradicional dupla dinâmica do setor elétrico brasileiro, Furnas-Odebrecht, mesmo sem terem vencido qualquer licitação para construir as hidrelétricas, se apresentavam como as responsáveis pelo projeto. Na prática, a Operação Madeira aconteceu desta forma:
1. O Ibama, após meses de questionamentos por parte de ambientalistas, aprovou licenças preliminares para as obras e marcou as audiências públicas para discutir um pré-Estudo de Impacto Ambiental (EIA);
2. O BNDES, único financiador em longo prazo no Brasil para obras de infraestrutura, reduziu suas taxas para projetos de geração e transmissão de energia. Sintomaticamente, deixou de fora a área da distribuição de energia, que não está diretamente envolvida no projeto do Madeira.
3. Furnas-Odebrecht tentam angariar na sociedade apoio para a obra. Os defensores de Jirau e Santo Antônio esperam que a disponibilidade de energia naquela região induza ao aparecimento de um grande polo agroindustrial. Tanta eletricidade demandaria a utilização de 30 milhões de hectares em atividades como plantação de soja e criação de gado nas regiões de Rondônia e Mato Grosso – vale dizer que o Ministério do Meio Ambiente considera essas áreas prioritárias para a conservação, utilização sustentável e repartição dos benefícios da biodiversidade brasileira. Outra parte da energia produzida tem destino incerto: seria colocada no sistema interligado de transmissão de eletricidade e levada para outras regiões.
Mas intriga a omissão quanto a dois importantes detalhes. Pouco se fala da licitação de concessão dessas linhas, exigida por lei. Nem se coloca no debate os custos de construção. Supõe-se, apenas, que os milhares de quilômetros de linhas de transmissão custariam de 10% a 50% do orçamento das usinas. Sem as linhas, as usinas não têm serventia. Ou seja: os “detalhes” são importantes demais para serem deixados de lado.
Outra possibilidade forte e muito criteriosamente mantida à parte da discussão sobre as usinas, é a criação de um grande lago artificial, uma enorme hidrovia por onde as commodities agrícolas produzidas pelo complexo agroindustrial seriam transportadas até atingir portos marítimos, de onde iriam para grandes importadores de bens primários.
As estratégias econômicas que o país adotou nas últimas décadas – quando vicejaram os conceitos de abertura comercial e desregulamentação financeira, associadas à exploração intensiva da natureza – trouxeram poucos benefícios sociais para o Brasil. Temos exportado minério, grãos, madeiras, álcool, papel e celulose e produtos de minerais não-metálicos em crescentes quantidades, sem que isso se traduza em bem-estar para a maioria da sociedade.
É o momento de debater se esse é o futuro que nos espera. Ou se é o momento de o Brasil iniciar uma ampla tomada de posição em relação à IIRSA, como fez com a Alca.
*Carlos Tautz é jornalista e pesquisador do Ibase (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas)