Desafios dos assentamentos
Se a política agrícola brasileira fosse diferente, talvez o país não sofresse com a crise mundial de alimentos. Esse é um dos argumentos utilizados pelos sem-terra para chamar a atenção para a precarização das áreas de reforma agrária: falta infra-estrutura, escolas, postos de saúde, enfim, tudo.
“Os assentamentos não são feitos para funcionar.” Essa frase poderia ter saído da boca de algum latifundiário que teve sua fazenda ocupada por sem-terras. Ou, talvez, de um político conservador do interior do Brasil. Mas, surpreendentemente, ela é de um integrante do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra).
A viabilidade das áreas de reforma agrária é um tema bastante espinhoso para o maior movimento social brasileiro. Afinal, o sucesso dos assentamentos é seu principal trunfo para legitimar a justa distribuição de terras no país. Mas a verdade é que há problemas, muitos deles intransponíveis e fora da alçada dos sem-terra, que impedem o progresso dessas experiências.
E encará-los significa, antes de tudo, olhar do outro lado das cercas, para os latifúndios monocultores. Ao menos é isso que defende Pedro Christoffoli, integrante do setor de produção do MST e autor da afirmação do início da matéria. Segundo ele, “a reforma agrária é uma política estatal, mas o Estado não está favorecendo sua realização porque escolheu priorizar outro modelo, o do agronegócio”.
De fato, é inegável que o governo vem promovendo, com intensidade, os logros dos grandes empreendimentos agrícolas voltados para exportação. Basta analisarmos as últimas declarações do presidente Lula sobre o governador do Mato Grosso, Blairo Maggi, um dos maiores latifundiários – e desmatadores, segundo o Greenpeace – do país: são elogios atrás de elogios. “Com essas escolhas, o Estado condiciona os assentamentos a não terem êxito”, lastima Christoffoli, que cursa doutorado em Desenvolvimento Sustentável na Universidade de Brasília (UnB).
Para o presidente do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), Rolf Hackbart, o motivo da “preferência” é óbvio: “O agronegócio é hoje a principal locomotiva da economia brasileira e responde por um em cada três reais gerados no país. Também é responsável por cerca de 33% do PIB (Produto Interno Bruto), 42% das exportações totais e 37% dos empregos brasileiros”. Enquanto isso, a agricultura familiar, apesar de gerar 60% dos alimentos consumidos pelos brasileiros, recebe um investimento consideravelmente menor: em 2007, a verba destinada para o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) foi R$ 3,30 bilhões, quase metade dos R$ 6,49 bilhões do Ministério da Agricultura. E entre 1992 e 2003, a área ocupada pelas propriedades rurais cresceu 89 milhões de hectares, ao passo que foram desapropriados 25 milhões de hectares para a reforma agrária.
A relação direta entre a valorização do agronegócio e a lentidão das políticas públicas para os assentados também é constatada por Plínio de Arruda Sampaio, presidente da Abra (Associação Brasileira da Reforma Agrária). “Depois que ficou fascinado com a ideia de transformar a agricultura brasileira em grande exportadora de grãos e de energia vegetal, Lula desacelerou o programa de assentamentos. Não irá paralisá-lo inteiramente para não sofrer mais críticas no plano político, mas a ideia é ir devagar, quase parando”, acredita. Autor do II Plano Nacional de Reforma Agrária do governo, que em 2003 estabeleceu as metas a serem cumpridas durante o primeiro mandato de Lula, Sampaio também foi relator do tema nas reformas de base de João Goulart e consultor da FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação). Decepcionado, ele lamenta que “a reforma agrária brasileira adquiriu as características de um programa assistencial compensatório e focalizado”.
Assim como usa dados para defender o agronegócio, o governo também responde a essas acusações com números: na safra 2008-2009, vai destinar R$ 13 bilhões ao Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar), o carro-chefe do MDA.
Desilusão com o Pronaf
Para os sem-terra, porém, o programa não passa de “perfumaria”: “O Pronaf é uma medida periférica”, diz Christoffoli. Sua principal crítica é que não há uma política articulada de amparo à produção: o crédito recebido acaba custeando boa parte da infra-estrutura dos assentamentos, que deveria ser responsabilidade do Incra. E o resultado é um índice de inadimplência de 80% entre as cerca de 1,2 milhão de famílias assentadas. “O sistema é uma arapuca que no final gera dívida”, afirma o dirigente do MST. Para ele, o erro começa já na escolha da terra. Como as áreas desapropriadas são necessariamente improdutivas, seguindo os preceitos estabelecidos pela Constituição Federal, elas exigem muito esforço e auxílio técnico – que raramente vem – para se tornarem agricultáveis outra vez. E esse investimento muitas vezes é feito com as verbas do Pronaf. “Realmente, as terras distribuídas são sempre – ou quase sempre – as de pior qualidade, localizadas nos ecossistemas mais delicados, sujeitos a secas ou inundações”, explica Jean Marc von der Weid, agrônomo da AS-PTA (Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa).
Justamente por isso, em geral as áreas estão longe de regiões centrais e das fronteiras agrícolas. Alguns assentamentos distam mais de 40 quilômetros em estrada de terra de qualquer município. Obviamente, isso acarreta diversos problemas: primeiro, para escoar a produção, que somado à falta de energia elétrica praticamente inviabiliza alguma iniciativa em maior escala – no centro-sul, por exemplo, onde um número significativo de famílias vive do leite, o produto dificilmente é comercializado para laticínios porque não tem como ser refrigerado; segundo, para acessar direitos básicos como a saúde. “A saúde no Brasil é ruim, mas no meio rural é um caos. Várias pesquisas nos assentamentos demonstram que, mesmo em lugares em que o asfalto é melhor, a população rural tem dificuldade de ser atendida porque precisa chegar aos postos antes dos moradores da cidade para conseguir entrar na fila”, lembra Christoffoli. A questão é tão grave que o movimento resolveu encontrar uma saída própria: investir na formação de seus militantes. Algumas dezenas deles foram estudar Medicina em Cuba e outros estão cursando Enfermagem na Universidade Federal da Paraíba, via Pronera (Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária).
A mesma solução é aplicada para os outros níveis educacionais: muitos assentamentos têm escolas com educadores do próprio movimento. A iniciativa, é claro, tem seus limites. “Houve melhorias [nesse setor], mas a situação continua ruim. Há estudos da Unicef (Fundo das Nações Unida
s para a Infância) que dizem que as chances dos camponeses chegarem a uma universidade é 15% menor do que das pessoas que moram nas favelas. Isso porque a educação não é adaptada à realidade dos assentados e algumas vezes nem chega até eles”, afirma Christoffoli.
No rol dos obstáculos, ele aponta ainda a distribuição de água. Uma das situações-limites pode ser encontrada no sertão pernambucano, em Santa Maria da Boa Vista. Lá, o assentamento Catalunha completou recentemente dez anos sem o líquido tão precioso, apesar de estar na mesma região de grandes programas de irrigação da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), como o Projeto Pontal.
O Incra reconhece os empecilhos: “Os assentados, de forma geral, provêm de famílias de trabalhadores com baixíssimos níveis de escolaridade, com experiências diversificadas sobre o trabalho no campo e vítimas do processo de exclusão social. Além disso, alguns assentamentos estão localizados em regiões com fortes restrições de mercado, oferta deficitária de serviços sociais, infra-estrutura básica dissociada da produção e da comercialização, indicando claramente a desarticulação da política da reforma agrária com os programas locais e regionais”, diz Rolf Hackbart. Sem apresentar iniciativas para além das que já estão estruturadas, o presidente do órgão cita uma pesquisa conduzida por técnicos da Universidade de São Paulo, da FAO e do Incra que comprova o abandono das áreas de reforma agrária em decorrência das questões apontadas acima, em especial das “limitações edáficas regionais muito severas” – leia-se terras impróprias. Pelos cálculos apresentados por ele, a desocupação foi intensa: mais de 70 mil famílias deixaram os lotes nos assentamentos criados entre 1985 e 2001. “Uma evasão de 10% a 15% pode ser considerada normal, porque responde a uma taxa aceitável de vicissitudes que obrigam uma família a desistir da empreitada, tais como morte, doença, herança, oferta de emprego melhor na cidade etc. Mais do que isso evidencia a ocorrência de abusos que o Incra, se quisesse, teria todas as condições de impedir”, afirma Plínio de Arruda Sampaio.
Por tudo isso, o MST decidiu decretar, sozinho, a falência da política agrícola do governo federal, em especial do Pronaf. Mas não sem propostas, pelo contrário. O movimento já apresentou suas novas idéias ao MDA e ao Incra, mas ainda não recebeu resposta. A principal delas é a garantia de preço e mercado para os produtos dos assentamentos, além do aumento dos créditos e das condições de pagamento. Isso significa que o Estado se responsabilizaria por adquirir parte das safras dos pequenos produtores que seria estocada em seus depósitos. Em um cenário de crise mundial de alimentos1, a proposição ganha mais apelo, já que os sem-terra a apresentam como uma alternativa concreta para impedir o aumento dos custos de itens básicos de consumo, como o feijão e o arroz. “Se nós tivéssemos estoque regulador, ou seja, adquirido pelo Estado, seria fácil: liberaríamos o que estava armazenado e o preço baixaria”, diz Christoffoli. Ele mesmo aponta uma iniciativa estatal que, se ampliada, poderia funcionar dessa forma: as doações coordenadas pela Conab (Companhia Nacional de Abastecimento), em que a produção dos assentados é comprada pelo governo e enviada a áreas com populações carentes. O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) faz parte do Fome Zero e é considerado um grande sucesso pelo MDA. Como a aquisição é feita sem intermediários ou licitações, o processo torna-se bem mais simples e acessível.

Mas, ainda que o governo aceite as propostas do movimento, isso não será suficiente para garantir o sucesso dos assentamentos. Para os sem-terra, eles mesmos também têm um papel a cumprir em um novo projeto de reforma agrária. “Nossa grande tarefa é tentar implementar um outro padrão de produção agrícola que se oponha a esse estabelecido”, diz Gilmar Mauro, da direção nacional do MST.
“A questão central”, avalia, “é que os assentamentos estão inseridos dentro do mercado capitalista. Para obterem o lucro almejado, as empresas precisam diminuir o custo de produção e, por isso, investem em tecnologia e usam produtos químicos de forma intensiva. É uma lógica concorrencial de livre-mercado a qual é necessário se adaptar. Ou os camponeses entram junto na corrida tecnológica ou intensificam suas horas diárias de trabalho para produzir mais. É preciso mudar isso.” E pondera: “Nós não temos ilusão de que vamos massificar essa proposta e transformá-la em um padrão dominante. Entretanto, a construção desse projeto de resistência ao modelo vigente mostra para a sociedade que é possível existir uma alternativa que racionalize a utilização dos recursos naturais e da mão-de-obra. A orientação é essa, mas é claro que não podemos impô-la nem aos assentados. Trata-se de um debate difícil, muita gente não concorda”.
A marca fundamental desse outro modelo é a agroecologia2. O Paraná é um exemplo do quanto o movimento acredita na alternativa: três escolas de nível médio foram fundadas nos últimos anos para formar técnicos em agroecologia, e em 2005, os sem-terra inauguraram a Escola Latino-Americana de Agroecologia, em parceria com a Universidade Federal do Paraná. “Diante da total ausência do Estado, os movimentos camponeses tomaram para si o desafio estratégico e criaram suas escolas”, analisa José Tardin, técnico agropecuário e integrante da Via Campesina.
Jean Marc von der Weid é outro defensor dos cultivos agroecológicos: “A solução social, econômica e ambiental para a crise urbano-rural em que estamos mergulhando está na profunda alteração do paradigma de desenvolvimento rural que vigora hoje, baseado no modelo norte-americano de agricultura centrado na tecnologia da chamada ‘revolução verde’3 e no esvaziamento do campo. No futuro, precisaremos de uma agricultura que utilize tecnologias capazes de produzir com base essencialmente na reciclagem e conservação de recursos naturais renováveis e esse sistema de produção não consegue operar na escala das grandes monoculturas do agronegócio. Apenas a agricultura familiar está adequada para a aplicação da agroecologia”, diz.
Para tornarem viável essa produção, os sem-terra apostam igualmente na criação e manutenção de cooperativas. “Na cadeia produtiva, a agricultura tem uma parte cada vez menor no preço final que o consumidor paga. Se o agricultor não se organizar nas agroindústrias e se associar em cooperativas, há u
ma perda muito grande do valor gerado. Isso é estratégico”, afirma Christoffoli. O MST vem tentando aplicar essa proposta nas áreas de reforma agrária, mas não é fácil convencer os sem-terra. Principalmente porque o Pronaf distribui os créditos de forma individual, o que significa que o dinheiro chega primeiro ao agricultor e depois é repassado para a cooperativa. No meio do processo, muitos desistem da opção pela socialização dos recursos.
Por fim, os sem-terra acreditam que é preciso utilizar a cultura para fixar os assentados na terra e, dessa forma, garantir o sucesso de sua alternativa. “É preciso pensar uma nova sociabilidade em que, ao invés de ficar na frente da televisão à noite, a família tenha espaço para o teatro e a arte”, diz Mauro. Christoffoli concorda: “Temos de avançar o trabalho com a educação, a cultura popular e o teatro. No Brasil, há uma certa atratividade da cidade e uma desvalorização do campo, estigmatizado na televisão pela imagem do jeca, do colono, do burro. É preciso recuperar a idéia de que a vida no campo não precisa ser ruim. Para isso, a cultura é, sem dúvida, um fator de agregação social. Hoje nós temos problemas econômicos em muitos assentamentos, mas mesmo naqueles que estão melhor estruturados enfrentamos essas outras dificuldades”.
O assentamento Dom Tomás, em Franco da Rocha, interior de São Paulo, é um dos que já começaram a trabalhar essa “nova sociabilidade”. Antes mesmo de construírem suas casas, os sem-terra ergueram o “Espaço Comunal Patativa do Assaré”, onde realizam celebrações e assembléias, além de bailes de forró.
Localizado ao lado de uma penitenciária que sempre aparece nos noticiários por suas rebeliões freqüentes, o Dom Tomás reúne todos os problemas e as apostas do movimento hoje: apesar de estarem parcialmente sem água há seis anos, desde que acamparam, os sem-terra plantam frutas agroecológicas e cultivam mel. Figo, uva, morango, banana, ameixa e maracujá já foram vendidos pela associação de assentados para consumidores da capital. Agora, eles pretendem entrar no projeto da Conab para distribuir os alimentos no município vizinho, Francisco Morato.
“Mesmo assim, tudo aquilo que conseguimos não parece suficiente. A reforma agrária ainda não é eficaz”, desabafa Rosely Maria Paini, assentada no local. O desânimo deve passar em breve: em 5 de julho os sem-terra finalmente vão deixar as lonas pretas, depois de quatro anos assentados, e inaugurar suas casas. É um desses sopros de esperança que sempre vêm para animar aqueles que defendem um outro projeto de mundo.
Maíra Kubík Mano é jornalista, foi editora de Le Monde Diplomatique Brasil e atualmente é docente do Bacharelado em Gênero e Diversidade da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
1 “Tumulto na produção mundial de cerais”, Dominique Ballard, Le Monde Diplomatique Brasil, número 10.
2 Agroecologia é um processo de produção agrícola que visa gerar alimentos mais saudáveis e naturais, sem uso de agrotóxicos e com a utilização racional dos recursos naturais.
3 “Revolução verde” é o termo utilizado para designar o processo de disseminação de novas práticas agrícolas que permitiram um aumento da produção a partir da década de 1960. Suas principais características são as utilização de sementes melhoradas e de insumos, como fertilizantes e agrotóxicos, além do uso extensivo de tecnologia no plantio.