Desafios da educação pública na pandemia
Em 2021, no segundo ano de pandemia, o sistema de ensino brasileiro vivenciou uma crise sem precedentes, agudizando as desigualdades no país
O ano de 2021 ficará marcado na história da educação pública brasileira. Lamentavelmente, o fato se deve pouco ao marco centenário de Paulo Freire, patrono da pedagogia crítica e libertária no Brasil e na América Latina. Ao contrário, enquanto o educador foi novamente alvo de desinformação e ataques, sobretudo por parte de partidos e veículos de mídia vinculados à extrema-direita, o sistema de ensino brasileiro viveu uma de suas piores crises.
Além da falta de acesso à internet em parte significativa dos domicílios, essencial para estudantes acompanharem as aulas online, o Estado se mostrou extremamente dependente de determinadas plataformas digitais, empresas de telecomunicações e outras instituições privadas que avançaram sobre a educação pública.
A precária educação por plataformas e os atrasos nas políticas de conectividade estudantil
Em 2021, o Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, junto ao Educadigital e a pesquisadores parceiros, realizou a segunda edição de um levantamento sobre as políticas públicas de ensino a distância (EaD), implantadas de forma emergencial nos 26 estados brasileiros, suas capitais e o Distrito Federal.
Os dados demonstraram um reincidente domínio de plataformas privadas, correspondente a 63,7% na oferta pública de tecnologias digitais para o ensino. Ainda que mais da metade das secretarias de educação (54,5%) tenham desenvolvido tecnologias e ferramentas próprias, 73,8% dessas iniciativas foram acompanhadas de plataformas privadas. Enquanto isso, o uso de software livre passou de ínfimos 1,4% para 2,4% dos serviços adotados.
Outro fator importante, alertado desde antes da pandemia pelo Observatório Educação Vigiada, é o avanço de corporações globais sobre a estrutura educacional brasileira. Apresentando uma capilaridade territorial que extrapola os limites do mercado e do próprio Estado, verificamos que, entre 2020 e 2021, o Google/Youtube saltou de 31,9% para 40,3% entre as tecnologias adotadas pelas secretarias de ensino.
A aquisição dos serviços de plataformas e outras tecnologias digitais não foi suficiente para garantir o direito à educação. Como ressalta Heleno Araújo, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), “durante a pandemia, o ensino remoto no Brasil não funcionou a contento, devido à falta de equipamentos, tanto para alunos quanto para professores, e isso fez com que aumentasse muito a evasão escolar. As matrículas entre 2020 e 2021 foram reduzidas em um milhão na educação básica. Por isso lutamos pela aprovação da lei que faz o governo federal destinar 3,5 bilhões de reais para garantir equipamentos e conexão a estudantes e professores”.
Diante da inabilidade e falta de coordenação do Ministério da Educação para elaborar uma política de conectividade estruturante, multiplicaram-se iniciativas tardias e sem diagnósticos precisos em relação às reais necessidades dos estudantes e professores. Salientada por Heleno, a Lei de Conectividade nas Escolas (14.172/21) destinará recursos do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust) para estados e municípios, porém ainda não saiu do papel. A sua implementação foi exigida, recentemente, por meio de mandados do Supremo Tribunal Federal (STF).
No início da pandemia, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) estimou que 6 milhões de estudantes viviam sem acesso à internet banda larga e móvel nas suas casas. A ausência de conexão, junto às dificuldades de familiares e responsáveis auxiliarem pedagogicamente seus/suas filhos/as, foram os principais entraves para a educação pública, segundo dirigentes de 93% das escolas de níveis municipal, estadual e federal (TIC Educação 2020 – NIC.br).
Recuperando o levantamento elaborado pelo Intervozes, junto ao Educadigital, no período da pandemia, 32,5% dos governos estaduais, das capitais e municípios com mais de 500 mil habitantes distribuíram pacote de dados para estudantes e professores/as, enquanto 19,5% ofereceram computadores ou tablets para escolas, professores/as e/ou estudantes. Muitas dessas iniciativas, porém, acabaram por ampliar distorções, como a oferta de pacotes de dados móveis (chips) em comunidades com baixo acesso a dispositivos digitais ou a distribuição desses recursos tecnológicos de forma limitada em relação à capacidade de conexão, ao livre acesso a sites e aplicativos, bem como à privacidade[1].
É o caso das redes estadual e municipal de São Paulo. Enquanto no estado as aulas por aplicativo e televisão começaram em abril de 2020, somente em outubro do mesmo ano o governador João Dória anunciou um programa de aquisição de equipamentos para professores/as e estudantes. Já na capital paulista, a prefeitura anunciou, em agosto de 2020, a maior compra de equipamentos digitais por uma rede de ensino no Brasil, prometendo distribuir quase 50 mil notebooks para professores/as e 465 mil tablets para estudantes, com franquia de internet 3G/4G mensal. No entanto, a demora para comprar e entregar os dispositivos fez com que, um ano depois, já no retorno das aulas presenciais, 150 mil tablets estivessem sem destino.
Na outra ponta, a do uso das tecnologias de ensino nos territórios, Mãe Beth de Oxum, Iyalorixá do Ilê Axé Oxum Karê e coordenadora do Laboratório de Tecnologias e Inovação Cidadã (LABCoco), relatou, na roda de conversa Territórios Livres, Tecnologias Livres, que a prática descompassada das iniciativas governamentais para a inclusão digital era antiga. O Governo de Pernambuco, por exemplo, entregou computadores aos/às alunos/as em 2009. “Só que os alunos não podiam entrar com esse computador na sala de aula […] porque a escola não estava instrumentalizada para lidar com isso. A escola não tinha internet e, quando tinha, era propriedade privada da direção. A escola não estava preparada, o corpo pedagógico não foi instrumentalizado para usar esse computador. […] A Microsoft vendeu uma licença por um ano ao Governo do Estado e no final do ano esses computadores foram desligados”, afirmou.
Entraves para estudar em periferias, territórios rurais e de povos e comunidades tradicionais
Em nota conjunta da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, o Intervozes e diversas outras entidades alertaram, ainda em 2020, para o aprofundamento das desigualdades educacionais como consequência da adoção indiscriminada de políticas de ensino remoto mal formuladas. Essa modalidade, duradoura ou paliativa, foi vivida diferencialmente em periferias urbanas, territórios rurais e de povos e comunidades tradicionais. Nesse sentido, um estudo produzido pelo Data Favela, em parceria com o Instituto Locomotiva e a Central Única das Favelas (Cufa), revelou que 55% dos/as estudantes moradores/as de favelas não acompanharam o ano letivo por falta de acesso à internet (34%) ou por não receber atividades escolares (21%). Nesse cenário, 47% das pessoas tinham medo de desistir da escola por ausência de condições materiais.
Na mesma linha, a Fundação Getúlio Vargas (FGV), por meio da pesquisa Retorno para a Escola, Jornada e Pandemia, confirmou o presságio de comunidades escolares ouvidas pelo Data Favela. Com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD Contínua), o levantamento demonstrou aumento da taxa de evasão escolar na faixa de 5 a 9 anos de 1,41% para 5,51% entre os últimos trimestres de 2019 e 2020.
Enquanto na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) a média de estudos é de 4 horas diárias por semana, em setembro de 2020 a média registrada de estudo na faixa etária entre 6 e 15 anos foi de apenas 2 horas e 22 minutos. Entre crianças e adolescentes negros/as (pretos/as e pardos/as), esse tempo reduziu para 2 horas e 16 minutos. E nas classes D e E, a redução foi ainda maior, de 2 horas e 5 minutos, contra 3 horas e 18 minutos para as classes A e B.
De acordo com o estudo da FGV, os piores índices de recebimento de tarefas e horas de estudos, durante 2021, estiveram nas regiões Norte e Nordeste. É o que relata a estudante do ensino médio, Cecília Ramirez, sobre sua jornada semanal para estudar na Ilha de Mosqueiro, no Pará: “Eu me atrasei muito nos estudos durante a pandemia. Fiquei com a minha avó, que mora no interior, e para continuar estudando tinha que ir buscar as atividades em outro município, porque em Mosqueiro não tinha acesso à internet”.
Ainda sobre o grau de dificuldade no acesso à educação e à comunicação durante a pandemia, o mapeamento Território Livres, Tecnologias Livres , realizado em 2021, com 274 famílias de 33 territórios Quilombolas e Rurais dos nove estados do Nordeste, revelou que 28% das famílias entrevistadas não tinham acesso à internet. Entre as famílias com conexão nesse período, o uso se dava exclusivamente por celular (71%), metade apresentavam algum tipo de dificuldade no acesso à internet quando chovia e no uso de aplicativos de educação e serviços públicos. Além do mais, apenas 11% das famílias possuíam computador em casa.
“Mesmo sendo pelo WhatsApp e o Google Meet, a grande dificuldade minha foi por morar em um assentamento na zona rural, que não tem acesso à internet, não existe Wifi, apenas o 3G de má qualidade. Muitas vezes não conseguia baixar os arquivos que o professor mandava, sempre que entrava na sala de aula (online) não conseguia ouvir direito porque ficava cortando e com muita lentidão”, relata Mateus Santana Rodrigues, estudante que concluiu o ensino médio na pandemia, morando no assentamento Vitória da União, em Sergipe.
Na aldeia indígena Tupinambá Mãe Olivença, no Sul da Bahia, o acesso precário à internet, quase restrito ao Whatsapp, somado à falta de dispositivos digitais, fez com que professores/as criassem sistemas de entrega de atividades nas casas dos/as estudantes, percorrendo distâncias de até 50 km caminhando. A professora indígena Juliana Amanayara Tupinambá relata que o território indígena é muito extenso, gerando dificuldade em chegar até as outras comunidades. “Ficávamos no aguardo de um parente passar. Os parentes iam para algum lugar e levavam as atividades; uma professora que morava em uma comunidade e dava aula em outra levava para comunidade onde morava. Nem todos os pais podiam vir pegar na escola, por causa da quilometragem. As distâncias são muito longas e tudo teve que ser feito caminhando”, explica Juliana.
Ausência de informações e apagão dos dados na Educação
A educação quilombola e indígena padece ainda de falta de dados. Em alguns casos, as informações existem, mas seguem restritas na forma de microdados, como no Censo Escolar 2020, elaborado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Em outros levantamentos, essas comunidades tradicionais seguem subnotificadas.
Em fevereiro de 2022, dezenas de entidades denunciaram um apagão de dados no Inep. O instituto retirou do seu site os microdados do Censo Escolar e Enem, alegando implicações com a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD).
Outro episódio, na sequência do apagão do Inep, está sendo investigado pelo Coletivo de Educação da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq). “Nós baixamos agora os dados do Censo Escolar 2021, mas de cara já percebemos que o Inep sumiu com a categoria escola quilombola. […] Esse é um problema que fere diretamente os direitos dos quilombolas à educação”, afirma Givânia Maria da Silva, mestra em Políticas Públicas e Gestão da Educação pela Universidade Nacional de Brasília (UNB), pesquisadora e educadora quilombola do Coletivo Nacional de Educação da Conaq e coordenadora do projeto Quilombos e Educação.
O apagão dos dados e o sumiço das informações sobre as escolas quilombolas acontece no ano em que as Diretrizes Curriculares da Educação Quilombola completam dez anos. “Isso só confirma para nós, o quanto a política de educação é usada para externalizar e para materializar o racismo, porque à medida que você some com os dados, desaparece ou não tem a informação, é muito mais fácil dizer que esses sujeitos, esses grupos e essas práticas não existem, do que se elas estivessem registradas dos dados oficiais”, frisa Givânia.
Segundo a professora doutora da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), Luzineide Borges, autora do livro CIBERXIRÈ – Redes Educativas e o Ciberativismo da Juventude de Terreiro da Nação Ijexá, a falta de condições materiais para promoção da educação pública e a ausência dos dados sobre estudantes negras/os, quilombolas e indígenas se entrecruzam: “A não oferta de uma infraestrutura que garanta o acesso às tecnologias de qualidade é uma necropolítica orquestrada pelo poder público. A invisibilidade é propositiva, sem marcadores que nos diferenciam enquanto cidadão/ã de direito, a educação brasileira segue com seu currículo europeu, judaico-cristão, machista e elitista, com o discurso único, como nos alerta Chimamanda Adichie”, denuncia ela.
Diante da captura dos serviços públicos pela iniciativa privada, da precária infraestrutura de acesso à internet e ainda do apagão dos dados na educação, ampliaram-se também as lacunas nas relações de trabalho no ensino, bem como a insegurança alimentar, fatores que implicam na rotina da escola para além da aprendizagem.
“Nós por Nós” e a escola para além do lugar de aprendizagem
Na contramão das vias seguidas por governos e empresas, vem de pesquisadoras e pesquisadores negras, negros e moradores de comunidades tradicionais uma série de iniciativas sobre tecnologias, educação, raça e territórios: o chamado “Nós por Nós”. Entre elas, o projeto Quilombo e Educação, realizado pelo Coletivo de Educação da Conaq, com apoio do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT).
Recentemente, o Quilombo e Educação cruzou a análise de microdados do Censo Escolar 2020 com pesquisas realizadas pela própria Conaq. Presente em 30% dos municípios brasileiros, a pesquisa revela que, em 2019, os territórios quilombolas contavam com 2.526 escolas, 51.252 educadores/as e 275.132 estudantes. Dentro dessas comunidades tradicionais, o acesso à internet chegou para 41% das escolas, entre as quais 30% possuíam banda larga, 15,6% utilizavam a internet para fins pedagógicos e de aprendizagem e apenas 11,7% forneciam acesso à internet para seus estudantes. Nota-se, portanto, que o acesso nas escolas quilombolas já era ruim em 2019, mas que deve ter piorado nos últimos anos. Ainda assim, não é possível saber o tamanho do estrago, devido aos sucessivos apagões de dados no Inep.
Nesse cenário problemático, diversas categorias trabalhistas da educação e outros serviços públicos realizaram mobilizações e manifestações, durante o ano de 2021, por melhores condições de trabalho e acesso ao direito à educação. Em Salvador, um ato organizado por professores/as indígenas buscou demonstrar a realidade da educação baiana. “Os indígenas são concursados desde 2014 e recebem um subsídio de 1.014 reais (líquido de 800 e pouco reais), mesmo com especialização, mestrado e doutorado. Lutamos há quase oito anos para ter os nossos direitos enquanto educadores, para que a gente não continue sofrendo esse racismo institucional. A gente recebe abaixo do piso salarial. É uma falta de dignidade”, denunciou Juliana Amanayara Tupinambá, uma das professoras à frente da manifestação que buscava equiparação dos salários dos/as professores/as indígenas com o piso salarial da educação, além da mudança na lei estadual que regulamenta a carreira (lei 12.046/11).
Juliana acrescenta que na pandemia “aumentou o nível de fome dentro dos territórios, porque a gente sabe que o colégio era um refúgio para o alimento. A merenda escolar às vezes é a única refeição que os nossos alunos têm”. Visando minimizar a insegurança alimentar no Território Tupinambá, os/as educadores/as, em parceria com as instituições de ensino superior da região, fizeram lives solidárias para arrecadar recursos e comprar alimentos. “Entregamos cestas para os nossos alunos. Usamos várias estratégias para poder minimizar a fome”, conta a professora.
A aproximadamente 2 mil quilômetros de distância de Olivença (BA), no extremo sul de São Paulo (SP), a comunidade Guarani Mbya, que vive no Território Indígena Tenondé Por’ã, após a pandemia tomou a decisão de transformar suas escolas e fazê-las caminhar pelo território. Como diz Jera Guarani, em artigo publicado na revista Pise a Grama, “refletimos muito sobre o que se ensina, para que se ensina, o que buscamos, que tipo de alunos queremos formar”.
Com essa percepção, os Guarani constroem a nhembo’ea oguata (escola caminhante), que extrapola as paredes das salas de aula e estabelece vínculos afetivos e ancestrais com o território. Nesse processo, como aponta Pedro Ekman, organizador do LabTaCo (Laboratório Tático do Comum), projeto do Intervozes que apoia o processo na TI Tenondé Por’ã, “ao invés de as crianças se deslocarem para as escolas, os professores é que vão para as aldeias e as aulas acontecem nos territórios”.
É na esteira da experiência dos Guarani, das lutas travadas pelas pesquisadoras negras e quilombolas, frente à negação de informações oficiais, e da mobilização dos/as professores/as indígenas na Bahia que emergem exemplos para identificar e enfrentar as sucessivas crises que atingem a educação pública brasileira, expressas tanto na pandemia, quanto nos recentes escândalos de desvio de verbas do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE).
Iago Vernek é professor da rede pública e associado ao Intervozes. Tâmara Terso é jornalista amefricana, mestra e doutoranda em Comunicação e Cultura Contemporâneas na UFBA, integrante do Conselho Diretor do Intervozes.
[1]Organizado pela Iniciativa Educação Aberta, com apoio do Instituto Alana, o relatório Educação, Dados e Plataformas traz uma análise descritiva dos Termos de Uso e Política de Privacidade do G Suite for Education e Microsoft 365.