De uma verdade a outra
Como o Banco Mundial passou de um desenvolvimentismo autoritário à crença absoluta nos valores do mercado — e por que esta última lhe permite cooptar algumas ONGs, especialmente sob o mote da “boa governança”…Nicolas Guilhot
Há 50 anos, o Banco Mundial (BIRD) tornou-se o árbitro em assuntos sobre desenvolvimento. Sua publicação anual, World Development Report, fixa as prioridades, difunde a terminologia, os conceitos e problemáticas que orientam a própria idéia de desenvolvimento. Da “redução da pobreza”, de que gostava Robert McNamara, presidente do banco entre 1968 e 1981, à “boa governança”, passando pelo “ajuste estrutural” e pelo “desenvolvimento sustentável”, o repertório do BM sustentou os debates, orientou a pesquisa e produziu conhecimento.
No início, em março de 1946, o Banco Mundial foi objeto de um compromisso entre os administradores públicos dos governos que o fundaram — preocupados em exercer um controle sobre os termos de operações comerciais e o rumo das divisas — e os banqueiros de Wall Street, dispostos a limitar a influência de Washington sobre a instituição. Suas operações — inicialmente mais voltadas para a reconstrução que para o desenvolvimento, e mais para as garantias sobre os investimentos que para os créditos diretos — revelavam uma gestão prudente. Eram tão restritas que os investidores associavam o limite da credibilidade financeira da instituição ao capital subscrito pelo seu principal avalista, os Estados Unidos.
A “flexibilização” dos empréstimos
O fato de a instituição se situar na órbita do setor público norte-americano foi durante muito tempo um considerável obstáculo ao seu auto-financiamento junto aos mercados. Foi preciso esperar pela década de 50 para que ela passasse a merecer a confiança dos investidores norte-americanos e transformasse suas obrigações em investimentos seguros, do tipo que os operadores classificam como “AAA”.
Lucros altos, autonomia financeira, assim como uma restrição orçamentária, levaram o Banco Mundial a diversificar e a “flexibilizar” seus empréstimos, permitindo-lhe desenvolver uma identidade própria distante da sua origem estatal. Até então, na verdade, tratava-se de um negócio entre banqueiros e administradores: os engenheiros e uns poucos economistas que lá trabalhavam constituíam o baixo escalão. Mas, para reinvestir seus excedentes, o Banco precisou explorar novas formas de empréstimos e, em conseqüência, flexibilizar seus critérios financeiros, sem contudo perder a confiança dos investidores institucionais.
A era “desenvolvimentista”
O recrutamento de economistas foi a resposta inicial a essa preocupação: eles foram encarregados de preparar a expansão do Banco Mundial, calculando as “taxas de rentabilidade” dos novos projetos — um exercício bem diferente da “estimativa de necessidades” praticada antes, que não entusiasmava os banqueiros.
O reforço do componente econômico do pessoal acompanharia a expansão do BIRD. Essa iniciativa iria tirar proveito da política de expansão posta em prática por Robert McNamara. Sob seu comando, o volume de empréstimos passaria de 1 a 13 bilhões de dólares, o pessoal seria multiplicado por quatro e o orçamento administrativo por 3,5. [1] Esse crescimento transformou o Banco Mundial num verdadeiro operador intelectual do desenvolvimento, reforçando ao mesmo tempo a posição dos “desenvolvimentistas” de dentro da instituição e a sua visibilidade.
O ethos reformista de Kennedy e Johnson
Ao longo da década de 60, a valorização do saber econômico no Banco Mundial também significou, nos círculos políticos de Washington, o prolongamento de um investimento mais amplo em acadêmicos. O governo de John F. Kennedy, por exemplo, marca o triunfo dos “assessores políticos” recrutados nas prestigiosas faculdades da Costa Leste. Os economistas foram quem mais se beneficiou com esta nova articulação entre o meio universitário e um meio político de fronteiras tênues e permeáveis. A Brookings Institution, entidade privada de pesquisa em ciências políticas e econômicas, deu um bom exemplo desse encontro entre políticos com poder de decisão e acadêmicos. Bastante presente no governo Kennedy, essa instituição estabeleceria também laços informais mais estreitos com o BIRD, de cuja historiografia oficial se encarregaria em duas ocasiões. [2]
Os economistas do Banco Mundial da década de 60 pertenciam ao mesmo meio e partilhavam do mesmo ethos reformista que os governos John Kennedy e Lyndon Johnson. E isso, não apenas por ser o “desenvolvimentismo” uma “ramificação” da economia keynesiana, mas também porque o keynesianismo servia de ideologia espontânea aos economistas burocratas, defensores ferrenhos da intervenção do Estado na economia. Não surpreende, portanto, que os grandes temas que emergiriam no BIRD — redução da pobreza, crescimento e redistribuição — tenham influenciado as políticas internas dos governos norte-americanos da época: “Guerra contra a pobreza”, de Kennedy, e “Grande sociedade”, de Johnson.
“Fichando” os economistas
Essa aliança chegou ao fim com a crise da dívida e a chegada de Ronald Reagan ao poder, em 1981. Durante a década de 70, o “Banco de McNamara” — secretário da Defesa, de 1961 a 1968, nos governos Kennedy e Johnson — era um santuário do pensamento keynesiano e um templo da modernização do Estado. A chegada de uma equipe neoconservadora à Casa Branca deixou o Banco Mundial numa situação ideologicamente difícil, com relação a Washington, pois aquele era um momento em que a dívida do Terceiro Mundo questionava suas práticas expansionistas. A partir daí, o Banco passou a ser entendido como uma burocracia perdulária ansiosa por substituir o setor privado. A ponto do então nomeado sub-secretário de Estado do Tesouro, Beryl Sprinkel, ter encomendado um relatório para determinar se o Banco tinha tendências “socialistas”…
O remanejamento foi brutal, com uma mudança radical na composição das competências e das clientelas científicas do banco. Embora a economia permanecesse a ciência rainha do desenvolvimento, entra em campo uma nova geração de economistas, próximos da Escola de Chicago. Não somente a reorganização do serviço foi drástica — apenas oito titulares dos 37 cargos de chefia conservaram suas funções — mas todo um sistema de vigilância foi posto em prática, com o objetivo de “fichar” os economistas em função de sua filiação às diversas escolas de pensamento. Na opinião da equipe do novo governo, “faltam a competências econômica e técnica adequadas” ao pessoal do Banco, “e continuam apegados às práticas estatais do passado”. [3]
Marketing e relações públicas
Os conceitos ultraliberais — que vêem nos funcionários públicos parasitas apegados a seus privilégios entravando o funcionamento harmonioso dos mercados — tornam-se a linha oficial. Essa contra-revolução ideológica no alto escalão não passa do coroamento de um processo mais amplo e mais antigo. [4] Ao contrário de seus antecessores keynesianos, que valorizavam seus conhecimentos através de vínculos mais ou menos formais com o governo, os representantes da Escola de Chicago compensavam seu distanciamento dos centros do poder com a profissionalização acrescida de disciplina. A partir de então, seria em torno da formalização matemática que se estabeleceria a norma de competência em economia, o que excluiria os “desenvolvimento”, tidos como generalistas, ou mesmo como literatos.
Para valorizar suas competências, os economistas liberais se aliaram não somente ao mundo das finanças mas também às forças neoconservadoras, que lhes deram ouvidos e de quem se tornariam a vanguarda ideológica. Eles iriam inundar os inúmeros institutos de pesquisa e os think tanks, [5] retaguarda intelectual da eleição de Ronald Reagan, em 1980. Pouco a pouco, um parecer pericial passa a se assemelhar a uma transação, onde um “produto” é entregue a um “cliente” para responder às suas necessidades. Seu domínio do marketing e das relações públicas permite a esses novos especialistas burilar suas imagens junto aos meios de comunicação, mais ávidos à medida que esses vulgarizadores se mostram “desejosos e capazes de explicar a jornalistas tudo em menos de uma hora”. [6]
O Consenso de Washington
Os especialistas da era Kennedy compartilhavam um ethos tecnocrático, pretensamente apolítico, destinado a racionalizar a administração; as novas redes de consultores reintroduziriam em sua ação um certo militantismo que iria marcar os políticos desenvolvimentistas.
Com sede na capital norte-americana, grande devoradora de competência econômica, o Banco Mundial não pôde permanecer impermeável às mudanças que não só afetaram o seu meio político como a sua principal componente profissional. A economia neoclássica penetraria na instituição: as avaliações de projetos, bem como a necessidade de quantificar os desempenhos, levariam pouco a pouco os economistas do banco a utilizar abordagens e modelos neoclássicos, sob a aparência de rigor metodológico.
O chamado Consenso de Washington iria refletir a convergência das estratégias adotadas por esses novos economistas, os neoconservadores, e pelos meios financeiros. Essa convergência resultaria numa aliança relativamente estável ao longo da década e facilitaria a aproximação de Wall Street com o Banco Mundial em função da crise da dívida — já que banco contribuíra para salvar algumas instituições bancárias demasiado expostas do mercado de empréstimos comerciais para o desenvolvimento. A ideologia e as políticas de ajuste estrutural traduziriam esses interesses em termos de desenvolvimento. E as políticas de exportação competitiva, de privatização e de desregulamentação seriam impostas ainda mais facilmente porque, após 1982, com o esgotamento total dos empréstimos dos bancos comerciais aos países em via de desenvolvimento, o BIRD voltou a se encontrar em posição de força, a do credor de última instância capaz de impor suas condições.
As ONGs entram em cena
Em sua ofensiva ideológica, os pensadores neoliberais e seus economistas adotaram uma estratégia em que a competência intelectual era indissociável do engajamento partidário. Essa estratégia rompia com o perfil tecnocrático, quase científico, dos especialistas da geração anterior, para quem racionalidade rimava com neutralidade. Ora, inaugurando uma fórmula que se revela “vencedora”, os novos consultores criaram um precedente, que seria explorado por outros excluídos das instituições dominantes do desenvolvimento: as organizações não-governamentais (ONG) e os acadêmicos não economistas. Ao longo da década de 80, a aproximação progressiva desses dois grupos viria consolidar, sob outra forma, a aliança entre o ativismo dos valores e a competência científica que havia garantido o sucesso dos inimigos dos ultraliberais. E, como eles, os acadêmicos e as ONG iriam ser bem-sucedidos aos olhos do Banco Mundial e das grandes agências de ajuda para o desenvolvimento.
Tidas como militantes e amadoras pelos profissionais, as ONGs foram durante muito tempo negligenciadas ou combatidas, quando se faziam passar por porta-voz dos prejudicados pelos ajustes estruturais. Com a emergência de entidades humanitárias, que centraram suas atividades em situações extremas — capazes até de decretar um estado de urgência e, por conseguinte, aptas a mobilizar a opinião pública e a financiar suas campanhas — as ONG de desenvolvimento se encontraram diante de uma nova situação.
Facilitando a despolitização
A maioria delas passa por um declínio inexorável, enquanto as outras tiveram de se dobrar a uma disciplina empresarial para poder enfrentar um mercado em que a concorrência se tornou acirrada. Essa adaptação leva a uma profissionalização dessas organizações. Escolados nas técnicas de fund-raising e de relações públicas, os novos representantes das ONGs anglo-saxônicas são profissionais.
Os requisitos exigidos para cargos de responsabilidade nas grandes ONGs revelam um perfil eloqüente desses ativistas transformados em gerentes. Diplomados em ciências jurídicas, comerciais ou administrativas, com experiência e dominando as engrenagens dos circuitos políticos e do mundo dos negócios: esses empreendedores humanitários nada têm a ver com o idealismo militante comumente associado a esses meios. Essa profissionalização rigorosa iria levar as ONGs a recrutar um pessoal cada vez mais parecido com o das instituições a quem faziam oposição. O que não somente atenuaria o seu discurso crítico, como facilitaria uma despolitização já amplamente iniciada.
Projetos com ONGs decuplicam
Portanto, a partir de 1985-1986, a influência das ONGs junto ao Banco Mundial se explica menos por uma espécie de mobilização da base — a repercussão das manifestações “anti-FMI” nos países em via de desenvolvimento foi praticamente nula em Washington — que por sua compatibilidade profissional com a instituição. O próprio banco saberia tirar vantagens dessa situação. Ao invés de ver essas organizações como estraga-prazeres em potencial — caso em que é necessário antecipar-se, pagando um tributo retórico a algum de seus temas prediletos — o BIRD compreendeu que o seu profissionalismo poderia servir a seus interesses. E que o diálogo era possível.
O Banco Mundial multiplicaria então o volume de financiamentos a ser geridos por organizações não governamentais, as quais, por sinal, receberiam generosas comissões. A proporção dos projetos do banco envolvendo a participação de ONGs passa de 5% em 1988 para 47% em 1997. Essa evolução, que aproxima os padrões profissionais das ONGs aos do Banco, aumenta a permeabilidade entre os dois setores. Para muitos jovens diplomados, as ONGs tornam-se um trampolim profissional rumo ao mundo das organizações interestatais.
A política da “boa governança”
Pouco a pouco, as opções políticas desses novos atores oficiais do desenvolvimento se aproximam de um reformismo cada vez mais aceitável aos olhos do Banco na medida em que ele é esterilizado por suas práticas profissionais e pela condição de terceirizados. Os projetos de desenvolvimento passam por uma “reetiquetagem administrativa”, [7] salpicados de ecologia, gênero e sociedade civil. Nada que alterasse a substância ou questionasse sua orientação neoliberal.
O tema da “boa governança”, imposto pelo Banco como matriz para as políticas de desenvolvimento ao longo da década de 90, [8] reflete essa nova coalizão. Enfatizando a “participação” dos cidadãos, a “transparência” das instituições, o respeito pelo “Estado de direito” e o desenvolvimento da “sociedade civil”, o Banco adota uma linguagem pró-democrática na qual as ONGs reconhecem, prazerosamente, sua contribuição. E, para felicidade geral, essa linguagem bate de frente com a preferência quase explícita que antes a instituição manifestava pelos regimes quase-autoritários, tidos como mais aptos a aplicar as políticas de ajuste estrutural devido à capacidade de resistir às pressões sociais. [9]
Comemorando a privatização
Mas a “boa governança” iria principalmente representar a extensão da política de ajustes estruturais aos sistemas políticos dos países em via de desenvolvimento. Na verdade, as autoridades do Banco Mundial explicaram os resultados desastrosos das políticas sustentadas ao longo da década de 80 [10] como um erro: teriam querido reestruturar as políticas macroeconômicas dos países em via de desenvolvimento sem levar em conta o conjunto dos fatores institucionais que influenciaram a sua implementação. Portanto, o fracasso foi atribuído a blocos políticos internos, a interesses particulares ou ao tráfico de influência. E, paradoxalmente, os neoliberais viam em sua derrota a prova do mais bem fundado dos pressupostos anti-estatais das políticas de ajuste.
A solução preconizada foi, portanto, a de reformar a estrutura política, abrindo-a a grupos sociais que revezariam as políticas do banco — o que passa por uma política de democratização. A maioria das ONGs internacionais e de seus pupilos locais se acomodaram de tal forma com esta guinada em direção à “sociedade civil”, que o segmento arrancado ao Estado e aos serviços públicos (em via de desaparecimento) chegou a ter, para elas, um sabor de vitória.
Hora e vez dos cientistas políticos
Para as ONGs, tratava-se também de constituir um capital de competência destinado à prestação de serviços. Para tanto, apelaram para sociólogos, e principalmente para cientistas políticos, cuja autoridade em matéria de desenvolvimento era pouco reconhecida quando a política de ajuste estrutural privilegiava a questão macroeconômica, reservando um monopólio intelectual quase absoluto aos economistas. Anteriormente privados de autoridade devido à natureza de seu saber, os não-economistas passaram então a utilizar as ONGs — ansiosas por contar com especialistas em “participação” ou em “sociedade civil” — como “cabos eleitorais” para a divulgação de suas pesquisas, de seu conteúdo, disseminando-as. [11]
Se, como dizem Susan George e Fabrizio Sabelli, “os acadêmicos e representantes de ONGs que dedicaram sua competência e energia ao estudo dos efeitos do ajuste estrutural não perderam seu tempo”, [12] não foi tanto por causa do interesse científico da questão, mas porque o saber que acumularam serviu como moeda de troca num mercado de especialização em expansão. Essa conversão beneficiaria mais ainda os cientistas políticos, uma vez que os temas de desenvolvimento que agora surgem no Banco Mundial irão apelar para a sua competência.
Convivendo com a promiscuidade
Enquanto a bandeira do ajuste estrutural era “fixar os preços certos” (get the prices right), a de “encontrar o equilíbrio político certo” (get the politics right), a “boa governança”, torna-se a nova palavra de ordem, o pré-requisito para um ajuste estrutural bem sucedido. Ora, a análise econômica tradicional está bastante aquém de poder avaliar esses novos projetos, que pretendem aumentar a “transparência” das instituições, reforçar a dimensão jurídica das relações sociais, medir o grau de desenvolvimento da “sociedade civil” ou o nível de “transparência” das estruturas governamentais. É, portanto, aos cientistas políticos que se recorre.
A “boa governança” vai propiciar-lhes uma revanche profissional em relação a seus colegas economistas que, na década anterior, transitavam, com todas as despesas pagas, entre seus escritórios acadêmicos e as instituições multilaterais, onde, monopolizando a questão do desenvolvimento, ainda embolsavam algum trocado.
A partir de 1991, um memorando interno propunha conceder um papel mais importante aos não economistas (os “Nessies”, no jargão do Banco) na preparação dos projetos. Para alguns d