Da ideologia à eletricidade
Interrogado sobre a partida das tropas ocidentais do Afeganistão, o embaixador russo em Cabul não pôde deixar de pensar na experiência da União Soviética dos anos 1980. Mas, há 30 anos, ela se apoiava sobre um movimento comunista autóctone, o qual, indócil e dividido, precipitou o engajamento de Moscou no conflitoChristian Parenti
Andando pelas casas de chá e bancas de Cabul, às vezes damos com o retrato de um homem severo, de rosto redondo, exibindo bigode e cabelos pretos. É Mohammed Najibullah, o último presidente comunista do país. Membro do Partido Democrático Popular do Afeganistão (PDPA) desde o fim da década de 1960, durante muito tempo ele supervisionou a polícia secreta antes de ser conduzido à direção do Estado, em 1986. Após a retirada das forças soviéticas, em 1989, Najibullah agarrou-se ao poder por três anos. Ele pereceu nas mãos dos talibãs em 1996. Ao serem questionados sobre esses cartazes e postais, os habitantes de Cabul dão respostas parecidas. Para alguns, “ele era um presidente forte, tinha um Exército poderoso”; para outros, “na época, as coisas funcionavam direito, Cabul era limpa”. Portanto, as pessoas não se lembram tanto do “comunista” – um termo vago para muitos afegãos –, mas do modernizador e patriota.
Para compreender as razões que fizeram de Najibullah essa figura emblemática, é preciso mergulhar na história das relações entre a União Soviética e o Afeganistão. O interesse da União Soviética por essa região não data da Guerra Fria. Desde a década de 1920 ela lutava contra os rebeldes muçulmanos nas regiões fronteiriças da Ásia central. Na década seguinte, arrasou esses basmaci (bandidos), com a ajuda do Exército Real afegão. A estabilidade do país era vista então como um elemento crucial para a segurança da Ásia central soviética. A partir do início da década de 1950, o Afeganistão tornou-se um dos quatro maiores beneficiários da ajuda de Moscou, que enviava engenheiros e oferecia treinamento a milhares de estudantes, técnicos e militares.
“Um negócio improvisado às pressas”
No final dos anos 1950, os Estados Unidos também voltaram os olhos para o Afeganistão. Instaurou-se uma concorrência entre as duas superpotências, que rivalizavam em generosidade para “ajudar” a população local.1 Os norte-americanos projetaram uma barragem no Rio Helmand para irrigar e fornecer eletricidade às regiões desérticas do sul; os russos construíram o túnel de Salang – um dos mais altos do mundo – para ligar as regiões norte e sul. Os Estados Unidos forneciam produtos eletrônicos, sistemas de comunicação e o radar do aeroporto de Cabul; a União Soviética elaborava os projetos de infraestrutura. Surpreendentemente, os primeiros líderes mujahedins (combatentes dos soviéticos), incluindo Ismail Khan, que iniciou a rebelião em Herat, em 1979, eram ex-militares treinados na União Soviética. E, inversamente, alguns intelectuais afegãos, como o primeiro-ministro Hafizullah Amin, haviam estudado nos Estados Unidos antes de se tornarem militantes comunistas e depois membros do governo.
O golpe de Estado comunista em março de 1978 parecia ser a consequência indireta de uma revolta anterior. Desde 1969 o Afeganistão passara por vários anos de seca e fome. O general Mohammed Daud derrubou seu primo, o rei Mohammed Zahir Shah, aboliu a monarquia e estabeleceu um governo republicano. Em 1973, ele se tornou o primeiro presidente da República do Afeganistão. Uma vez no poder, Daud perpetuou o que era então uma política econômica bastante difundida, recorrendo ao planejamento e ao investimento público para construir um setor industrial privado e criar um mercado interno. O tratamento dado a seus inimigos políticos – islamitas e comunistas, por sua vez adversários entre si – combinava repressão e cooptação.
A violência do regime precipitou os acontecimentos de 1978, “um negócio improvisado às pressas”, segundo as palavras de Jonathan Steele.2 No dia 17 de abril, Mir Akbar Khyber, membro influente e apreciado do PDPA, foi assassinado bem no meio da rua. Todos os olhos imediatamente se voltaram para o governo. Dois dias depois, o PDPA organizou uma manifestação de protesto que reuniu quase 15 mil pessoas e terminou em repressão policial. Temendo que esse fosse apenas um prelúdio para seu extermínio, os militares comunistas atacaram o palácio presidencial, matando Daud e tomando o poder.
As autoridades soviéticas, especialmente as da KGB lotadas em Cabul, foram pegas de surpresa. Segundo elas, o Afeganistão não estava maduro para o socialismo, nem o PDPA pronto para governar. Na verdade, o partido estava rachado ao meio. Foi a facção Khalq (“Nação”), majoritária e radical, que organizou o golpe de Estado. Ela tinha o apoio da população falante de pachto que se instalara recentemente nas cidades em busca de trabalho e acesso à educação. Já a franja minoritária e moderada, denominada Parcham (“Estandarte”), ancorava-se nas classes médias urbanas falantes de dari.
O início do reinado Khalq foi sangrento. Quarenta generais e aliados políticos de Daud, incluindo dois ex-primeiros-ministros, foram sumariamente executados. Essa violência inquietou os soviéticos. Apesar de várias reformas progressistas – proibição do casamento de crianças, redução do dote, anulação de hipotecas rurais, campanha de alfabetização para homens e mulheres, reforma agrária etc. –, erros de gestão provocaram uma reação brutal de parte da população.3
Concebidas emergencialmente, as reformas do PDPA sofriam com a velha divisão da sociedade afegã entre cidade e campo. Os jovens citadinos idealistas e educados não entendiam o mundo rural e queriam remodelá-lo, enquanto os habitantes das aldeias de paredes de barro não mostravam nenhuma simpatia pela burocracia urbana. Que as dimensões sociais e culturais das reformas seriam mal recebidas porque ameaçavam os privilégios dos mulás, maliks (chefes de aldeia) e grandes proprietários não é nenhuma surpresa; porém, o mais desconcertante era que aspectos econômicos progressistas do programa também foram rejeitados por um campesinato devoto.
Embora pobre e desigual, o Afeganistão da década de 1970 não apresentava a concentração agrária que caracterizava, por exemplo, a China e o México pré-revolucionários. Como explica Steele, com frequência os camponeses tinham “vínculos religiosos, de clã e familiares com os proprietários, e não estavam dispostos a questionar sua autoridade”. A sociedade rural, que sempre gozou de certa autonomia em relação a Cabul, sentiu-se ameaçada. Ela gradualmente abandonou a resistência armada, juntando-se aos partidos islamitas que fugiram para o Paquistão durante a repressão orquestrada por Daud.
Alguns erros técnicos pioraram ainda mais a situação para o PDPA. Em sua pressa, os comunistas de Cabul redistribuíram a terra, mas não a água: uma falha que revela sua ignorância sobre a agricultura local. Eles aboliram o sistema iníquo dos empréstimos financeiros dos bazares, mas não estabeleceram um programa de crédito alternativo para ajudar os camponeses pobres. Por sua vez, os soviéticos não se cansavam de pedir que Cabul abandonasse ou adiasse as reformas mais radicais.
Ganhar corações e espíritos
O PDPA viu-se enfrentando a resistência religiosa às modernizações. Na tentativa de sufocá-la, as autoridades comunistas não hesitaram em demonstrar – pelo menos em público – uma súbita piedade, rezando e indo à mesquita. Esforços tardios e insuficientes: em março de 1979, os oficiais islamitas de Herat rebelaram-se. Em seguida, outras guarnições se amotinaram. No verão [do Hemisfério Norte], os Estados Unidos passaram a fornecer dinheiro e armas aos mujahedins, a fim de preparar ataques contra as forças governamentais e infraestruturas públicas a partir do Paquistão. Nesse meio-tempo, agravava-se o conflito dentro do PDPA: as diferenças pessoais e ideológicas geraram confrontos entre o Khalq e o Parcham, assim como dentro do próprio Khalq. Em setembro de 1979, o presidente Noor Mohammad Taraki foi amarrado a uma cama e sufocado com um travesseiro: execução contratada pelo primeiro-ministro Hafizullah Amin, seu camarada e concorrente no Khalq. Os dignitários soviéticos, que consideravam Taraki o mais flexível dos dois rivais, ficaram escandalizados com o assassinato. A paranoia tomou conta do Kremlin, onde se temia que o assassino fosse um agente dos Estados Unidos.
Durante a crise de 1979, Moscou recusara treze pedidos de intervenção militar feitos pelo governo comunista. Porém, o assassinato de Taraki mudou tudo. O 40º Corpo do Exército Vermelho foi enviado ao Afeganistão, onde chegou em dezembro de 1979 com a missão não de ajudar Amin, mas de assassiná-lo. No dia 27 de dezembro, as forças especiais soviéticas atacaram o palácio presidencial e mataram o presidente, no cargo havia apenas 104 dias. Dirigente de transição escolhido pelos soviéticos, Babrak Karmal pertencia à ala moderada do PDPA. Lunático e paranoico, ele manifestava uma propensão a beber que agravava ainda mais sua incompetência.
Apesar do envio, pelos soviéticos, de técnicos e conselheiros civis idealistas, Karmal não conseguiu ganhar a fidelidade dos muçulmanos do campo, de modo que a capacidade de ação do Estado continuou limitada. Para piorar a situação, desde julho de 1979 os Estados Unidos empreenderam o armamento dos sete partidos mujahedins, ferozmente opostos ao PDPA. Generosamente financiada pelo governo saudita e clandestinamente fornecida por Washington por iniciativa da CIA, essa ajuda militar passava pelo controle atento de Islamabad. No início, Moscou e Washington pensavam que a intervenção duraria seis meses e que a população afegã – pelo menos nas cidades – daria uma boa acolhida aos russos e adoraria ver o fim do reinado de Amin. Mas os russos atolaram-se em uma guerra que duraria nove anos.
Muitos militares soviéticos acreditavam sinceramente em seu “dever internacional” – assim como alguns norte-americanos entendem sua atual guerra no Afeganistão como uma ajuda salutar oferecida a um país atrasado, preso nas garras de uma autêntica ameaça terrorista. Como suas homólogas norte-americanas, as tropas soviéticas no Afeganistão pertenciam sobretudo à classe trabalhadora, oriunda majoritariamente dos campos e pequenas cidades; apenas a força aérea, a KGB e as unidades médicas podiam contar com soldados vindos de camadas mais privilegiadas da sociedade russa.
O verdadeiro objetivo do 40º Corpo era ganhar corações e mentes, o que não aconteceu: quando as forças terrestres dos governos soviético e afegão foram colocadas em dificuldade por seus adversários, a aviação e a artilharia foram chamadas como reforço; e se os mujahedins disparavam de dentro das aldeias, estas eram bombardeadas e destruídas. Rodric Braithwaite desmente as alegações de que os soviéticos utilizaram armas químicas e armadilhas: ao contrário do que afirmava o discurso midiático da década de 1980, a brutalidade contra civis não era um objetivo, mas um efeito indesejável, previsível e imperdoável de sua política. Eles julgaram centenas de seus soldados por crimes que vão do estupro ao assassinato.
Bleeders e dealers
Quando, em 1985, Mikhail Gorbachev foi nomeado chefe do Partido Comunista, o poder estava convencido da necessidade de retirada do Afeganistão. Uma ampla campanha contra a guerra, travada pelas famílias dos soldados, veteranos e até funcionários, conduziu Moscou a essa direção. No Afeganistão, Najibullah, que acabava de ser nomeado presidente da República, afastava-se cada vez mais do marxismo-leninismo em favor de um nacionalismo pragmático.
Essas inflexões, iniciadas com a saída de Karmal e a ascensão de Najibullah, fazem parte de uma política oficial chamada “reconciliação nacional”. Para funcionar, esta requeria a cooperação dos Estados Unidos, principais protetores dos mujahedins. Infelizmente para o Afeganistão e para os soviéticos, a administração Reagan dividia-se entre bleeders (“sangradores”) e dealers (“negociadores”). O secretário de Estado, George Shultz, estava entre os principais dealers, defensor de um compromisso com a União Soviética. Sua posição era simples: se o Exército Vermelho se retirasse do Afeganistão, os Estados Unidos deviam parar de ajudar os mujahedins. Mas os bleeders, muito presentes na CIA e no “lobby afegão” no Congresso norte-americano, não viam assim: eles condicionavam o término da ajuda aos mujahedins ao fim puro e simples de qualquer forma de apoio do governo soviético ao governo de Najibullah. Foram eles que venceram.
Em fevereiro de 1989, o último tanque soviético atravessou a Ponte da Amizade, ao norte do Rio Amu Daria. Mas Moscou continuou ajudando Najibullah, e o governo afegão pegou todo mundo de surpresa. Em março de 1989, suas tropas, agora lutando sozinhas, romperam o cerco mujahedinde Jalalabad, próximo à fronteira paquistanesa. Se os insurgentes conseguissem tomar a cidade, Cabul seria seu próximo alvo. Segundo Braithwaite, Eduard Shevardnadze, que não queria ser o primeiro ministro soviético dos Assuntos Estrangeiros a sofrer uma derrota, foi o mais fervoroso apoiador de Najibullah. Ele estava convencido de que os afegãos poderiam lutar indefinidamente com um fluxo de petróleo e armas proveniente da União Soviética. Najibullah conseguiu de fato se sustentar por mais três anos. Mas, quando Boris Yeltsin afastou Gorbachev e a União Soviética entrou em colapso, o fluxo vital de auxílio foi interrompido.
Mergulho na escuridão
A derrota soviética no Afeganistão não causou, como muitas vezes se pensa, o colapso da União Soviética. Foi o oposto. Com Yeltsin no poder, o regime de Najibullah entrou em colapso. Segundo Braithwaite, o novo presidente da Rússia teria até mesmo estabelecido contatos secretos com os mujahedins desde antes da queda de Gorbachev.
O presidente foi finalmente deposto em abril de 1992. Diversos grupos de guerreiros santos e fanáticos etnonacionalistas inundaram Cabul. Após uma curtíssima experiência de governo conjunto, as facções entram em conflito. Ao longo de quatro anos, a capital afegã caiu na barbárie. Os grupos mujahedins em guerra mergulharam o país na escuridão, tanto no sentido próprio como figurado: as linhas de iluminação pública e ônibus elétricos foram saqueadas; os serviços públicos pararam de funcionar. Os combates entre facções cobriram metade da cidade, e estima-se em 100 mil o número de mortos, a maioria composta de civis. Najibullah permanece trancado em instalações das ONU. Quando os talibãs enfim tomaram a cidade, em 1996, eles capturaram o ex-presidente, a quem espancaram, torturaram e castraram antes de fuzilar. Seu corpo foi arrastado pelas ruas, depois pendurado em um poste.
Contudo, enquanto as forças da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) ocupam o Afeganistão, ainda há retratos de Najibullah nas ruas de Cabul. Por quê? Hoje, como outrora, a guerra não opõe apenas invasores e afegãos, mas também os próprios afegãos – as populações das cidades, favoráveis à modernização (mesmo em marcha forçada), e as do campo, contrárias à mudança. Outra semelhança: cada força conta com poderosos aliados no exterior. Durante a Guerra Fria, os soviéticos apoiaram Cabul, enquanto Estados Unidos e Paquistão apoiaram os rebeldes; hoje, outras preocupações levam os Estados Unidos a defender os aspirantes a reconstrutores de Cabul (a maioria dos quais são os mesmos que trabalhavam para Najibullah), enquanto o Paquistão, vassalo favorito e aliado simbólico dos norte-americanos, continua apoiando os rebeldes religiosos e tradicionalistas.
Há uma classe de citadinos afegãos para a qual a questão política central sempre foi: “Independentemente de ideologia, eu vou ter eletricidade?”. Trata-se de pessoas que têm procurado estender o domínio de Cabul sobre o campo e que, desde a década de 1920, foram sistematicamente confrontadas a uma violenta oposição. Sua bandeira, no princípio, foi a monarquia constitucional, depois a república presidencialista, o socialismo soviético e enfim o nacionalismo último de Najibullah. Agora elas enfrentam a experiência da democracia liberal extremamente imperfeita imposta pela Otan. Não é de surpreender que os ex-comunistas continuem modernizadores e possam ser encontrados nos cargos mais elevados do que se chama de governo afegão.
É sem dúvida por todas essas razões que ainda se exibem retratos de “Nadjib” em Cabul: porque sua visão de mundo, apesar de todos os seus defeitos, incluía a eletricidade. Infelizmente, os elétrons não podem ser transmitidos pela guerra.
Christian Parenti é Jornalista.