Democratizar a democracia
Não queremos a “inclusão” nesta ordem que está aí. Queremos mudar tal ordem. Por isso, pensamos o debate sobre a Reforma do Sistema Político como um elemento-chave na crítica das relações que estruturam este mesmo sistema.
Já em outubro de 2002, insatisfeito com os escândalos associados às privatizações e à fabricação do segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, o Fórum da Cidadania de Santos pronunciou-se em defesa da reforma política, um tema recorrente, que ia e voltava do Congresso, mas continuava engavetado pelos parlamentares.
Em agosto de 2005, revoltados com a corrupção, a compra de votos no Congresso, o sistema de financiamento das campanhas eleitorais, a blindagem da política econômica, o monopólio dos meios de comunicação e o caráter imperial do presidencialismo, um conjunto de 150 intelectuais, liderados por professores da Unicamp, lançou manifesto exigindo a apuração das denúncias, a punição dos corruptos e a defesa da democracia. O documento declarava que o tipo de democracia em que vivemos tem sido útil para preservar o modelo econômico neoliberal, mas não para atender aos interesses da maioria da população brasileira.
Naquele mesmo ano, no mês de novembro, um conjunto de redes de entidades da sociedade civil – entre elas, a Associação Brasileira de ONGs, o Fórum Nacional de Participação Popular e o Fórum Nacional da Reforma Urbana – assumiu o propósito de construir uma plataforma dos movimentos sociais para a reforma do sistema político brasileiro.
Organizando discussões por todo o Brasil, ao longo de 2006 e 2007, esse movimento elaborou sua concepção de reforma política e seus objetivos e encarou tal iniciativa como um processo que trará frutos no longo prazo. Trata-se de uma ousadia. E de um importante esforço para repolitizar a política; retomar a construção de um campo democrático e popular capaz de polarizar a disputa político-ideológica no interior da sociedade civil; e reintroduzir na agenda pública um debate que trate das questões substantivas da democracia: a defesa do interesse público, a participação cidadã, a redução das desigualdades sociais.
Em sua versão mais recente, o documento Plataforma dos Movimentos Sociais declara:
“A Reforma Política que defendemos visa à radicalização da democracia, para enfrentar as desigualdades e a exclusão, promover a diversidade, fomentar a participação cidadã. Isso significa uma reforma que amplie as possibilidades e oportunidades de participação política, capaz de incluir e processar os projetos de transformação social que segmentos historicamente excluídos dos espaços de poder, como as mulheres, os/as afrodescendentes, os/as homossexuais, os/as indígenas, os/as jovens, as pessoas com deficiências, os/as idosos/as e os despossuídos de direitos de uma maneira geral, trazem para o debate público.
Não queremos a “inclusão” nesta ordem que está aí. Queremos mudar tal ordem. Por isso, pensamos o debate sobre a Reforma do Sistema Político como um elemento-chave na crítica das relações que estruturam este mesmo sistema. Entendemos que o patrimonialismo e o patriarcado a ele associado; o clientelismo e o nepotismo que sempre o acompanha; a relação entre o populismo e o personalismo, que eliminam os princípios éticos e democráticos da política; as oligarquias, escoltadas pela corrupção e sustentadas em múltiplas formas de exclusão (pelo racismo, pelo etnocentrismo, pelo machismo, pela homofobia e outras formas de discriminação), são elementos estruturantes do atual sistema político brasileiro que queremos transformar”1.
A pretensão das iniciativas mencionadas é superar o impasse criado pela instrumentalização calculista do poder, que acaba por não mudar nada de substantivo; conferir à esfera pública um real poder decisório; e atuar nos espaços efetivos de participação e decisão, propondo uma Reforma Política que de fato altere as regras do jogo.
O que almejam é enfrentar uma atitude que vemos cada vez mais presente, de desvalorização do poder político e de retorno ao fatalismo social, postura que se deve em grande parte à destruição de um elemento consubstancial da democracia: a existência de um futuro possível ou utópico que ajude a suportar os sofrimentos do presente trazendo as perspectivas de sua superação2.
Alegramo-nos em constatar que tais iniciativas expressam a vontade de mudança presente em muitos atores da sociedade civil. Por seu intermédio, o Brasil se coloca em sintonia com a tendência que perpassa hoje a América Latina, recusando o jogo tradicional das elites e trazendo ao palco político as aspirações das grandes maiorias.
*Silvio Caccia Bava é diretor e editor-chefe do Le Monde Diplomatique Brasil.