Desafio climático: conscientização, negação e recuperação
No dia 15 de outubro, o Le Monde Diplomatique publica um Atlas do Meio Ambiente. Como os outros Atlas já publicados, esse comporta textos sintéticos acompanhados de 150 mapas e gráficos dedicados aos grandes desafios da ecologia. Se atualmente a humanidade mede melhor os perigos que a ameaçam, ainda há muito a fazer para implementar as soluções indispensáveisPhilippe Bovet, Agnès Sinai
Os ecossistemas possuem as formas que conhecemos porque, em vinte mil anos, a natureza passou de uma paisagem dominada pelo gelo em grande parte da Europa e da América do Norte à configuração atual, em que as geleiras estão concentradas nos pólos e em grandes altitudes. Essa transição, que durou cinco mil anos, coincide com um aquecimento global de cerca de 5 °C, o que permite avaliar que o ritmo natural da mudança de temperatura ao longo do tempo, em escala planetária, é da ordem de um grau por milênio.
Problema: estima-se a duplicação da quantidade do CO2 (principal gás do efeito estufa) até 2050. Isso poderia provocar um aumento médio da temperatura ao menos dez vezes mais rápido do que o ritmo médio global de mudança desde o último período glacial. De acordo com a Agência Internacional de Energia (AIE), se o consumo de combustíveis fósseis seguir no ritmo atual, as emissões de CO2 ligadas à energia atingirão 40 gigatones em 2030, ou 55% mais do que em 2004 [1]. Sendo assim, o planeta se aqueceria de 2,4° a 6,4°C no decorrer do século XXI, segundo variação que consta no cenário apontado no último relatório do Grupo Intergovernamental sobre a Evolução do Clima (GIEC), órgão de referência das Nações Unidas que anuncia uma mudança de era climática [2]. Tal aumento provocará uma modificação do mapa mundial. A nova distribuição da agricultura, o êxodo das populações litorâneas e insulares, a migração ou o desaparecimento de parte de espécies animais e vegetais determinarão uma mudança de civilização.
Além dos fatos concretos, a crise ambiental é também um caso de psique, um desafio cognitivo, uma vez que suas dimensões excedem a capacidade de entendimento dos indivíduos. Apesar do acúmulo de relatórios científicos desde a primeira cúpula da Terra, realizada em Estocolmo em 1972, até a recente Avaliação dos ecossistemas para o milênio [3], a crise ambiental é objeto de uma negação generalizada, alimentada por controvérsias que tendem a relativizar a amplitude do problema.
Do romancista “climatocético” Michael Crichton, autor de Estado de emergência, um tecno-triller antiecologista [4], a Claude Allègre, adepto da tecnologia como solução para os males do planeta, toda espécie de manipulação foi empregada para desorientar a opinião, alimentando controvérsias sobre a existência do aquecimento climático. Nos Estados Unidos, os “bancos de idéias” (think tanks), financiados pelas companhias petroleiras próximas ao presidente George W. Bush (ExxonMobil à frente), tentam ainda minimizar o alcance da mudança e desacreditar os trabalhos do GIEC. Uma rede de cientistas e cidadãos norte-americanos fez recentemente uma pesquisa com 279 climatólogos que trabalham para agências de pesquisa federais dos EUA: 58% deles foram censurados por seus superiores ou sofreram pressões para que a expressão “mudança climática” seja eliminada de seus relatórios [5].
Nesse mesmo sentido, em 2001 teve início uma polêmica sobre o estado do planeta, com a publicação do livro do dinamarquês Bjorn Lomborg, O ecologista cético [6]. Sob o slogan “não há com que se preocupar”, o autor sustenta que o meio ambiente melhoraria em vários campos, ao invés de se deteriorar, e que os mecanismos de mercado saberiam corrigir determinadas degradações momentâneas. O aparente rigor científico dessa obra foi denunciado como enganador por inúmeros peritos, o que parece não ter desencorajado o autor, que em Cool It: The Skeptical Environmentalist’s Guide to Global Warming (Guia do aquecimento climático para o ecologista cético) acrescenta uma negação mais objetiva: a da amplitude do aquecimento climático [7].
Em resumo, Lomborg exorta as sociedades a não tomar medidas sérias para interromper o desajuste do clima. Segundo os seus cálculos, as economias industriais terão um custo de 180 bilhões de dólares ao ano para respeitar os objetivos de redução das emissões de gases do efeito estufa. Por esse preço, segundo ele, vale mais a pena continuar a destruir o planeta, para alimentar o crescimento e fabricar as tecnologias que acabarão por salvar a humanidade!
Essa postura cética perde o fôlego quando se avalia o encarecimento do preço da energia. Mesmo a AIE, insuspeita de defender as teses do não crescimento, desmente esse tipo de raciocínio. De acordo com seu relatório anual, World Energy Outlook, de 2006, serão necessários 20 trilhões de dólares de investimentos acumulados para satisfazer a crescente voracidade energética do mundo entre 2006 e 2030. A AIE considera “rentável” tomar medidas visando cenários de substituição, como as propostas do Protocolo de Kyoto [8], e o mais depressa possível [9]. “O custo dessas políticas seria mais do que compensado pelas vantagens econômicas obtidas por um consumo e uma produção energética mais eficazes. [10]”
Essa abordagem é confirmada pelo relatório amplamente divulgado do economista britânico Nicholas Stern, segundo o qual o aquecimento poderia custar 5,5 trilhões de euros à economia mundial [11]. Para além da amplitude do impacto do aquecimento sobre a humanidade, a destruição da natureza provoca a perda de inestimáveis serviços vitais prestados pelos ecossistemas, como a purificação do ar e da água, a estabilização do clima, a diversidade de moléculas úteis à medicina contidas nas plantas. A importância dada ao clima pela economia passou recentemente a conferir à crise ecológica uma nova credibilidade aos olhos dos líderes dos países industrializados. Sem, no entanto, questionar os fundamentos do crescimento.
Inúmeras informações e relatórios científicos passaram a convergir, retransmitidos por porta-vozes emblemáticos como Al Gore e Nicolas Hulot, e no entanto a crise ambiental ainda se torna objeto de negação. Isso porque essa superabundância de sinais de alarme tem um revés: o risco da banalização. A sociedade inteira parece engajada em uma operação de greenwashing (lavagem cerebral ecológica), que permite mais a reciclagem das consciências do que incita a mudar de paradigma. A Copa do Mundo de rugby apesar de ser apresentada pelo ministro francês da Ecologia, do Desenvolvimento e do Planejamento Sustentável, Jean-Louis Borloo, como a “primeira grande celebração desportiva internacional concebida como um modelo em termos de ecoevento”, não deixou, porém, de liberar perto de 570 mil toneladas de CO2 em razão do tráfego aéreo que provocou [12]. Uma contradição, em relação aos tormentos do momento atual…
À medida que a sociedade toma consciência da deterioração das condições da vida sobre a Terra, as formas de negação tornam-se mais complexas, de forma a ampliar o prazo para a reorganização da coletividade e o questionamento do produtivismo mundializado. O discurso alarmista do presidente Jacques Chirac – “Nossa casa queima enquanto olhamos para outro lugar” -, pronunciado em 2 de setembro de 2002 durante a Cúpula Mundial do Desenvolvimento Sustentável em Johannesburg, levantou uma exigência paradoxal, estabelecendo grandes princípios de ação que não surtiram muitos efeitos.
O programa de auto-estradas francês não prevê a construção de 3 mil novos quilômetros de vias? O ministro da Ecologia e do Desenvolvimento Sustentável Serge Lepeltier não deixou o governo de Jean-Pierre Raffarin, em 2005, por não ter tido êxito em impor uma restrição aos 4×4, veículos excessivamente poluentes? O conceito de desenvolvimento sustentável é uma ilusão mobilizadora. Ele serviu mais para sustentar uma ficção coletiva de ação e fornecer uma maquiagem verde às multinacionais mais poluentes, do que para desencadear a “ruptura” que se supõe ser a questão em torno do “Grenelle do meio ambiente”*.
O “Grenelle do meio ambiente”, anunciado para o fim de outubro pelo governo de François Fillon, conseguirá abrir a França para a conscientização ecológica? A partir de 13 de julho de 2005, no âmbito da lei que fixa as orientações de sua política energética, Paris assumiu a intenção de diminuir por quatro suas emissões de CO2 até 2050. O que aconteceu desde então? De prático, muito pouca coisa. No entanto, para atingir esse ambicioso objetivo não há tempo a perder. Nossa administração saberá pôr nos trilhos uma política voluntarista para respeitar tais objetivos?
Podemos duvidar, na medida em que, frequentemente apontada pela União Européia por sua falta de compromisso ambiental, a França acumula muito atraso nesse campo. Se os resultados do Grenelle não questionam a política nuclear, os projetos de auto-estrada e as plantações de Organismos Geneticamente Modificados (OGM) – dos quais o presidente da República e seus amigos são partidários determinados – e não dão prioridade absoluta aos transportes públicos, nem taxam as energias fósseis, e ainda permitem os lobbies e sua clássica visão do crescimento econômico, é porque o desafio da mudança climática não foi compreendido.
Desafio difícil de avançar em um contexto político francês pouco aberto a tais mutações. A ministra do Meio Ambiente de 1995 a 1997, durante o governo de Alain Juppé, Corinne Lepage, critica com veemência a “onipotência dos membros dos grandes organismos” da administração francesa: “As soluções continuam as mesmas, enquanto os progressos da ciência ou as práticas no exterior mostram que novas vias são possíveis (…), nos campos da infra-estrutura rodoviária ou da energia nuclear ou, ainda, da biotecnologia. Sempre encontrei nos “experts de Estado” poucas dúvidas e poucas perguntas (…) Esse poder dos grandes organismos (…) é a meu ver uma das causas – senão a maior – do atraso francês” [13].
Como as estruturas estatais francesas poderiam se abrir rapidamente para as questões ecológicas se em 1986 elas administraram o acidente de Chernobil dentro da maior obscuridade (a nuvem radioativa supostamente se deteve nas fronteiras francesas), da mesma maneira que, mais recentemente, a questão dos pesticidas na agricultura ou do amianto? Lepage acrescenta: “Sou levada a crer que a cegueira dos sucessivos governos em relação ao problema do amianto (…) não teria sido possível sem, de um lado, a força da organização relacionada às Minas, que está ao mesmo tempo presente na administração de agências reguladoras e na direção das empresas de matérias-primas, e, por outro, sem o precedente ligado à indústria nuclear e aos comportamentos que ele teria induzido”. Será possível fazer com que estruturas tão rígidas compreendam a urgente necessidade da mudança?
Como diminuir drasticamente os dejetos mundiais, principalmente de CO2, e passar das belas palavras para uma prática real de sobriedade energética? Desde que especialistas em clima e questões ambientais percorrem o mundo, em conferências de cúpula internacionais, apenas soluções globais são propostas. Ora, tendo em vista a urgência, seria preferível que alguns países se distinguissem e servissem de exemplo, em vez de esperar uma mudança de política ambiental de alguns grandes, como EUA ou Austrália, um dos maiores produtores mundiais de carvão e país não signatário dos acordos de Kyoto com objetivo de preservar seu maná carvoeiro.
Deputado socialdemocrata alemão e prêmio Nobel alternativo de 1999, Hermann Scheer, especialista em energias renováveis, estima: “O desejo de um consenso (mundial) custe o que custar é incompatível com a necessidade de se reduzir o mais rapidamente possível os riscos, pois o fato de procurar a aprovação do maior número nos coloca à mercê dos que querem impedir, frear e diluir os objetivos visados” [14]. Falando claro: todo mundo espera todo mundo. Além do mais, em um planeta com recursos limitados, as grandes reuniões internacionais jamais abordam a própria questão do crescimento econômico. Medidas em prol da sobrevivência ecológica são aceitas apenas se não obstruírem o princípio do crescimento ou da liberalização do mercado.
A produção energética (tratamento e produção de eletricidade) representa 49% das emissões mundiais de CO2 e está entre as que acarretam as maiores conseqüências ambientais [15]. Alguns países compreenderam o que isso representa e, ao longo das décadas passadas, não hesitaram em se lançar sozinhos por vias energéticas alternativas.
Assim, a Dinamarca desenvolve a energia eólica terrestre desde os anos 1980 e os britânicos abriram programas de pesquisa sobre energias renováveis marinhas no final dos anos 1990 [16]. A cidade de Barcelona, por sua vez, impôs em 2000 a utilização de captadores solares térmicos em habitações novas e reformadas, medida que foi posteriormente adotada em toda a Catalunha e a seguir em toda a Espanha. A Alemanha avança há anos nessa mesma via. No entanto, alguns gostam de assinalar com certa ironia que Berlim realiza uma política contraditória, desenvolvendo a economia de energia e as energias renováveis enquanto continua a queimar carvão, importando da França a eletricidade e tentando prolongar a vida de suas centrais nucleares.
Esses espíritos melancólicos esquecem, porém, que a França não faz um vigésimo do que o vizinho do outro lado do Reno realiza e que há um real combate entre dois mundos energéticos: de um lado, o antigo, ligado ao carvão, à energia nuclear, ao transporte individual, e, do outro, um novo mundo descentralizado, vinculado à economia de energia, às fontes renováveis, aos transportes públicos e às questões de saúde pública.
Há décadas, os lobbies do antigo mundo fazem de tudo para negar a necessidade e a possibilidade de uma mudança rápida da situação. Os especialistas em energias renováveis sabem que as amarras não são técnicas, mas essencialmente administrativas e políticas. Novidades poderão surgir do resultado das eleições regionais de 27 de janeiro de 2008, que acontecerão em Land Hesse (6 milhões de habitantes, 21 mil km2), cuja candidata do Partido Socialdemocrata (SPD), Andrea Ypsilanti, pretende colocar em prática, se vencer, um modelo energético que Scheer será encarregado de colocar em prática. Ela pretende, em cinco anos, realizar economia de energia e desenvolver energias limpas, fechar as duas centrais nucleares de Land e mostrar que a construção de usinas a carvão não é absolutamente necessária.
As escolhas a fazer exigem que o Estado reencontre seu papel e saiba arbitrar, a longo prazo, em prol do bem comum, sem se dobrar aos interesses de curto prazo dos lobbies. O autor americano Richard Heinberg publicou recentemente uma obra que trata das questões energéticas e ambientais, The party is over [17]. O título é significativo porque é bem claro que “a festa acabou”. No entanto, se bem compreendido, o desafio do aquecimento climático pode ser uma p