Democracianas brasileiras op nº 3
Uma tenaz crítica à esquerda deve ser feita, a não oportunizar esse mérito exclusivo à direita, sobretudo com suas recentes capitulações, mas é fundamental partir dela, para sua renovaçãoRonald Ferreira da Costa
Overtüre
Quando Paulo Freire postulava que “a leitura do mundo precede a leitura da palavra”, o fazia para circunscrevê-la, desde um ponto de vista marxista, como mediadora dessa ambivalência entre o sujeito e o mundo, como potencial ato transformador deste por aquele, na medida em que da leitura decorre a escrita. Desde aí que a não mediação – não leitura e não escrita – é de lógica invertida, em que o mundo e suas dinâmicas naturais ou sociais transformariam o homem, por opressão de todas as ordens, tal o imperativo de aferrarmo-nos a essa mediação. Reconhecer arqueologicamente as leituras – e decorrentes narrativas – que conformaram o presente implica admitir um cientificismo aristotélico de repetição e previsibilidade amparado na estrutura de conceitos logicizantes de que, mormente, elas se constroem. Agora, considerar, com Nietzsche, que esses conceitos apenas designam metaforicamente as coisas e não apreendem a coisa em si, de modo que ela, vertida em palavra, venha a se tornar uma sobreposição metafórica (entre coisa em si, ideia, significante, signo e significado), compreenderemos que nosso objeto, qualquer que seja, é um pálido sucedâneo do real. Nessa ordem de ideias, poderíamos, à guisa de experimentação analítica, inverter o tabuleiro freiriano. Quando mais adiante Paulo Freire acrescenta que a palavra dita “sai do mundo lido”, como que por imanência de significados, equivale considerar que somente me seja possível qualquer leitura do mundo, a partir de uma pré-estruturação metafórica, da que lançarei mão, e que de nenhum modo me é inata – o que ora nos revela uma séria limitação da leitura e do plano da expressão. Ora, a que conclusões é possível chegar no marco dessa epistemologia fundamental? Se minha possibilidade de leitura se circunscreve sob um determinado aparelho formal de enunciação estruturalista, de que falava Benveniste, o mundo que eu vejo, necessariamente, está encerrado nesse arcabouço epistemológico. Disso decorre, ao menos, três conclusões: (i) Paulo Freire iludiu-se em supor que a mera leitura apriorística do mundo traria a emancipação do sujeito, porque (ii) o conceito não apreende a totalidade do real e, portanto, não pode senão designá-lo em representação enviesada e metafórica, (iii) daí que todo esforço de previsibilidade a partir dessa base de reflexão aristotélica não passa de uma previsão das respostas em si, pois que os conceitos e os termos já estão dados, dispostos no mesmo tabuleiro, e desgastados como troquel que perdeu seu valor, diria Nietzsche.
Na abertura desse ensaio-concerto, resta a ilógica tarefa de definir o objeto. Ilógica, sobretudo, a partir de uma rigorosa demarcação titular, cujo viés delimitante é inteiramente subjetivo. Não obstante, a permissividade metodológica, ou cadencial, há de me salvaguardar da incoerência, frente à problemática dos primeiros compassos – a trataremos aqui de mera dissonância, ou, preparação. Assim, o Opus nº 3 das democracianas brasileiras pressupõe as primeiras, em referência ao movimento Diretas Já, de 1984, que põe fim ao golpe de 1964, e aos Caras-Pintadas, de 1992, que culminou na deposição do presidente Fernando Collor, ambas por força e poder da mobilização popular. Porque não sejam objetos de análise, o concerto se sugere em 3 Opera, das que, das anteriores, vale consideração. O que se orquestra hoje no teatro nacional certamente não encerra o concerto, mas vale uma parte dele. Se o leitmotiv inicial desse Op. Nº 3, podemos encontrá-lo em 2013, com o movimento Passe Livre na cidade de São Paulo, o derradeiro acorde não me proponho a prever. Haverá o ouvinte oportunidade de notar, no entanto, algumas dissonâncias nos movimentos, porque, em resposta ao que adverti acima, a cadência geral se dará por ausência de previsibilidades, embora bem demarcadas. Para essa harmonização predominantemente tensiva nas contradições, interpõem-se enxertos na linearidade previsível da argumentação, quais sejam, os discursos narrativos, dissonantes aos leitmotive predominantes, que não se arvoram em elucidar o real, mas apresentam sua própria fragmentariedade e que, no conjunto, formam a presente tessitura. Por esse mesmo propósito, o objeto de análise faz-se conjuntural, nos discursos sociais extralinguísticos.
Presto em si maior
Quinta-feira. Final de tarde. A massa quer se fazer sujeito, quer ser ouvida. Haverá algo a dizer. Automóveis deviam passar ali moventes e caóticos, mas insurgentes sujeitos ocupam seu lugar. Por mobilidade se mobilizam. 20 centavos são 6,5% de indignação. O conteúdo é justo, disse o prefeito, o reajuste também. Assustado, surpreendido. O protesto atravessou dias e fronteiras, presto se tornou um movimento maior, presto, em si, maior. Já são jornadas.
As jornadas de 2013 surpreenderam pela amplitude, e pela articulação caótica. As reivindicações tornaram-se diversas e, de diversas, antagônicas. De direitos sociais a expressões totalitárias e fascistas, pareciam transitar até orgânicas as palavras de ordem. Se compararmos as “Jornadas” com a “Passeata dos 100 mil”, o “Fora Collor!” e, mais recentemente, com o 15-M espanhol, fica patente a “crise linguística” dos indignados da av. Paulista (Fernandes, 2015). Se na expressão poética das Jornadas havia um campo semântico de reivindicação, era minado. Frederico Fernandes define essa crise linguística como “a multiplicidade de formas de comunicação que rompem com a unidade ao gerar o dissenso”, mas ao fazê-lo, a contrapõe com a subjetividade das expressões individuais que, enquanto tais, apresentam-se artísticas, dado o uso da função poética jackobsoniana. Utilizando-se de conceitos de Giorgio Agamben, o professor coloca essa poética do espaço público como “potência de ruptura da vida nua, mesmo que a falta de uma ideologia consensual os aproxime mais da zoé do que do biós políticos”, e, mais adiante, conclui:
Por isso, a poesia das ruas de Junho de 2013 acaba tendo uma função que é não menos literária: a função humanizadora. Em meio à crise linguística protagonizada por um coletivo, a forma como cada sujeito encenou sua individualidade possibilitou um fazer (não-prático), indiciador da excepcionalidade política no mundo contemporâneo (Fernandes, 2015).
Ressalvando a lucidez com que propõe a ideia de “crise linguística” e a preciosa leitura estética dessas manifestações que nos faz notar Frederico Fernandes, conjugar ambas, concluindo uma “função humanizadora” a partir da “falta de uma ideologia consensual”, o que denota a crise linguística aproximando aqueles atores sociais da zoé, não pode coincidir com a ideia de Giorgio Agamben, de que lança mão, sendo a vida nua a própria animalidade, por ignorância e alheamento da vida política. O que se nota, portanto, não é uma ruptura, mas a manutenção da vida nua daquele corpo de indignação.
Poderia concordar com isso, Fernando Haddad, prefeito de São Paulo, quando, desde seu lugar histórico, afirma: “Nunca tinha sido procurado pelo movimento social para discutir essa proposta (…) É um movimento que não buscou interlocução” (Haddad, 2015). E, nesse sentido, sua leitura das Jornadas é a de um movimento de conteúdo interessante, porém todo novo na forma, ou seja, reivindicações de direitos sociais, mas atuação apolítica, sem interlocução, como o pressuposto do biós políticos. Essa forma, pois, haveria servido mais à direita que à esquerda que, por convicções históricas, está conformada com a natureza da interlocução. Ali, segundo Fernando Haddad, inaugura-se a expressão da direita conservadora como movimento de rua, havendo expulsado a esquerda e os conteúdos progressistas dessas reivindicações.
Relevadas as parcialidades dessa conclusão, cumpre agora compreender que esse é o primeiro movimento dessa orquestração. Havendo ou não plausibilidade nessa clivagem com a qual racionaliza as Jornadas de 2013 Fernando Haddad, não se há negar termos ali o encetamento de uma crise, em si, maior.
A grande imprensa conservadora no Brasil, que a princípio assistiu incauta e igualmente embasbacada aquelas Jornadas, demorou pouco a acordar, ou ser acordada, e assistimos os vândalos black blocs darem lugar a expressão mais legítima da opinião pública de toda a sociedade brasileira. O desdobramento das Jornadas de 2013 nas posteriores manifestações manteve algumas de suas características principais, agravando outras, como a não interlocução. A isso, Silvio Caccia Bava alertava que:
[é] preciso superar a interdição do debate sobre as alternativas de desenvolvimento e trazer para o espaço público as análises e propostas que podem enfrentar a crise de uma perspectiva que garanta a retomada do crescimento com inclusão social e sustentabilidade ambiental (…) [há], no entanto, uma condição essencial: a reapropriação do espaço público. Os cidadãos e suas representações coletivas precisam vir a público e debater suas ideias, suas posições. É o contrário do panelaço, que interdita a fala (Bava, 2015).
No mesmo artigo editorial, mês de setembro de 2015, o editor anuncia o lançamento da Frente Brasil Popular como acontecimento mais importante, articulador de frentes de resistência. De fato, lançada na assembleia legislativa de Minas Gerais, a Frente Brasil Popular articula as mais diversas representações populares com compromissos expressos, pela soberania nacional. Não se trata, porém, de reapropriar o espaço público, pois o panelaço que interdita a fala, já ocupou esse espaço, como o próprio editor reconhece, mas de disputá-lo. O que se desenha hoje é, nesse teatro de manifestações espetaculares, uma nacional polarização.
Empreender a leitura dessa polaridade dentro de um marco referencial, de interioridade e exterioridade, cujo maniqueísmo se atualiza a cada binômia traduzível – esquerda/direita, progressistas/conservadores, povo/elite, petralhas/coxinhas – somente nos permitirá alcançar pressuposições fundamentais de respostas predeterminadas por sujeição conceitual que vínhamos procurando evitar, por pouco ou nenhum ineditismo que nos oferece. Basta, por outro lado, notar a orquestração hoje operada que nada tem de fenomenológica, mas de disputa por espaços de representação de interesses de diferentes segmentos que ora se desencontram. Diferentes atores se fazem notórios, alguns por ineditismo na cena: partidos, movimentos populares, imprensa tal e imprensa qual, Poder Executivo, Poder Legislativo, Poder Judiciário, mídia virtual, e para a legitimação de cada qual, parece valer tudo: manipulação, tráfico de influência, narrativas do caos, agenda de horrores, abusos de poder, Estado de exceção, desgovernabilidade, violência, mortadela e demais gratificações, de R$ 30 a cifras inauditas. Se há música dentro da música, eu poderia afirmar que da grande sinfonia, que deveria ser a nação, se fez uma fuga. O limite dessa clivagem é o patíbulo da soberania nacional e da própria democracia, por isso, articulação é o desafio de uma política sustentável, e interlocução, o desses atores; o que requer concessões, diálogos e até disputa de poder, mas promovê-la é premente, é a operação hegemônica.
Adagio em ré menor
“Do Caribe à Terra do Fogo, as forças progressistas são confrontadas a velhos demônios” (Lambert, 2016)
A efemeridade das esperanças progressistas do além-mar, da Primavera Árabe às vitórias das esquerdas europeias, aquela subjugada ao islamismo, estas, acachapadas pela troika, parece materializar-se em toda a América Latina, depois da “onda rosa” que sustou os receituários neoliberais de Washington. O que se pode afirmar de efeito comum a todos esses exemplos é que a esquerda capitulou.
As leituras deterministas e fenomenológicas reforçariam em coro as teses de Francis Fukuyama, de que após a queda de muro de Berlim, a democracia liberal haveria atingido o ponto máximo de estabilidade, com os Estados Unidos no centro do poder e exemplo antonomásico do “fim da história”, expressão emprestada de Hegel, para quem o equilíbrio se daria pelo liberalismo econômico com o Estado de direito democrático. Se a história da humanidade é a história das revoluções, o fim da história deve ser a total estagnação pelo equilíbrio predominante. Sua obra “O fim da história da história e o último homem” de 1992, nesse sentido, só revela uma péssima leitura de Nietzsche, ou péssima previsibilidade. Faz-se notar que, conforme nos ensina Zaratustra, o último homem, como tantos que há entre nós, os mais iluminados – leia-se em “Assim falou Zaratustra” Wagner e o próprio Nietzsche como exemplos do último homem – é o último degrau ao Além-do-homem e o fim da história não pode ser outro senão seu grande meio-dia. Na previsibilidade de Fukuyama, os últimos homens de fato povoam o que ele considera como fim, sobremaneira se personificarmos o neoliberalismo como tal, por representação. Ocorre que seu postulado, por ser extremamente conservador, está aferrado às mais diversas moralidades que lhe são inerentes, e são essas as tábuas de valor que o Além-do-homem vem romper. Supor que os últimos homens não atravessarão a ponte em ocaso e autossuperação é uma atroz ingenuidade. A história segue seu curso.
De qualquer modo, predominam ainda os últimos homens, e sua tentativa de superação parece haver fracassado na capitulação à ordem liberal. De sorte que voltamos à ideia da polaridade entre aqueles conservadores do ranço da humanidade e aqueles que se lançam ao ocaso para, no grande meio-dia, rir do homem como o homem ri do símio.
Numa ordem, porém, menos alegórica, Pablo Iglesias postula a necessidade de jogar com elementos que articulem uma maioria social, de modo a criar identidades que superem a clássica polaridade entre esquerda e direita. Essa proposta para a renovação do cenário político atual se justificaria a partir do pressuposto de que essa ambivalência ideológica favoreceria à reação dos conservadores, na medida em que o predominante neoliberalismo haveria projetado a derrota das esquerdas em diversos âmbitos (Iglesias, 2015). Esse argumento, vale considerar, não reforça a tese de Francis Fukuyama na medida em que, admitamos, nas transições de Estados totalitários a Estados democráticos, como transformação de práticas político-econômicas, tiveram as elites papeis decisivos, excluindo, o mais das vezes, atores e narrativas ao dar manutenção a estruturas políticas e processos decisórios (Bringel, 2015). Um breve estudo de nossas atuais estruturas não deixa disso dúvidas. Agora, diante da predominância da direita conservadora, seja por arqueologia marxista, seja pela escatologia de Fukuyama, um político “de esquerdas” propor o rompimento com essa dicotomia ideológica por maiorias populares parece conveniente e até mesmo estratégico. Não é sem rigorosa fundamentação teórica.
Allegretto em lá maior
O Podemos é um partido da esquerda espanhola, constituído formalmente em janeiro de 2014 que conseguiu romper com o bipartidarismo (PP/PSOE) de prevalência conservadora naquele país. Sua meteórica projeção e heterodoxia constitutiva e metodológica é matéria de análise no mundo da ciência política. Interessa-nos aqui reconhecer o arcabouço teórico que subjaz essa heterodoxia, a considerá-lo para a leitura dos impasses da orquestração política nacional.
Como antecedente, seria objeto exclusivo de análise empreender a compreensão geral das reivindicações e atores que conformaram o movimento 15-M que teve lugar na Espanha de 2011. Vale, portanto, ao escopo, apenas ressaltar a generalidade de que se constituiu, em indignação, subjetividades e amplitude. Ressalvadas as abissais particularidades dos contextos político-econômicos entre Brasil e Espanha, a heterogeneidade das narrativas “quinzemistas” aproxima-se com a que se nota aqui doravante às Jornadas de 2013. E foram essas narrativas o objeto de estudo à conformação do Podemos. Dessa comparação inteiramente arbitrária, poderemos conjugar a “crise linguística” aos “significantes vazios”, quais sejam eles, significantes sem significados; não são equívocos, nem ambíguos, mas se constituem como presença discursiva de seu próprio limite excludente. Essa margem interna do limite de exclusão – o que o significante não pode significar – institui as diferenças possíveis de significados dentro dela. Essas diferenças, dentro da margem de significação, devem cancelar a si mesmas, dando espaço à equivalência. Daí resultam duas dimensões do sistema de significação de Ernesto Laclau, a dimensão diferencial e a dimensão equivalencial, em que esta deva ser predominante sobre aquela. Uma crise linguística se instala, justamente, quando prevalece a dimensão diferencial, uma “desordem radical”. Já a prevalência da dimensão equivalencial se dará por “relação hegemônica”, quando um dos conteúdos particulares da dimensão diferencial tornar-se o significante contingencial predominante entre todos, ao invés do seu esvaziamento. Operar hegemonicamente é reconhecer a contingência e esvaziar-se para assumir a predominância na alteridade discursiva.
Quando um movimento, pró-governo, no nosso contexto, vai às ruas com a palavra de ordem “democracia”, vemos uma clara relação hegemônica. Unem-se ali MST, CUT, MTST, UNE, militantes do PT, simpatizantes, entre tantos outros, muitos dos quais já conjugados pela Frente Brasil Popular, cada qual com seu conteúdo particular, porém ali, esvaziados da particularidade por operação hegemônica.
Aproveitando os elementos reivindicatórios identificados no 15-M e inaugurando uma metodologia de mobilização virtual, via Facebook e Twitter, os então acadêmicos idealizadores do Podemos Pablo Iglesias Turrión e Iñigo Errejón souberam transformar a plebe em povo, daí materializando mais uma teoria de Ernesto Laclau, a de um populismo renovado, a que constitui esse “povo” como ator coletivo em oposição ao regime existente. Requer-se, para isso, um líder populista, que no caso do Brasil, figura, inequívoco, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Quando, por outro lado, instaura-se a crise linguística e prevalece a dimensão diferencial da significação, a ausência da ordem deixa um espaço por que possam brigar forças políticas que tentem imprimir sua ideologia. A ausência de um líder é preponderante na manutenção da desordem radical, embora muitas das reivindicações, de dimensão diferencial no movimento de rua, tenham potencial hegemônico, a óbvia interlocução não se estabelece justamente em razão do que denunciava Pablo Iglesias, o sem-razão do efeito dicotômico direita-esquerda. Os postulados: contra a corrupção, em prol de política econômica mais robusta e sustentável, contra o aparelhamento do Estado, e em prol de direitos social são amplamente hegemônicos e respondem a uma indignação nacional. Aferrar-se, por outro lado, a postulados outros como: impeachment, Lula na cadeia, intervenção militar etc. é não reconhecer a patente ilegitimidade democrática e popular, uma vez que não passam de preenchimento lacunar por forças política que sequer conseguem apresentar um líder não controverso, articulador das relações de equivalência.
Não é o Podemos, claro está, unanimidade, nem impermeável a críticas. A tese de Pablo Iglesias de ampla maioria popular, sem direita nem esquerda, é extremamente conveniente para seu populismo renovado, com o que soube operar as “oportunidades políticas” – matéria também inspirada em Ernesto Laclau e amplamente trabalhada em sua tese doutoral. Agora, considerar o rompimento com aquela clássica ambivalência, mas partir de “los de abajo” contra “la casta” para fundamentar sua operação populista como fosse uma completa renovação a partir do neomarxismo de Gramsci, parece inocência.
É evidente, no entanto, que uma tenaz crítica à esquerda deve ser feita, a não oportunizar esse mérito exclusivo à direita, sobretudo com suas recentes capitulações, mas é fundamental partir dela, para sua renovação. Essa desconstrução, que propõe Pablo Iglesias, como negação ativa até um niilismo destrutivo, sem que haja nada para por no lugar, é deletéria; daí deveríamos concordar com Francis Fukuyama. Cumpre, por outra sorte, encontrar os elementos ilógicos das esquerdas do Brasil, que rompem com sua unidade de sentido, e pôr em relevo suas contradições. Somente assim, a narrativa de nossas lutas por justiça social poderão tomar fôlego dessa nuvem de fumaça em que nos metemos.
De lá da Espanha, a maior inspiração que podemos tirar são as teses laclaunianas que já transitavam por aqui, mas que encontraram sua mais acabada forma nesse lá maior. Que o Podemos tenha se burocratizado, rompido com os movimentos sociais do 15-M, e capitulado por elegibilidade e governabilidade, com seus cinco delegados eleitos – esse movimento já escutamos também por aqui – vale relevar suas falhas por seus méritos, pois que ainda opera por los de abajo; pois que, Pablo Iglesias, ao lado de Ernesto Laclau, Yanis Varoufakis na Grécia, Jeremy Corbyn na Inglaterra, Bernie Sanders nos Estados Unidos e tantos outros intelectuais, conseguem, ainda hoje, imprimir suas ideologias a serviço de programas de esquerda, o gera um certo equilíbrio na grande sinfonia da vida humana, e que muito difere de estagnação como um fim da história.
Se vale o breve allegretto, inspirado nesse lá maior, que o que se orquestre, como últimas cadências desse opus das nossas “democracianas”, não dê ocasião a requerer outro 1984, nem seja como 1992, mas que se afirme verdadeiramente a democracia a dar ocasião às mudanças estruturais, a um novo programa pela justiça social, por mais desenvolvimento nacional e menos crescimento macroeconômico, se a dois deuses não podemos render homenagens. Que os espaços públicos sejam, finalmente, ocupados por discussão e politização das bases em relação hegemônica e não mais tomados de assalto por uma turba de zóe em crise linguística, manipulados por forças políticas que preenchem as lacunas de suas mentes e corações.
Ronald Ferreira da Costa é mestre em Estudos Literários e professor do Instituto Federal do Paraná.