De títulos e raças
Se Decotelli não foi humilhado sobretudo pelo fato de ele ser negro, eu teria dificuldades de imaginar outro motivo para a difamação desproporcional de que foi vítima
Campo Grande, 13 de abril de 2013. Diante dos ouvintes atentos, a senhora de vestido azul acinzentado se apresenta para a plateia como “mestre em Educação, em Direito Constitucional e Direito de Família”. Ao que tudo indica, não foi a primeira nem a única vez em que a palestrante se utilizou dessa digressão preambular para qualificar o seu “lugar de fala”. Instada a comprovar a titulação acadêmica anunciada publicamente, a oradora tergiversou: “Diferentemente do mestre secular, que precisa ir a uma universidade para fazer mestrado, nas igrejas cristãs é chamado mestre todo aquele que é dedicado ao ensino bíblico”. É verdade, está lá, em Efésios (capítulo 4, versículo 11): “E Ele designou alguns para apóstolos, outros para profetas, outros para evangelistas e outros para pastores e mestres”.
Folha de São Paulo, 11 de fevereiro de 2012. Em artigo no qual argumenta em favor da privatização dos aeroportos brasileiros, o jovem causídico assina o texto como “mestre em direito público pela Universidade Yale, advogado e presidente do Movimento Endireita Brasil”. Além desse registro público e escrito, o mesmo cidadão jactou-se do distintivo universitário em diversas oportunidades, como na entrevista concedida ao Roda Viva exatos 7 anos depois, em 11 de fevereiro de 2019.
O que os personagens supracitados têm em comum? Além da autoconcedida honraria acadêmica e da manutenção de seus cargos, eles dividem a mitomania como ethos interpessoal.
O fetiche da titulação acadêmica não é polêmica recente. Trata-se de patologia que extrapola o universo político, é verdade, mas é na vida pública que o descasamento entre o mundo onírico a realidade dos adultos causa estragos mais profundos. Bobagem pura.
Como se sabe, não é preciso carregar diploma universitário para se construir uma carreira política notável e honrada. José Sarney, imortal da ABL, é poeta de mão cheia; Fernando Collor ostenta vernáculo dos mais escorreitos que já se ouviu na Esplanada; FHC, o príncipe da sociologia brasileira, foi um dos mais brilhantes intelectuais latino-americanos do século XX; Dilma Rousseff, leitora voraz, é mulher de larga cultura; Michel Temer, professor de Direito Constitucional, expressa-se – verbal e visualmente – como um frade do século XVI. Luís Inácio, por sua vez, cansou de falar “menas laranja” e “pra mim fazer” e foi, de longe, o melhor presidente da Nova República; se não, o melhor de toda nossa história republicana.
Para não ficar apenas nos chefes do Executivo federal, Paulo Freire e Darcy Ribeiro foram, respectivamente, secretário e ministro da Educação dos governos Erundina (em São Paulo) e João Goulart. A despeito da importância maiúscula de suas contribuições teóricas para a área, Freire e Ribeiro não entraram para o panteão dos grandes gestores educacionais na história do Brasil. Por outro lado, um cidadão de escrúpulos facilmente descartáveis, como o foi Jarbas Passarinho, é festejado por parte da direita obtusa (e não só por ela) como um dos grandes ministros da Educação.
Dois dos mais brilhantes economistas brasileiros do século XX tampouco foram ministros exatamente exitosos. O Plano Trienal de Celso Furtado sequer tangenciou os objetivos a que se propôs, e Mário Henrique Simonsen (um tanto contrariado, é verdade) nos entregou a pouco lisonjeira década (perdida) de 1980.
Antonio Palocci é médico e foi um ministro da Fazenda louvável; José Serra é economista e foi um ótimo ministro da Saúde. Marina Silva era professora de História e foi a mais importante ministra do Meio Ambiente do país. E o bispo Marcelo Crivella, ele mesmo, foi ministro da Pesca, quando se sabia que o único peixe com o qual havia mantido (muito) contato era a garoupa-verdadeira, o simpático escamoso que estampa a cédula de R$ 100.
Desfeito o mito da titulação acadêmica, há de se fazer justiça ao escárnio a que foi submetido Carlos Alberto Decotelli da Silva, que iria assumir o Ministério da Educação. É verdade que, desde a transição de governo, o cidadão integrava uma turba de reputação duvidosa. Em tempos de guerra, difícil não corroborar a Lei de Godwin: nada, absolutamente nada que se permita associar-se à Aberração que Dispensa Predicado merece ser qualificado com um interlocutor legítimo. De toda forma, nos 15 segundos de fama a que teve direito, Decotelli mostrou-se um sujeito de trato lhano.
Ainda assim, sabe-se que se trata de rapaz, digamos, pouco atento a pormenores. Até porque atire a primeira pedra quem nunca copiou e colou trechos em 54 das 73 páginas de sua dissertação de mestrado profissional; quem jamais apertou o botão “concluído” para aquele doutorado cuja tese se esqueceu de apresentar; e quem nunca chamou de pós-doutorado um curso (o que não é) de 3 meses realizado no exterior. Não se pode dizer que se trata de alguém que prima pela verdade. Mas mentira por mentira, Paulo Guedes, o mago de Chicago, uiva aos 4 ventos que entende alguma coisa de economia, quando eu mantenho sérias dúvidas de que seria aprovado na minha disciplina (de graduação) que ofereço no Departamento de Economia da UFPR.
Mas, como poucos se deram conta, toda essa história pouco tem a ver títulos, verdades ou mentiras. O cidadão foi linchado, julgado e condenado pelo Tribunal Virtual; nas poucas entrevistas concedidas a jornalistas já ávidos por sangue, foi deliberadamente enxovalhado, ainda que com luva de pelica.
Por crimes muito, mas incomparavelmente muito mais atrozes, seu antecessor não foi escorraçado com tamanha avidez. Dirigiam-lhe críticas duras, é verdade, mas de rijeza ainda aquém do que a sua simples existência justificava. Apesar de ostentar diplomas de duas grifes acadêmicas – USP (graduação em Economia, com histórico escolar sofrível) e FGV (mestrado em Administração). Se oligofrenia ou lobotomia, pouco importa; todos sabemos que não foi pela atestada limitação intelecto-cognitiva que ele fugiu, digo, caiu.
Se Decotelli não foi humilhado sobretudo pelo fato de ele ser negro, eu teria dificuldades de imaginar outro motivo para a difamação desproporcional de que foi vítima.
Ivan Salomão, professor do Departamento de Economia da Universidade Federal do Paraná (UFPR)