Dane-se a realidade! A doutrina continua.
Há duas décadas louvando o sistema hoje em ruínas, os economistas continuam apegados aos seus cânones. Mas agora estão divididos em dois campos: os que, sem qualquer escrúpulo, viraram a casaca; e aqueles que, atordoados pelo choque, ainda tentam defender o indefensável
Na televisão, no rádio e na imprensa escrita, quem se habilita agora a comentar o desmoronamento do capitalismo financeiro? Os mesmos de sempre, é claro! Aqueles mesmos especialistas, editorialistas e políticos de plantão, que vêm enchendo nossa paciência há duas décadas, entoando cantos que louvam o sistema hoje desmoronando.
Lá estão eles, fiéis ao posto, sem dar sinal algum de estar perdendo fôlego. Eles apenas se dividiram em dois campos: os que, sem qualquer escrúpulo, viraram a casaca; e os que, um pouco atordoados pelo choque, tentam ainda assim prosseguir, na medida do possível, no mesmo caminho, insistindo em defender o indefensável em meio às ruínas fumegantes.
O impacto da explosão deve ter sido violento. É o que se deduz do comentário de Nicolas Baverez, um tanto cambaleante: “A globalização conserva aspectos positivos”1, insiste, contra ventos e marés, com uma teimosia que lembra a de Georges Marchais (1920-1997, antigo secretário-geral do Partido Comunista Francês). Contudo, ele acaba reconhecendo, a contragosto, que foi mesmo o “capitalismo globalizado que entrou em crise”2 e que “a auto-regulamentação dos mercados é um mito”3. Mas, para ele, uma coisa não impede a outra: “O liberalismo é o remédio para a crise”4. Ora, o que é o liberalismo senão a forma de organização econômica da auto-regulamentação dos mercados?
Pode até ser, mas Baverez decide que ele não recuará nem mais um milímetro a respeito desta questão, preferindo se virar com as complexidades do seu pensamento: “O liberalismo não é a causa da crise”, ainda que, por efeito da questão da auto-regulamentação, ele seja o problema. Do qual, aliás, também é “a solução”5. Compreenda quem puder.
Rolo compressor ideológico
Outros se mostram menos desnorteados. Explicam com mais desenvoltura que, se os tempos mudaram, eles também estão prontos para fazer o mesmo.
“Esta bolha ideológica, a religião do mercado todo-poderoso, apresenta grandes semelhanças com o que veio a ser a ideologia do comunismo. O rolo compressor ideológico liberal varreu tudo na sua passagem. Um grande número de chefes de empresa, de universitários, de editorialistas e de dirigentes políticos não acreditava em outra coisa senão no soberano mercado”6.
Ao ler estas linhas hoje, alguém pensaria estar lidando mais uma vez com um daqueles antiliberais inoportunos, simpatizante da organização Attac ou do jornal comunista L’Humanité.
Contudo, foi o próprio Favilla, o editorialista mascarado do jornal Les Echos, que acabou extravasando toda essa cólera contida há tantos anos.
Poucos sabem que os profissionais do Les Echos – um diário de informação econômica e financeira de propriedade do grupo LVMH, líder mundial da indústria de luxo – estão em conflito com os seus patrões. Um duelo causado por injustiças, censuras e imposturas intelectuais em excesso.
Sufocaram até mesmo a própria “verdade”: “Até então, toda voz dissonante, por mais que ela fosse timidamente social-democrata, que lembrasse as virtudes de um mínimo de regulamentação pública, seria comparada a de um monstro sobrevivente de Jurassic Park. E não é que, de repente, a verdade aparece? A auto-regulamentação do mercado é um mito ideológico! ” Se o jornal continuar nessa linha, já é possível imaginar que o título do próximo editorial de um Favilla ensandecido seria “É preciso que tudo vá pelos ares!”.
Laurent Joffrin, que poucos meses atrás ainda ajudava Bertrand Delanoë, o prefeito socialista de Paris, a proferir seu grito de amor pelo liberalismo, e criticava “a esquerda ingênua” por não ter compreendido os benefícios do mercado, também voltou atrás – o mesmo surto que acometeu Favilla: “Há mais de uma década, os talebãs do divino mercado financeiro vêm rejeitando todas as advertências, desprezando todos os críticos e recusando toda tentativa de regulamentação”7, escreveu.
Esses pobres editorialistas nada faziam senão balbuciar, sem pensar, tudo aquilo que os especialistas, também repetidores, lhes ensinaram ao longo de tantos anos. Ora, a hecatombe deste lado dos especialistas é igualmente impressionante.
Elie Cohen é um economista francês que dedicou parte de sua vida pessoal e da sua carreira a alertar seus ouvintes/leitores sobre a assustadora aberração em que consiste a intervenção pública. Sempre apoiou a privatização de tudo o que podia ser privatizado. Agora, entretanto, ele compartilha a opinião de que é preciso nacionalizar.
Romper com a ultra-esquerda?
Imaginem qual teria sido a sua reação se esta idéia lhe tivesse sido submetida dois meses atrás! Que distante parece estar a época em que ele conclamava os socialistas a romper com o “discurso de ultra-esquerda baseado na negação da realidade”8 e lamentava muito que eles tivessem “se tornado militantes em luta contra a globalização neoliberal, por temerem uma globalização que eles não compreendiam e na qual eles nada enxergavam a não ser as manifestações de multinacionais sedentas por lucros, os excessos de um mundo das finanças descontrolado e as iniqüidades de uma regulamentação a serviço dos poderosos”.
Em matéria de “realidade”, Cohen é um especialista: “Dentro de algumas semanas, o mercado se recomporá e os negócios serão retomados como antes”, escreveu em 17 de agosto de 20079. “É preciso acostumar-se com a idéia de que as crises não constituem cataclismos, mas sim métodos de regulamentação de uma economia mundial que ninguém consegue enquadrar verdadeiramente por meio de leis ou de políticas”10.
Não faltarão aqueles mal intencionados que, sem dúvida, irão sugerir que Cohen não é exatamente uma figura representativa do economista acadêmico típico. E que, a julgar pelo tempo que ele passa nos estúdios de rádio e televisão, é de se perguntar se um dia ele conseguiu se dedicar, de uma forma ou de outra, a alguma ciência que não seja aquela da sua própria notoriedade.
Até mesmo os mais qualificados dentre os economistas franceses têm se mostrado tão “competentes” quanto ele, ao lidarem com o tema que nos interessa aqui. David Thesmar, assim como Augustin Landier, mostraram-se categóricos, ainda em meados de 2007, ao defender a seguinte tese: “Que [o ajuste] será limitado e, sobretudo, que ele não terá efeito algum sobre a economia real”.
Esta afirmação tem uma diretriz muito clara. O mesmo ocorre com a conclusão do artigo assinado por ambos: “O perigo de haver uma explosão financeira, e, portanto, a necessidade de se proceder a uma regulamentação, talvez não seja tão premente quanto se possa pensar”. Tudo sob o título profético de “A mega-quebra das Bolsas não acontecerá”11.
Contudo, é possível encontrar espécimes ainda mais interessantes do que os clarividentes já citados: são os profetas. “Em seu relatório encomendado pela assessoria do presidente Nicolas Sarkozy, o economista já alertava para os perigos da especulação financeira”, afirma um artigo de Renau Dély. O texto literalmente homenageia as capacidades excepcionais de adivinhação de Jacques Attali, o bobo multimídia da corte francesa, e o seu famoso estudo que reúne propostas da Comissão para a Liberação do Crescimento da França. Foram duas páginas inteiras da revista semanal Marianne dedicadas (por descuido?) a esse tema. Por mais constrangedor que isso possa parecer, não só o relatório Attali não comporta qualquer comentário sério a respeito dos perigos da desregulamentação financeira, como ele também não passa de um extenso elogio dos prodígios realizados pelos mercados de capitais. Trata-se, de fato, de uma exortação à adesão completa e total aos mercados.
O modelo indicado como o mais bem-sucedido e que deve ser imitado pela França é o do Reino Unido, que “se envolveu de maneira duradoura na valorização da sua indústria financeira”.
Não será esta uma idéia que, pela sua excelência, deveria evidentemente classificar seu autor na categoria dos proféticos? Segundo Dély, “há revoluções que não se podem deixar passar”, entre as quais a “revolução das finanças”. É por esta razão que
a idéia de “fazer de Paris uma praça financeira das mais destacadas” é o “objetivo” que norteia o considerável elenco das propostas apresentadas por Jacques Attali.
Para isso é necessário “harmonizar as regulamentações das Bolsas e dos setores financeiros em geral com aquelas a serem aplicadas no Reino Unido, de modo a não prejudicar o desempenho dos atores europeus em relação aos seus concorrentes internacionais”. E para estimular as inovações o relatório Attali propõe “multiplicar as iniciativas comuns entre os estabelecimentos de ensino superior e as instituições financeiras, incentivando o financiamento de cátedras dedicadas às pesquisas sobre a concepção de novos modelos financeiros”.
Isso porque a universidade não deve ser deixada à mercê das restrições dos orçamentos públicos. E tampouco se deve regatear qualquer coisa quando se trata de valorizar a formação das futuras elites.
O relatório chega ao ponto de propor “modificar a composição das
comissões e dos colégios de reguladores, para que os campeões das finanças possam se expressar e influenciar a posição do Alto Comitê da cidade”.
A esta altura do campeonato, tenho muita vontade de entrevistar Attali. Eu perguntaria: “Hoje, em novembro de 2008, qual efeito exerce no senhor a expressão ‘campeões das finanças’ e, mais ainda, a idéia de confiar aos tais campeões a regulamentação dos mercados?”
Distribuindo a poupança pelo mercado
Para seguirmos degustando as conclusões do relatório, ele sugere também “reorientar maciçamente o regime fiscal dos seguros de vida e do plano de poupança para orientá-lo rumo a uma poupança de longo prazo investida em ações (a ser acoplada aos fundos de pensão)”.
Finalmente chegamos ao ponto. Não se sabe ao certo se Jacques Attali elaborou suas previsões em relação à crise de outra forma que não no modo da alucinação retrospectiva. Em todo caso, em janeiro de 2008 ele estava convencido da necessidade de se distribuir toda a poupança dos franceses nos mercados financeiros – serão aqueles mesmos mercados aos quais ele se referiu recentemente na televisão, chamando-os delicadamente de “tsunami”?
Assim, o relatório Attali argumenta abertamente em favor da passagem para a capitalização – afirmando ser “necessário, portanto, que a poupança para aposentadoria, seja ela individual ou coletiva, se torne mais e mais poderosa”. E isso no momento preciso em que tantas famílias americanas, em conseqüência da crise, estão vendo suas pensões virar fumaça. Sem falar quando o extremo desespero em que algumas se encontram já não as obrigou a retirar recursos das suas contas-poupança de aposentadoria.
Somente uma “feliz intuição” do momento histórico que estamos vivendo poderia motivar alguém a incentivar recorrer à capitalização, num período em que não tardaremos a ver aparecer os primeiros idosos miseráveis nas calçadas das cidades americanas.
E uma vez que a mensagem desse relatório consiste em submeter toda a sociedade francesa à lógica das finanças, que andou demonstrando de maneira tão espetacular suas virtudes, não podemos deixar de mencionar a intenção de promover a importância e o poder das fundações privadas no financiamento das universidades. E que, conforme todos já devem suspeitar, comporta a supressão, numa proporção equivalente, dos financiamentos públicos.
Mas, como funcionam ao certo essas fundações? Elas aplicam seus capitais nos mercados e vivem ao longo do ano “dos seus rebentos”. Considerando-se as condições de desmoronamento de todos os setores das finanças que o profeta antecipou de longa data, é perfeitamente possível, portanto, que as universidades americanas estejam preparadas para encarar alguns anos de drásticas restrições orçamentárias.
Mas, afinal, não será esse o modelo que devemos imitar a qualquer custo? Quem se preocupa mesmo com essas coisas? Os cata-ventos – ou talvez os vira-casaca – seguem girando, enlouquecidos, sem nunca encontrar qualquer obstáculo pela frente.
Todos têm razão
Salvo raríssimas exceções, todas as pessoas listadas por Favilla em seu editorial estranhamente esclarecido, como “chefes de empresas, universitários, editorialistas, dirigentes políticos”, debateram a crise apenas entre si, o que significa que nenhuma contradição séria surgiu entre eles. Nessas condições, seria muita ingenuidade espantar-se com o fato de não existir, em nenhum lugar do sistema, qualquer força capaz de chamar seus atores à ordem. Nem sequer um começo de regulamentação da decência. Ou mesmo a menor possibilidade de sanção para tão formidáveis contradições. Afinal, é ridículo ver tamanha picaretagem: todos eles estão convencidos de estar com a razão, optando, logicamente, por se absolverem de seus erros, coletivamente.
E, contudo, de maneira contraditória, é preciso ter muita temperança para não se espantar com o estado dessa coisa tão deteriorada que eles persistem, por uma ironia sem dúvida involuntária, em chamar de “democracia”.
Haja paciência para resistir ao violento impulso de sugerir-lhes o que a dignidade lhes comandaria, caso ainda tivessem ao menos um pouco dessa virtude: partirem em férias. E possivelmente, até mesmo sumirem de uma vez por todas.
*Frédéric Lordon é economista, autor de Jusqu’à quand? L’éternel retour de la crise financière (Até quando? O eterno retorno da crise financeira), Raisons d’Agir, Paris, 2008.