O poder das grandes plataformas digitais avança sobre a educação
Apesar da tecnologia possibilitar uma certa mediação entre professores e estudantes, não foi acompanhada de uma política que abarca toda a complexidade do ensino e aprendizagem, inclusive em relação à garantia de direitos trabalhistas
As tecnologias sempre causaram transformações abruptas nos currículos pedagógicos. No processo, longo e híbrido, de adaptação às mudanças técnicas, é gerada uma série de descompassos nas redes de educação, pois, normalmente, tal processo é movido por interesses comerciais. Nesse sentido, a manutenção das atividades escolares a distância, por meio do uso de plataformas digitais, a fim de salvar o empresariado do choque causado pela pandemia de covid-19, amplia a exclusão social no ensino.
Além das dificuldades de acesso à internet e do deficitário sistema público educacional, muitas famílias enfrentam problemas financeiros por terem perdido o emprego nesse período. Nas escolas, houve cortes em quase todos os setores terceirizados, como os cargos de cozinha, limpeza, transporte e manutenção. Portanto, apesar de a tecnologia possibilitar uma certa mediação entre professores e estudantes, não foi acompanhada de uma política que abarca toda a complexidade do ensino e aprendizagem, inclusive em relação à garantia de direitos trabalhistas.
No atual período de globalização e emergência do neoliberalismo, junto ao desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação (TICs), alteram-se as infraestruturas dos lugares, o que acaba por desajustar as normas que os regem, chamadas por Marx de superestruturas. Como percebemos no embate entre saúde e economia, durante todo o ano pandêmico de 2020, a pressão corporativa trata de sempre realinhar as ideias aos interesses capitalistas, mesmo quando atentam contra a vida e o bem-estar da população.
De acordo com Marcos Dantas, o controle privado da comunicação ampliou a segmentação social e dos territórios, sendo que “a totalidade humana, vista nas suas grandes e reais classes sociais, e os sonhos universalistas dela derivados, esfarelam-se na afirmação das diferenças, dos localismos, das identidades grupais, subculturais, raciais, sexuais etc.”[i]. Já para Ladislau Dowbor, caminhamos em direção a uma “sociedade da informação”, que apresenta novos mecanismos de dominação econômica e cultural, conforme uma pirâmide histórica de exploração do trabalho e do conhecimento[ii].
Com o isolamento social, motivado pela pandemia do novo coronavírus, a presença da internet e de plataformas digitais no trabalho, lazer e estudo das pessoas foi intensificada ainda mais. No entanto, a migração rápida da rotina presencial para o ambiente virtual acabou por ampliar os desafios de conexão e organização, tornando evidentes os problemas estruturais na educação brasileira. Assim, o conjunto da sociedade deve ser alertado sobre as disputas que envolvem a crescente digitalização do cotidiano social, no qual a escola está inserida.
O uso de tecnologias digitais no ensino: barreiras, riscos e oportunidades
No bojo da flexibilização trabalhista, das reformas administrativas do Estado e do rentismo financeiro, o avanço das empresas de tecnologia sobre a educação é barrado em desigualdades sociais. A título de exemplo, um levantamento realizado no Colégio Técnico da Unicamp (Cotuca), em 2020, divulgado pelo Intervozes, mostrou que mesmo em um colégio com melhor estrutura, os problemas de acesso à internet e de baixa qualidade dos equipamentos são constantes. Além disso, 27,9% dos estudantes têm alguma responsabilidade no cuidado de crianças e 19,7%, de idosos.
Segundo as pesquisas TIC Educação e TIC Domicílios 2019 (Cetic/NIC.br), somente 14% das escolas públicas no país tinham um “ambiente ou plataforma virtual de aprendizagem” antes da pandemia, sendo este índice de 64% na rede particular – o que demonstra o alto nível de despreparo nas redes públicas de ensino. Há uma desigualdade também em nível regional. Enquanto no Sudeste 88% dos estudantes estão conectados à internet, no Nordeste são apenas 73%. Na área rural, apenas 40% das escolas possuem um computador com acesso à rede.
Outra questão relevante é que 58% dos brasileiros usam a internet exclusivamente pelo celular. Na área rural, esse índice sobe para 79% e, entre as classes D e E, para 85% (Cetic/NIC.br). Dados da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel)[4] mostram que 55% dos acessos móveis no país se dão por planos pré-pagos, muitos deles com pacotes básicos de dados. Com todas essas situações, assistir vídeo-aulas, baixar materiais ou, simplesmente, manter uma rotina de estudos se tornam atividades desafiadoras e excludentes.
Mesmo com todas essas barreiras, houve quase uma unanimidade de governos e instituições privadas na adoção de estratégias de ensino remoto durante a pandemia. De acordo com levantamento do Instituto Alana, Educadigital e Intervozes, quase 70% das escolas públicas estaduais e municipais das capitais brasileiras contrataram plataformas privadas no período. Das 53 secretarias de ensino mapeadas, mais de 20 adotaram serviços do Google, o que representa 31,9% das aplicações utilizadas[iii]. Por outro lado, diversas organizações desenvolveram ou aprimoraram aplicativos e ambientes virtuais de aprendizagem (conhecidos pela sigla “ava”) próprios. No Tocantins, a aposta se deu em usar um software livre: a plataforma colaborativa Moodle.
Para alcançar o comando dos meios de comunicação, algumas corporações constroem gigantescos bancos de dados (big data) e potentes sistemas físicos, capazes de armazenar, processar e transmitir uma enorme quantidade de dados pelo mundo. Através de algoritmos fechados, conteúdos são captados e entregues de acordo com a personalidade dos usuários das plataformas. Estrutura-se, com o tempo, uma acurácia no direcionamento dos fluxos, bem como um poder de modulação da audiência e do comportamento social. Vale ressaltar que boa parte dos satélites e cabos submarinos de fibra óptica, bem como os servidores e provedores, que permitem o armazenamento e a distribuição de toda essa gama de informações, são de posse de poucas firmas, localizadas no norte desenvolvido[iv].

Outra pesquisa importante, produzida em 2017 pela PretaLab/Olabi e ThoughtWorks sob o título #quemcodabr para analisar a diversidade no mercado de tecnologia, revelou que apenas 36,9% da mão-de-obra empregada no setor é de pessoas negras/pretas e pardas, enquanto as pessoas brancas respondem por 58,3% do total. Percebe-se, assim, uma sub-representação das pessoas negras, que respondem por 53,9% da população brasileira, contra 45,2% de brancos, além de uma super-representatividade masculina, que responde por 68,3% dos cargos ocupados enquanto compõe 48,5% dos habitantes do país. Além disso, 20% das equipes profissionais não possuem mulheres e em mais de 30% delas não há pessoas negras.
De forma diferente do que se poderia esperar em relação a uma possível ampliação da liberdade de expressão e da diversidade de ideias, bem como em termos de cidadania e democracia, as TICs restringiram as relações pessoais, ampliando a mediação enviesada dos robôs. Um “efeito rede”, conveniado ao big data, favorece a concentração de acessos em algumas plataformas, nas quais a quantidade de interações equivale ao valor de mercado dessas empresas.
Segundo Marcos Dantas, “a internet permite ao capital individualizar o consumidor e dele extrair toda a informação-valor que puder, levando a um limite nuclear a fragmentação social e a concomitante exclusão”[v]. Por outro lado, a rede digital “concretizou novas possibilidades no que se refere à circulação global de informações, garantindo maior velocidade aos fluxos”[vi]. Apesar dos tentáculos das corporações, a apropriação integral das tecnologias abre espaços alternativos para a produção de uma educação e comunicação livres e abertas nos aspectos político, técnico e narrativo.
Alternativas para a democratização da comunicação na educação
No Brasil, apesar dos avanços em relação aos direitos digitais a partir do Marco Civil da Internet (2014) e da Lei Geral de Proteção de Dados (2018), algumas garantias legais ainda não são aplicadas, seja por falta de acúmulo jurídico ou mesmo por vontade das empresas e dos governos[vii]. Enquanto entrega a infraestrutura e os serviços públicos às corporações estrangeiras, o Estado falha na universalização do acesso à internet e à educação.
Como revelam os dados da Cetic/NIC.br, falta infraestrutura e suporte técnico nas escolas, das quais apenas 25% afirmam possuir projetos de formação sobre o uso de novas ferramentas digitais no ensino. Na ausência de capacitação adequada, mais de 80% das professoras e dos professores utilizam a própria internet para desenvolver ou aprimorar suas habilidades no tema.
Mais uma vez, durante o isolamento social, coube às trabalhadoras e aos trabalhadores usarem recursos próprios para dar conta de um planejamento improvisado, oferecendo apoio, não apenas pedagógico, às comunidades escolares. Como destacou a professora Carla Carvalho, da rede municipal de São Paulo, no debate Educação, Internet e Pandemia, promovido pelo Intervozes, os desafios educacionais, que não eram poucos, ficaram ainda maiores durante a pandemia, o que evidenciou a importância das políticas públicas.
Acreditando no mito de que a tecnologia é neutra e pode solucionar os problemas educacionais, alguns gestores, frequentemente, realizam investimentos gigantescos em novos recursos eletrônicos sem o acompanhamento de uma reflexão responsiva sobre seus impactos no cotidiano escolar. Também alguns projetos de educomunicação e formação para tecnologias digitais no ensino se esvaziam na ausência de sentido social para a mídia nos lugares.
Em meio à reorientação dos currículos pedagógicos para o uso de tecnologias digitais, Instituto Alana, Educadigital e Intervozes – organizações que defendem a democratização da comunicação, bem como a promoção dos direitos de crianças e adolescentes – elaboraram o guia interativo A Escola no Mundo Digital. O material traz elementos importantes para uma problematização da proteção de dados pessoais dos estudantes.
Entre as preocupações trazidas pelo guia, estão: garantir que os estudantes não se tornem um instrumento de exploração comercial; proteger crianças e adolescentes de riscos relacionados à sua segurança e integridade física, psíquica e sexual; impedir a consolidação da vigilância e o reforço da discriminação; diminuir riscos e ameaças à privacidade; proteger a segurança, integridade e privacidade de professores e gestores escolares; desenvolver práticas educativas em cidadania digital nas escolas[viii].
A partir da organização coletiva e da experiência da escassez, diversas comunidades fazem uso de tecnologias e meios de comunicação alternativos para reverter situações de injustiça. Na pressão sobre as instâncias governamentais, no trabalho coletivo de base e na cultura popular estão contidas estratégias de caráter político para (re)viabilizar o território de acordo com suas potencialidades. É nesse sentido, por exemplo, que atua a Rede Emancipa de Cursinhos Populares, “um movimento social de educação popular que desde 2007 constrói um importante trabalho voltado à educação de jovens de escolas públicas”, sobretudo na organização de cursinhos pré-universitários, gratuitos e voluntários.
Democratizar o ensino e a comunicação significa, portanto, libertar os sujeitos da passividade em relação à informação e ao conhecimento. Assim “é que os segmentos populares conscientizados buscam sua autoemancipação comunicativa. O fazem numa perspectiva coletiva, tanto no sentido de gestão e uso dos espaços na programação, como no conteúdo das mensagens que são transmitidas”, conforme destaca Peruzzo[ix].
Ao lado dos povos tradicionais, movimentos sociais e coletivos auto-organizados, há chances efetivas de a comunicação e a educação mudarem a realidade. Em meio à digitalização e “plataformização” do cotidiano, a segurança digital fornece boas perspectivas para uma nova frente de batalha, na qual o software livre e a programação aberta (códigos ou licenças) são armas eficientes contra o monopólio privado das redes sociais e plataformas digitais.
No processo de democratização da comunicação e da educação estão em jogo não apenas a liberdade de expressão e de cátedra stricto sensu, que possuem garantia por leis nacionais e acordos multilaterais, mas também a possibilidade de uma transformação política e cultural mais ampla, voltada à cidadania e à democracia. Trata-se de assegurar, para além do acesso à informação, na posição passiva de recepção, o protagonismo de sujeitos e coletivos na produção de conteúdos e saberes, assumindo, assim, a condição de emissores.
[i] DANTAS, Marcos. Informação e Trabalho no Capitalismo Contemporâneo. Lua Nova, 2003, p. 33.
[ii] DOWBOR, Ladislau. O capitalismo se desloca: novas arquiteturas sociais. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2020.
[iii] Segundo a pesquisa Monopólios Digitais, elaborada pelo Intervozes em 2017, os sites de produção e distribuição de conteúdo mais acessados no Brasil são do Google e do Facebook, além de Twitter e Yahoo. Em relação ao mercado de aplicativos, essas plataformas representam 63% dos downloads na loja do Google e 75% na loja da Apple.
[iv] De acordo com a revista Submarine Telecoms Forum, quase 99% do tráfego de dados intercontinental na internet passa por cabos submarinos de fibra óptica. Segundo o site BroadBandNow, em 2019, o Google se tornou acionista majoritário de 100 mil km de cabos submarinos, tendo alguma participação em 8,5% do total existente. Já o Facebook possui uma rede de 90 mil km; a Amazon, 30 mil km; a Microsoft, 6,6 mil km.
[v] DANTAS, Marcos. Informação e Trabalho no Capitalismo Contemporâneo. Lua Nova [online], 2003, p. 40.
[vi] PASTI, André Buonati. Notícias, informação e território: as agências transnacionais de notícias e a circulação de informações no território brasileiro. Dissertação (Mestrado em Geografia) – GEOPLAN, Instituto de Geociências, Universidade Estadual de Campinas, 2013, p. 82.
[vii] Conforme a pesquisa “Fake news: como as plataformas enfrentam a desinformação”, lançada pelo Intervozes em 2020, Facebook, Instagram, Whatsapp, Youtube e Twitter não apresentaram quaisquer políticas e processos estruturados para combater a desinformação, reagindo pontualmente ao fenômeno por meio de práticas verticalizadas e subjetivas de moderação, remoção e redução de alcance dos conteúdos. A monetização, que representa o ponto central do modelo de negócios, segue opaca, impossibilitando um diagnóstico preciso sobre o controle privado dos dados pessoais.
[viii] VERNEK, Iago; MEIRA, Marina; GONSALES, Priscila. A Escola no mundo digital – dados e direitos de estudantes. Instituto Alana, São Paulo, 2020.
[ix] PERUZZO, Cicilia Maria Krohling. Direito à comunicação comunitária, participação popular e cidadania. In: OLIVEIRA, Maria J. da C. (Org.). Comunicação pública. Campinas: Alínea, 2004, p. 34.