Denunciar as desigualdades, ignorar suas causas
“Ricos mais ricos, pobres mais pobres.” Dessa constatação zilhões de vezes formulada podemos tirar soluções opostas: adocicar o capitalismo, dizem uns; socializar a riqueza, respondem outros. Antes de ressurgir no Occupy Wall Street, esse debate atravessou o século XXI. O destaque das desigualdades no discurso público também tem uma história
Desde o sucesso fenomenal do livro de Thomas Piketty O capital no século XXI – publicado em 2013, foram vendidos 2,5 milhões de exemplares no mundo inteiro –, a desigualdade é vista por muitos como o grande problema moral de nossos tempos. Nos Estados Unidos, Karl Marx figura entre os best-sellers da categoria “Free Enterprise” da Amazon, e a jovem revista de esquerda – Jacobin – atualmente é uma publicação que conta com grande público. No entanto, é preciso perguntar em que medida essa moda está em conformidade com as ideias de Marx. Na realidade, a noção de desigualdade de rendas raramente foi utilizada no século XIX, e sua centralidade no debate público empobreceu consideravelmente nosso modo de pensar a justiça social.1
A melhor maneira de compreender essa evolução é percorrer um dos clássicos do socialismo, O capital. Por incrível que pareça, o termo “desigualdade” aparece menos de cinco vezes na volumosa obra-prima do filósofo alemão. Até o final do século XIX, nenhum pensador tinha se preocupado em colocar os indivíduos num eixo e a renda total em outro para medir a distribuição. Eram consideradas as diferenças entre as classes e os fatores de produção, mais do que as que existiam entre os indivíduos. Foi só com o trabalho do sociólogo italiano Vilfredo Pareto (1848-1923) que emergiram ferramentas modernas para medir a desigualdade. Para Marx, o problema não era então analisar como distribuir as rendas entre os indivíduos, mas imaginar uma sociedade livre do mercado.
Independentemente de se tratar da produção, do trabalho ou, de forma mais geral, das relações humanas, a “sociedade de mercado”, como a denominou o economista e antropólogo Karl Polanyi, era considerada uma ameaça à democracia na medida em que ela deixava o mercado dar forma à ordem social mais do que o contrário. Esse tipo de sociedade não só tinha eliminado do debate político a questão da alocação de recursos, mas também modificado a natureza das transações sociais enquanto tais.
Um longo eclipse
Por isso, o sociólogo Richard Titmuss defendeu a ideia segundo a qual o objetivo de um Estado social é inculcar e preservar o “espírito de Dunquerque” – expressão que remetia ao salvamento de milhares de soldados britânicos nas costas francesas em maio e junho de 1940, graças a uma flotilha de centenas de navios civis, um evento que teve um impacto muito importante no Reino Unido.2 Titmuss via nisso os germes de uma futura “sociedade generosa”. No verão de 1940, ele escreveu que, com Dunquerque, “o humor do povo mudará e, com ele, os valores. Uma vez que os perigos foram partilhados, o mesmo deverá acontecer com os recursos”. No entanto, a nova ordem, longe de se limitar a uma simples redistribuição das rendas, visava criar instituições democráticas capazes de vencer o que William Beveridge, economista britânico e teórico do Estado social, num célebre relatório escrito em 1942, chamou de os cinco “gigantes” – pobreza, insalubridade, doença, ignorância e desemprego –, a fim de promover a solidariedade em situações que vão além daquelas simplesmente do contexto da guerra.
Consequentemente, o “espírito de Dunquerque” ampliou de maneira notável o papel destinado ao Estado, particularmente para garantir à sua população direitos sociais de alcance universal (saúde, educação, trabalho, habitação…). Essa revolta do corpo social contra o laissez-faire seguia uma linha intermediária entre as legislações sociais praticadas na Alemanha pelo chanceler Otto von Bismarck nos anos 1880 e a socialização em grande escala conduzida na União Soviética a partir de outubro de 1917.
Uma parte crescente dos salários foi, então, socializada para financiar grandiosos sistemas de seguridade social. As taxas elevadas dos impostos aplicadas aos mais abastados permitiram a criação de serviços públicos que formaram a base de uma nova “propriedade social”. Essa noção utilizada na França, no final do século XIX, tinha como objetivo dissipar o espectro de uma guerra civil que despedaçaria uma sociedade em que somente os proprietários dispunham da plena cidadania. Justaposta à propriedade privada existente, uma propriedade social colocaria “à disposição dos não proprietários um tipo de recurso que não era a posse direta de um patrimônio privado, mas um direito de acesso a bens e a serviços coletivos com uma finalidade social”.3
Assim, as instituições do Estado social devem ser compreendidas como um prolongamento do imperativo democrático, tornando a reprodução física e social dos indivíduos uma questão política, e permitindo decidir coletivamente que tipo de humanidade a sociedade quer constituir. Essa perspectiva explica a importância que os serviços públicos, sobretudo as redistribuições monetárias, tiveram para um grande número de economistas do início do século XX. Onde o laissez-faire não conseguiu garantir a reprodução material da população, o Estado deveria agir. Assim, em 1950, o sociólogo britânico Thomas Humphrey Marshall não hesitou em escrever que “a igualdade fundamental” não podia ser “criada e preservada sem atacar a liberdade do mercado concorrencial”.
Essa nova forma de compreender o papel do poder público foi sustentada no mundo inteiro. Em 1944, a Declaração da Filadélfia, que reafirma os objetivos da Organização Internacional do Trabalho (OIT), salienta que “o trabalho não é uma mercadoria” e coloca como principal objetivo “a ampliação da seguridade social”. Além do mundo industrializado, dirigentes pós-coloniais, como Jawaharlal Nehru, na Índia, Kwame Nkrumah, em Gana, e Léopold Sédar Senghor, no Senegal, começam, então, a realizar as promessas que o Estado social parece incluir além das fronteiras do mundo imperial.
Foi na América dos anos 1960 que a preocupação crescente com a pobreza começou a remodelar as ideias sobre a justiça social. Quando, em março de 1962, o militante socialista Michael Harrington publicou seu best-seller The Other America, em seu entender, os programas do Estado social fazem parte do problema. Segundo ele, a América pobre “passou ao largo das conquistas sociais e políticas dos anos 1930”. Não só as instituições de seguridade social, o salário mínimo, as leis trabalhistas e os sindicatos não foram concebidos para os deserdados, como também contribuíram para sua “rejeição”. Para Harrington, a pobreza constitui uma condição específica, separada da questão do trabalho ou do mercado. Situada não mais no centro, mas ao lado da relação salarial, essa pobreza se diferencia radicalmente do pauperismo do século XIX. Se o pobre “forma um sistema distinto”, ele constitui então um problema específico. Como escreveu o jornalista do New Yorker, Dwight Macdonald, na resenha que fez em 1963 do livro de Harrington, “a desigualdade da riqueza não é necessariamente um problema social maior em si”; “a pobreza é”.4 A partir de então, a principal preocupação foi estabelecer um piso de rendas, mais que universalizar a seguridade social.
No início dos anos 1970, a impressionante explosão do “problema da pobreza” favoreceu uma concepção de justiça social orientada apenas pela dimensão monetária. O estabelecimento de um patamar sob o qual ninguém deveria cair rapidamente marginalizou as discussões sobre a construção de tetos de rendas ou sobre a redução do espaço no qual se desenvolvia o mercado. Foi nesse momento que as propostas de assistência universal ou os programas de imposto negativo estimulados pelo economista monetarista Milton Friedman seduziram altos funcionários e partidos políticos, como um meio de, enfim, lutar diretamente contra a pobreza. Na França, Lionel Stoléru, conselheiro no Ministério das Finanças e futuro secretário de Estado de Valéry Giscard d’Estaing e de François Mitterrand, considerava que a ênfase na pobreza produzia a única política social razoável no meio de um sistema de livre mercado. Como escreveu o próprio Friedman, uma política como essa, “ao mesmo tempo que opera por intermédio do mercado”, “não deforma o mercado nem entrava seu funcionamento”.5 Nessa nova concepção das políticas sociais, a preservação dos mecanismos de mercado e do sistema de preços tornou-se uma preocupação central. Se a “mão invisível” do mercado conduzia a uma situação indesejável, a solução privilegiada deveria ser realizar transferências monetárias mais do que intervenções estatais.
Essa ideia foi difundida rapidamente nas instituições internacionais sob o bordão de Robert McNamara. Secretário da Defesa nos governos de John Kennedy e de Lyndon Johnson, em 1968 foi nomeado presidente do Banco Mundial. Instituiu uma estratégia contra a pobreza voltada não mais para a redistribuição, mas para a “ajuda aos pobres para que atingissem seu potencial produtivo”.6 Como analisa o historiador Samuel Moyn, “a justiça social foi globalizada e minimizada”, o que favoreceu o estabelecimento de uma linha sob a qual “ninguém é autorizado a afundar”, permitindo ao mesmo tempo se opor firmemente às narrativas igualitárias dos dirigentes pós-coloniais.7 Nos anos 1980, a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) e a ONU retomaram a abordagem de McNamara. Concebida para proteger as populações dos efeitos do mercado, a justiça social se tornou, então, uma intervenção visando permitir que todos dele participassem.
Esse longo eclipse da desigualdade como tema dominante do debate público terminou na esteira da crise financeira de 2008. O movimento Occupy Wall Street, em 2011, e o slogan “99%” canalizaram o imaginário e deram um nome à extrema polarização das rendas e dos patrimônios existente nas décadas anteriores. No entanto, como evidencia o historiador Pedro Ramos Pinto, esse êxito não levou ao rompimento com as definições estritamente quantitativas e monetárias. Se por um lado a volta desse tema ao debate público marca uma melhora em relação ao enfoque sobre a pobreza, por outro ele se circunscreve aos atributos individuais mais do que às categorias e relações mais políticas: nos ocupamos “em lamentar os efeitos mais do que em buscar as causas”.8
Como deveríamos a partir de então nos preocupar com as desigualdades? Duas respostas clássicas indicam dois horizontes políticos opostos. Uma concepção limitada aos efeitos e, portanto, voltada para a estrita disparidade de rendas, dirigida ao aumento da igualdade, reduzindo a distância monetária entre os ricos e os pobres. O resultado seria um mundo onde a concorrência econômica seria sempre impiedosa, mas onde ninguém temeria a privação material. Um mundo que jamais nenhum dos pensadores socialistas do século XIX teria imaginado, uma vez que estes associavam firmemente a desigualdade ao problema do liberalismo econômico.
Uma segunda concepção busca alcançar a igualdade por meio da desmercantilização e da democratização de bens como os cuidados com a saúde, a educação, os transportes, a energia etc. Um mundo que, socializando e garantindo o acesso de todos aos elementos mais importantes de nossa existência, reduziria a dependência ao mercado e, portanto, ao mecanismo que se encontra na origem das desigualdades.9 Durante muito tempo, esse projeto foi considerado escandalosamente utópico, mesmo pelos reformadores mais moderados.
Podemos nos perguntar, obviamente, por que demandar mais do que uma redução das desigualdades de rendas num momento em que mesmo esse objetivo modesto parece impossível de ser atingido. No entanto, logo após a queda do Muro de Berlim, a liberdade de expressão ideológica deu uma forte guinada, sobretudo por parte da direita. No contexto dessa evolução dramática, a esquerda deveria estimular uma visão mais audaciosa de um mundo que superasse a utopia do mercado. O poder das grandes ideias é que elas não visam simplesmente redistribuir algumas cartas, mas mudar as regras do jogo. Essa visão cheia de promessas de um futuro menos individualista e mais fraternal tinha se tornado pública, em dezembro de 1942, no relatório Beveridge. Ela levou milhares de pessoas a entrar numa fila, no frio, para comprar esse texto tão seco quanto técnico, cujas vendas alcançaram no mínimo 635 mil exemplares. Seu autor observou: “Um momento revolucionário na história do mundo é um tempo para as revoluções, não para as reconciliações”.
*Daniel Zamora é coordenador de pesquisas sociológicas da Fundação de Pesquisa Científica (FNRS) na Universidade Livre de Bruxelas. Autor de Foucault et le néolibéralisme [Foucault e o neoliberalismo], Aden, Bruxelas, 2019. Organizou com Mateo Alaluf a obra coletiva Contre l’allocation universelle [Contra a renda básica], Lux, Montréal, 2017.