Enquanto houver racismo, não haverá democracia
Transformar o racismo estrutural sistemático da sociedade brasileira não é tarefa da população negra, é responsabilidade da população branca e do conjunto das instituições brasileiras. Na atualidade, não nos bastam afirmações e posicionamentos antirracistas, é preciso alterar relações de poder que, efetivamente, atendam aos interesses e às necessidades da população negra
Quando o joelho de um policial branco norte-americano sufocou e matou George Floyd, muitos de nós por aqui pudemos sentir o peso daquele corpo sobre o pescoço e também os últimos suspiros deste, agora símbolo contemporâneo eterno contra a brutalidade racial e do combate ao racismo.
No Brasil, conhecemos bem o significado da violência policial contra a população negra, jovens negros, moradores de nossas favelas, periferias e alagados. Não há entre eles quem não tenha dezenas de histórias como essas para contar e, muitas vezes, em protesto, grite: “Basta!”. Sim, as comunidades reagem, as mães e os familiares gritam por justiça e não são ouvidos.
O Mapa da Violência 2019, elaborado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e pelo Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea), é categórico. Entre 2007 e 2017, mais de 420 mil pessoas negras – mulheres e homens – foram vítimas de homicídio sob incontestável violência policial, disputas entre gangues, mas sobretudo vítimas do comprovado histórico de discriminação racial e racismo no país. Na década mencionada, a taxa de homicídios entre a população negra aumentou mais de 33,1% – dez vezes mais que a taxa verificada entre a população branca, que foi de apenas 3,3%.
Apenas em 2017, dos mais de 65 mil homicídios no Brasil – o nível mais alto da série histórica –, 49,5 mil diziam respeito à vida de pessoas negras, e nos importamos com cada uma delas. Como ilustração desse quadro dramático, o Brasil possui oficialmente pouco mais de 4.800 municípios com população inferior a 50 mil habitantes. Isso significa dizer que qualquer uma dessas cidades poderia ter sido varrida do mapa. Isso é algo inadmissível, e apontamos, desde já, que a proposta do atual governo brasileiro de flexibilizar a posse e o uso de armas de fogo certamente aumentará esses trágicos indicadores.
Essas práticas de violação, violência policial e racismo têm sido denunciadas pelo movimento negro brasileiro há décadas. A Coalizão Negra por Direitos, unindo 117 organizações do movimento negro, tem essa luta como uma de suas prioridades. No primeiro semestre de 2019, ela atuou incisivamente no Congresso Nacional contra o Pacote Anticrime, defendido pelo então ministro da Justiça, Sérgio Moro, e alimentado por intensa propaganda governamental.
O projeto original, com consequências profundas em processos jurídicos de ordem penal, foi apresentado sem debate amplo com a sociedade. Em suas entrelinhas, aprofundava o padrão de acobertamento da responsabilidade legal das forças de segurança pública nas abordagens que, supostamente, deveriam zelar pelo princípio de proteção da população. Indo mais além, o pacote continha diversos aspectos inconstitucionais e materializava os compromissos de Jair Bolsonaro durante a campanha eleitoral junto aos seus eleitores. Ou seja, a imagem de armas com as mãos atravessava a porta do Congresso Nacional e queria se impor como ordem absoluta.
A reação de rechaço por parte da coalizão incluiu a mobilização de lideranças negras de todo o país em posicionamento crítico ao pacote, a elaboração de nota técnica específica de contestação em vários parágrafos, audiências com os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre.
Nesse episódio, vê-se com muita transparência que, na ausência de políticas sociais eficientes e eficazes para o conjunto da população, em especial para a população negra, sobram “políticas de segurança” truculentas, que violam, sem pudor, os direitos humanos das parcelas mais empobrecidas da sociedade brasileira.
Para lembrar um episódio recente de descaso com políticas sociais, a Emenda Constitucional n. 95, chamada PEC do Fim do Mundo, aprovada em 2017, congelou investimentos essenciais para as áreas de educação e saúde. Aprofundando a perversidade, a reforma trabalhista, também aprovada em 2017, alterou mais de cem pontos da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), fragilizando ainda mais as relações de trabalho em um país com histórico escravista. Todas as boas análises sobre essa específica reforma não deixam de mencionar que as mudanças instituídas precarizaram as relações de trabalho, destruíram a capacidade de negociação dos sindicatos em sua missão de proteger seus associados e têm como consequência a ampliação da informalidade no mercado de trabalho.
Segundo o IBGE, em 2018, do total da população brasileira, as pessoas negras constituíam a maior parte da força de trabalho, correspondendo a 57,7 milhões de indivíduos – ou seja, 25,2% a mais do que a população branca na força de trabalho, que totalizava 46,1 milhões. No entanto, entre os 12 milhões de desempregados, 8 milhões eram negros. Também nesse ano, 41,5% dos brasileiros com 14 anos ou mais de idade encontravam-se em ocupações informais. Entre os negros, a partir dessa faixa etária, a proporção era de 47,3% e, entre os brancos, de 34,6%. Finalmente, as trabalhadoras domésticas sem carteira de trabalho assinada representavam um contingente de 4,2 milhões de mulheres. Entre elas, 2,8 milhões eram negras e tinham rendimento médio mensal de R$ 672. As desvantagens de participação da população negra no mercado de trabalho, segundo o IBGE, se mantêm, mesmo quando considerado o recorte por nível de instrução.
O quadro distributivo de renda é, no viés desigualdade étnico-racial, semelhante às disparidades encontradas nas relações de trabalho. Em 2018, apenas 27,7% das pessoas negras se encontravam entre os 10% com os maiores rendimentos no país. Por outro lado, entre os 10% com os menores rendimentos, observou-se a sobrerrepresentação da população negra, com 75,2% dos indivíduos nesse estrato.
São esses motivos que levam a Coalizão Negra por Direitos a dizer em seu manifesto “Enquanto houver racismo, não haverá democracia” (https://comracismonaohademocracia.org.br/), lançado em 14 de julho de 2020, que “o Brasil é um país em dívida com a população negra – dívidas históricas e atuais”.
Nosso manifesto é um alerta à sociedade brasileira e, por isso, expressamos: “Não há democracia, cidadania e justiça social sem compromisso público de reconhecimento do movimento negro como sujeito político que congrega a defesa da cidadania negra no país. Não há democracia sem enfrentar o racismo, a violência policial e o sistema judiciário que encarcera desproporcionalmente a população negra. Não há cidadania sem garantir a redistribuição de renda, trabalho, saúde, terra, moradia, educação, cultura, mobilidade, lazer e participação da população negra em espaços decisórios de poder. Não há democracia sem garantias constitucionais de titulação dos territórios quilombolas e o respeito ao modo de vida das comunidades tradicionais, sem contaminação e degradação dos recursos naturais necessários para a reprodução física e cultural. Não há democracia sem o respeito e liberdade religiosa. Não há justiça social sem que as necessidades e os interesses de 55,7% da população brasileira sejam plenamente atendidos”.
Essa reflexão crítica à sociedade brasileira é resultado de 132 anos de uma abolição inconclusa e de um racismo estrutural sistemático. Transformar essa realidade não é tarefa da população negra, é responsabilidade da população branca e do conjunto das instituições brasileiras.
Na atualidade, é bom lembrar que não nos bastam afirmações e posicionamentos antirracistas, é preciso alterar relações de poder que, efetivamente, atendam aos interesses e às necessidades da população negra, das mulheres negras, dos homens negros, da juventude negra, das pessoas faveladas, periféricas, LGBTQIA+, quilombolas, praticantes de religiões de matriz africana, negros de distintas confissões de fé, povos do campo, das águas e da floresta. Enfim, é preciso praticar justiça racial a esses sujeitos políticos para que o país tenha futuro sob a égide da democracia e respeito integral aos direitos humanos. Essa é a intencionalidade do manifesto “Enquanto houver racismo, não haverá democracia”.
Nossa convocação é também um apelo à humanidade, uma humanidade que é negada aos corpos negros. E falar de humanidade em tempos de Covid-19 nunca foi tão necessário e urgente. Não devemos ser insensíveis aos sofrimentos das pessoas infectadas, à insegurança que se abate sobre suas famílias, à exaustão dos profissionais da saúde – isso não é uma “gripezinha”, é uma pandemia que marcará a história de nossa geração e das gerações futuras.
Hoje, 30 de junho de 2020, devemos ter e demonstrar respeito à memória dos mais de 58 mil brasileiros e brasileiras vítimas fatais da Covid-19 e responsabilizar o governo federal pelo descaso com essa tragédia humanitária. E aqui não podemos esquecer que a população negra, os povos indígenas e a parcela mais empobrecida do país são os mais atingidos.
Todos esses cenários são indícios transparentes de desigualdade social e desigualdade étnico-racial que exigem mudanças estruturais. As instituições e os partidos políticos não podem se dar ao luxo de reduzir nossa agenda por direitos a uma pauta identitária. Segundo o IBGE, a sub-representação da população negra na Câmara dos Deputados, nas assembleias legislativas estaduais e nas câmaras de vereadores é um fato incontestável. Apesar de ser a maioria da população, esse grupo representa apenas 24,4% dos deputados federais e 28,9% dos deputados estaduais eleitos em 2018. Entre os vereadores eleitos em 2016, apenas 42,1% se autodeclararam negros. A sub-representação de gênero e raça é ainda mais gritante. Em 2018, as mulheres negras constituíram apenas 2,5% dos deputados federais e 4,8% dos deputados estaduais eleitos. Entre os vereadores eleitos em 2016, as mulheres negras constituíam apenas 5% dos representantes.
Sabemos que formar uma liderança partidária negra comprometida não é uma tarefa fácil neste país. Por isso, Marielle Franco, mulher, negra, ativista dos direitos humanos, “cria da Favela da Maré”, como gostava de se apresentar, foi e sempre será uma referência de luta para todos e todas nós. Seu brutal assassinato e o de Anderson Pedro Gomes exigem responsabilização. O Estado brasileiro não pode se manter omisso e acovardado perante a execução de uma defensora dos direitos humanos. Para nós, o assassinato de Marielle representa o quadro dramático e crescente de violência e violação de direitos na sociedade brasileira contra as populações negras e indígenas, a ruptura do pacto civilizatório e uma ameaça sem precedentes à democracia.
Sim, as organizações do movimento negro contemporâneo sempre estiveram comprometidas com o aprimoramento da democracia no Brasil. Uma das formas mais objetivas de expressar esse compromisso foi contestar o mito da democracia racial e se dedicar à organização política da população negra. É assim que atuamos em fóruns nacionais e internacionais. É por isso que acreditamos na organização global de negros e negras contra o racismo, o colonialismo, o neofascismo, o neonazismo, o neonacionalismo, a xenofobia e todas as formas de discriminação e intolerância.
Esses princípios foram debatidos no 1º Seminário Internacional da Coalizão Negra por Direitos, realizado em novembro de 2019, na cidade de São Paulo, com a presença de mais de cem organizações do movimento negro de vinte estados brasileiros e lideranças negras da Colômbia, Azânia (África do Sul), Equador, Reino Unido, Togo e Estados Unidos, incluindo catorze representantes do movimento Black Lives Matter. Nesse momento, elaboramos a Carta Programa da Coalizão Negra por Direitos, com catorze princípios e 25 reivindicações. Nela, mencionamos: “A História exige da população negra brasileira e de toda a diáspora africana ações articuladas para o enfrentamento ao racismo, ao genocídio e às desigualdades, injustiças e violências derivadas dessa realidade. Esta Coalizão se reúne para fazer incidência política em nosso próprio nome, a partir dos valores da colaboração, ancestralidade, circularidade, partilha do axé (força de vida herdada e transmitida), oralidade, transparência, autocuidado, solidariedade, coletivismo, memória, reconhecimento e respeito às diferenças, horizontalidade e amor. Em defesa da vida, do bem viver e de direitos arduamente conquistados, irrenunciáveis e inegociáveis, seguiremos honrando nossas e nossos ancestrais, unificando em luta toda a população afrodiaspórica, por um futuro livre de racismo e de todas as opressões”.
Essa é uma construção ideológica que se apresenta ao país, e ao mundo, com a firme disposição de enfrentar as múltiplas formas de injustiça racial e racismo e fortalecer a autodeterminação de organização da população negra.
Em nosso passado formamos quilombos, forjamos revoltas, lutamos por liberdade, construímos a cultura e a história deste país. Hoje lutamos por uma verdadeira democracia, exercício de poder da maioria, e conclamamos aqueles e aquelas que se indignam com as injustiças de nosso país a reconhecer e respeitar essa história e construir um futuro a partir desse legado.
*Wania Sant’Anna é historiadora, vice-presidente do Ibase e membra da Coalizão Negra por Direitos; Maria José Menezes é bióloga, ativista feminista negra e membra da Marcha das Mulheres Negras de São Paulo, Mahin Mulheres Negras e Coalizão Negra por Direitos.