De Guangdong a Caruaru
Os fluxos da globalização popular são animados por milhares de redes sociais que fazem movimentos pendulares dentro do sistema não-hegemônico. No Brasil, os atores que realizam essas conexões são os “sacoleiros”. Se não fosse por eles, parte da riqueza global jamais chegaria às classes mais vulneráveis
Em todo o mundo existem milhões de pessoas direta ou indiretamente envolvidas com o que denomino globalização econômica de baixo para cima, ou globalização popular, seja como produtores, vendedores ou consumidores.
Quem de nós nunca viu produtos pirateados – eletrônicos, roupas, bolsas, tênis, brinquedos ou bugigangas globais – sendo comercializados em mercados populares ou por ambulantes e camelôs em locais como o Saara, no Rio de Janeiro; a rua 25 de Março, em São Paulo; o shopping Oiapoque, em Belo Horizonte; e a feira do Paraguai, em Brasília?
A globalização popular oferece acesso a fluxos de riqueza global que de outra maneira jamais chegariam às classes mais vulneráveis de qualquer sociedade.
Ela abre caminho para a mobilidade ascendente ou para a sobrevivência dentro de economias nacionais e globais que não conseguem oferecer pleno emprego a todos os cidadãos. Está estruturada por fluxos de pessoas entre mercados distintos que, por sua vez, são os nós do sistema mundial não-hegemônico.
Menciono a existência de um sistema mundial não-hegemônico porque há um hegemônico que reflete a lógica e os interesses do establishment econômico e político. O adjetivo “não-hegemônico” chama a atenção para a diferença central entre os dois: o acesso e o uso desiguais do poder controlador do Estado enquanto entidade reguladora da vida econômica, fiscal e política.
Na verdade, pessoas que operam no não-hegemônico não pretendem destruir o capitalismo já que, pelo contrário, almejam usufruir dele. O mesmo poderia ser dito de muitos dos que estão no sistema hegemônico: não querem realmente acabar com o não-hegemônico. Afinal, inúmeras de suas transações podem ser feitas por meio dele para driblar o fisco, praticar evasão de divisas, lavar dinheiro e realizar acumulação primitiva.
O sistema mundial não-hegemônico se estrutura a partir de segmentos e redes que se articulam de forma piramidal. No vértice da pirâmide, há esquemas e atividades mafiosas e criminosas e todo tipo de atos de corrupção. Mas, independente de quão poderosos e elitistas possam ser muitos dos agentes envolvidos nesse sistema, eles não conseguem atuar sozinhos. Há uma participação massiva de pessoas pobres que se encontram nos segmentos inferiores da estrutura piramidal. É aqui, efetivamente, que podemos falar da verdadeira globalização econômica de baixo para cima.
Outra distinção básica interna ao sistema mundial não-hegemônico é aquela entre o crime organizado global e a globalização popular: no primeiro, o uso da violência é um aspecto regulador central das transações econômicas; já o segundo baseia-se na articulação de redes muitas vezes formadas por grupos domésticos e primários em busca de nichos econômicos que exploram a ambiguidade de atividades comerciais vistas como ilícitas pelo Estado e lícitas pela sociedade, tal como a venda sem controle de produtos falsificados importados.
Os fluxos da globalização popular são animados por milhares de redes sociais que fazem movimentos pendulares, de escala variável, entre diferentes nós do sistema mundial não-hegemônico. Os atores que realizam essas conexões no Brasil são conhecidos como “sacoleiros”, uma alusão às muitas e enormes sacolas cheias de produtos que são comprados, por exemplo, em Ciudad del Este, para serem revendidos, digamos, na feira do Paraguai − um setor da feira de Caruaru (PE) a quase 4 mil quilômetros de distância.
A fronteira Ciudad del Este/Foz do Iguaçu é o principal nó do sistema mundial não-hegemônico na América do Sul, uma vez que conta com um mercado potencial de cerca de 250 milhões de pessoas, se incluirmos em seu raio de alcance o Brasil, a Argentina e, possivelmente, o Chile e a Bolívia. Também tem grande importância a região da rua 25 de Março, em São Paulo, dado o seu papel central na redistribuição de mercadorias para muitos milhares de sacoleiros brasileiros e o seu uso como centro alternativo toda vez que a fiscalização na fronteira com o Paraguai se intensifica.
Em Brasília, a história da feira do Paraguai, hoje com mais de 2 mil boxes e chamada oficialmente de feira dos importados, exemplifica como a globalização popular se insere em lutas por acesso a mercados urbanos alternativos.
Outros mercados importantes na América Latina incluem, em diferentes cidades colombianas, os chamados San Andresitos – em alusão à ilha caribenha e porto livre de San Andrés – e, na Cidade do México, a mega feira popular de Tepito, onde se encontram desde réplicas de tênis e relógios até motos e gigantescas TVs de tela plana.
O centro produtivo do sistema está na Ásia: Coreia, Tailândia, Cingapura, Taiwan e especialmente, no sul da China, a província de Guangdong, que historicamente tem sido uma grande porta para o comércio com o mundo e para a emigração formadora da diáspora chinesa.
A importância de Guangdong e de sua capital, Cantão, como meio de contato com o Ocidente era tamanha já no século XVI, que levou os portugueses a colonizarem Macau, na mesma província, em 1557, para só saírem em 1999. Em 1841, também na foz do rio das Pérolas, os ingleses fundariam Hong Kong, um entreposto do império britânico. A soberania chinesa sobre Hong Kong seria devolvida somente em 1997. Hoje, Macau e Hong Kong são Regiões Administrativas Especiais da República Popular da China, de acordo com o modelo “um país, dois sistemas”.
Contudo, mais importante ainda para a compreensão dessa área como centro do sistema mundial não-hegemônico foi o fabuloso desenvolvimento, na China Continental, de Shenzhen, que em 1980 se tornou a primeira Zona Econômica Especial. Localizada há poucos quilômetros de Hong Kong, na região econômica mais dinâmica da China, Shenzhen é o coração do sistema produtivo das mercadorias da globalização popular.
Hong Kong e Shenzhen desenvolvem relações diferentes e complementares. A ex-colônia britânica é uma grande porta de entrada para “sacoleiros” de todo o mundo, que cada vez mais adentram o território da China continental e vão a Shenzhen portando vistos de um dia adquiridos em Hong Kong para fazer suas compras em shopping centers como o de Luohu.
Além disso, muitos destes “turistas-compradores” – designação simplificada dos praticantes do comércio de longa distância típico da globalização popular – podem adquirir as mercadorias no edifício mais globalizado do sistema mundial não-hegemônico, o Chungking Mansions, em Hong Kong. Construído na década de 1960, o prédio tem cinco blocos de 17 andares, dos quais os dois primeiros são formados por lojinhas para compradores de mais de 100 nacionalidades. No restante da estrutura funcionam restaurantes e pensões que abrigam pessoas provenientes especialmente da Ásia, do Oriente Médio e da África.
A diáspora chinesa, a maior do mundo contemporâneo, tem um papel fundamental na globalização popular, que em grande medida se apoia nela. Não por acaso encontram-se cada vez mais migrantes chineses, em geral cantoneses, associados ao comércio do sistema mundial não-hegemônico. A galeria Pagé, por exemplo, o edifício mais globalizado da rua 25 de Março, em São Paulo, está dominada pela presença chinesa.
A história da rua 25 de Março ilustra certas dinâmicas centrais do sistema como um todo. Aquela região paulistana foi, desde o final do século XIX, caracterizada pela presença sírio-libanesa. Até hoje, os sírio-libaneses conformam a segunda mais importante rede de atores sociais para o sistema mundial não-hegemônico.
Costurada ao longo de muito tempo e baseada em redes de parentesco e amizade, afinidade religiosa e política, essa diáspora foi relevante não apenas para a internacionalização da região da 25 de Março e para o estabelecimento de vínculos e práticas comerciais internacionais, com a resultante transformação daquela área em espaço urbano etnicamente diferenciado. Desde finais da década de 1950, milhares de descendentes de árabes tornaram-se centrais para o comércio em Ciudad del Este e Foz do Iguaçu. A migração libanesa foi também crucial no estabelecimento da rede de San Andresitos, na Colômbia.
Porém, a partir dos últimos anos do século XX, em algumas situações, como na rua 25 de Março, em Ciudad del Este/ Foz do Iguaçu e na região do Saara, no Rio de Janeiro, a migração chinesa vem deslocando a libanesa, gerando novas segmentações étnicas e, potencialmente, novos conflitos interétnicos. Nas feiras do Paraguai em Brasília e Caruaru, ou em Tepito, na Cidade do México, também se nota uma crescente presença chinesa.
De fato, a globalização popular pode ter se transformado no maior propulsor do crescimento da migração chinesa no Brasil e em países como Argentina e México.
Diásporas da envergadura da chinesa e da libanesa fornecem uma base altamente orgânica para o desenvolvimento de atividades transnacionais, já que redes migratórias podem propiciar confiança e previsibilidade, como está implícito na noção chinesa de guanxi, em um universo onde é baixa a capacidade de implementação da lei.
Originais e falsificações
Além das motivações já amplamente discutidas na literatura sobre economia informal – como o não-pagamento de impostos, a vulnerabilidade dos trabalhadores envolvidos e a ausência de mecanismos de responsabilização nas transações comerciais e de prestações de serviços – a globalização popular se apoia fortemente na existência de superlogomarcas e na capacidade de realizar cópias tão perfeitas que se torna cada vez mais difícil ou irrelevante identificar as diferenças entre produtos falsificados e seus originais.
Em grande medida, as mercadorias “piratas” baseiam sua enorme rentabilidade na falsificação daquilo que Hsiao-hung Chang chamou de superlogomarcas, para designar o conjunto de marcas celebradas internacionalmente que se tornaram símbolos globais de status privilegiado – Louis Vuitton, Fendi, Victor Hugo, Armani, Dior, Gucci, Nike, Adidas, Rolex, Ray-Ban, Sony e muitas outras.
A superlogomarca está ancorada em um excedente excepcional, baseado exclusivamente em seu valor simbólico para os consumidores enquanto símbolo de status. Esse delta é acrescentado a uma mercadoria por meio da manutenção do monopólio encarnado na propriedade da superlogomarca. Manter, manipular e administrar a superlogomarca é um modo, praticado por grandes corporações, de possuir nichos exclusivos no mercado de símbolos globais de status e, em última instância, de incrementar enormemente seus rendimentos.
A diferença entre o valor real do objeto específico e seu valor simbólico excedente é o que impulsiona o mercado de superlogomarcas falsas, sempre vendidas por preços muito menores do que os “originais”. Dessa forma, verdadeiras ou falsas, as superlogomarcas desempenham um papel central na economia simbólica do luxo, em tempos onde a distinção de status confunde-se com a capacidade de possuir determinados objetos e manipular imagens que conferem aos consumidores identidades sociais diferenciadas.
A indústria de falsificações engatilha uma disputa pelo controle do extraordinário valor agregado pela superlogomarca às mercadorias. Entretanto, o impacto da falsificação sobre a indústria de bens autênticos não é necessariamente negativo. Mario de Andrade já dizia que a cópia valoriza o original. De fato, quanto maior o número de cópias, mais valorizado será o original, em especial para um segmento cada vez mais restrito de connaisseurs capazes de aferir autenticidade a objetos/símbolos verdadeiros e, assim, portadores dos significados de distinção social mais desejados.
Na verdade, as cópias subdividem-se em diferentes categorias. As de terceira linha são imitações burdas, trazendo, por exemplo, erros grosseiros de grafia da superlogomarca. As de segunda linha já são réplicas bastante razoáveis, enquanto as cópias de primeira linha podem ser verdadeiros simulacros cuja falsidade às vezes só é detectada por especialistas. O preço dos produtos varia de acordo com a qualidade da imitação. Corre a lenda de que em Shenzhen existem fábricas que produzem bens originais durante o dia e falsificados durante a noite. Nesse caso, não haveria diferença entre o original e o falsificado, a não ser a superlogomarca do primeiro.
A crescente qualidade das cópias bem pode ser o que atraiu consumidores de classe média e classe média alta a fazer compras em nós do sistema mundial não-hegemônico, como o shopping Oiapoque, em Belo Horizonte, e a feira do Paraguai, em Brasília. De qualquer modo, esse é um mercado atravessado pela dinâmica da moda, o que o torna certamente mais volátil e caprichoso. Por exemplo, a banalização de um determinado modelo, realizada por sua massiva falsificação, pode levar a uma saturação das vendas.
As cópias de superlogomarcas de roupas, sapatos e acessórios estão perdendo o seu lugar de principal fonte de lucros da indústria de produtos falsos para DVDs e programas pirateados.
Isso é coerente com a hegemonia do capitalismo eletrônico-informático e com sua flexibilidade interna, em especial pela sua capacidade de reprodução de cópias perfeitas, de simulacros. É cada vez mais simples copiar músicas, filmes, imagens, textos e outros materiais protegidos por copyright da internet ou de outras fontes de tecnologia digital.
As modificações introduzidas por novas tecnologias de reprodução nos últimos anos são rapidamente apropriadas, não apenas por adolescentes no recesso de suas casas, mas por pessoas interessadas em fazer dinheiro nas ruas e mercados do sistema mundial não-hegemônico.
O sistema normativo que procura regular a propriedade intelectual das superlogomarcas globais e, em especial, de bens culturais vai na contramão da inovação tecnológica contemporânea que permite uma potencialização enorme de indivíduos, redes e de suas capacidades de fazer cópias.
Ao não dar conta das novas dinâmicas e das múltiplas e inventivas apropriações que estão constantemente sendo realizadas por milhões de pessoas em todo o mundo, o sistema normativo atual prefere criminalizar e estigmatizar tal universo.
Assim, transformou-se em um empecilho para a liberação de uma gigantesca energia empreendedora e criativa localizada em diferentes partes do globo e que termina por se realizar através de operações que, com frequência, ocorrem sob o guarda-chuva do sistema mundial não-hegemônico.
Na prática, a “pirataria” revela o absurdo valor excedente que é agregado à mercadoria pela propriedade da superlogomarca. Como o capitalismo é baseado na apropriação socialmente sancionada de excedentes, ao denunciar tal excedente extraordinário, a “pirataria” tem um potencial subversivo que atinge um dos núcleos duros do sistema, ao mesmo tempo em que se imbrica contraditoriamente com ele, uma vez que se casa com as próprias necessidades de consumo, de (re)produção de identidades sociais e da distinção sob a égide do capitalismo eletrônico-informático.
O impulso estrutural dado pelas tecnologias contemporâneas de reprodução e pelo aumento da capacidade de se comunicar e viajar para distintos lugares leva a crer que a globalização popular prosseguirá, consolidando-se e estreitando, heterodoxamente, os elos entre os diversos nós do sistema mundial não-hegemônico.
*Gustavo Lins Ribeiro é professor titular de Antropologia e diretor do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Brasília (UnB). Pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e ex-presidente da Associação Brasileira de Antropologia.