Descobrindo o politeísmo
A questão do nascimento do (ou dos) politeísmo(s) nasce da reflexão de filósofos, sociólogos, antropólogos e teólogos sobre as “origens religiosas da humanidade”, percebida como essencial ao conhecimento do Ocidente e garantidora do nosso “privilégio” de encarnar a civilizaçãoMarcel Detienne
Anunciar que dois terços da humanidade contemporânea são “naturalmente” politeístas soaria meio sem sentido se não lembrarmos em quais circunstâncias a afirmação de “um só deus” fez surgir o reconhecimento de deuses múltiplos e plurais. Para entender e pensar o que significa “politeísmo”, deve-se considerar historicamente a invenção de algumas religiões monoteístas proeminentes entre Roma, Meca e Jerusalém.1
Politeísmo vem do grego polythéos, “aquele que adora deuses múltiplos”. O termo parece ter sido inventado por Ésquilo, em uma de suas tragédias, para descrever um lugar, perto de Argos, onde seis ou sete deuses seriam venerados. Nada mais que um pequeno jardim politeísta, como dezenas de outros na antiga Grécia. Mas foi apenas no Renascimento que a palavra “politeísmo” entrou definitivamente no idioma, transformando-se em ideia e problema: o termo rotula o paganismo como movimento coletivo em oposição ao cristianismo, figura dominante de um monoteísmo dogmático.
A história das religiões, aquela que tomou forma no século XIX, é um híbrido. Ela deriva de duas origens diferentes: da teologia cristã, por um lado; e da história, que busca o saber científico e positivo, por outro. A questão do (ou dos) politeísmo(s) nasce da reflexão de filósofos, sociólogos, antropólogos e teólogos sobre as “origens religiosas da humanidade”, percebidas como essenciais ao conhecimento do Ocidente e garantindo o nosso privilégio de encarnar a civilização. Fica claro porque uma análise comparativa e experimental dos politeísmos – discussão sobre gêneros, espécies, variedades e estilos – continua sendo uma questão insólita, senão proibida dentro da maioria das instituições de ensino, onde as questões e os problemas ressurgem ao longo de décadas com as características próprias do monoteísmo, a começar pela mais “católica2” das três fés.
A historiografia, que vai do Novo Testamento ao Antigo, é vista de alguma maneira, portanto, como o primeiro monoteísmo, qualificado como bíblico, injetando uma história rica em conflitos e rupturas. O Antigo Testamento, a Bíblia hebraica, se beneficia por ter alguns séculos a mais que o Evangelho – ou a Boa Nova, originalmente escrita em aramaico e grego. Nossa reconstrução do passado do Oriente Médio nos leva a crer que a aparição de Deus recusando todos os outros textos pode datar do século VI antes da nossa era. Existe aí algo de peculiar para o observador de hoje, que já sabe que o surgimento do homem se locomovendo na vertical data de mais de 1,7 milhão de anos, no continente africano. Desde que o desenvolvimento de seu cérebro lhe permitiu dispor “de uma linguagem”, não há dúvida que um ser tão frágil tenha começado a imaginar toda sorte de entidades que chamamos de sobrenaturais, seja a partir de sonhos ou do entusiasmo essencial para sobreviver dia após dia, noite após noite.
Unicidade
Talvez um ou outro desses longínquos bípedes tenha concebido a representação de um gênio que sonhava em excluir todos os outros gênios. No momento, temos de nos contentar com a singularidade que apareceu dentro de uma tribo nômade do Oriente Médio, num ambiente sírio-cananita, em que um grupo de pastores começou a acreditar, entre dois acampamentos, que seu Elohim, seu pequeno deus “nacional”, queria ser adorado como o único Elohim, que se chamava Yahwe e havia decidido separar os “filhos de Israel” para transformar aquele grupo específico no seu “povo escolhido”.
À primeira vista, um ato sem consequências. Nem os assírios, nem os gregos, nem os africanos ficaram tocados pelo anúncio, e os chineses muito menos. Os únicos dos quais adoraríamos saber a reação eram os persas, contemporâneos dos judeus, após o exílio na Babilônia. Esses persas preferiam deixar os povos dominados com sua autonomia e tinham conhecimento de divindades como Yahwe, sem presença material, sem templos nem estátuas. Os especialistas sobre a Bíblia, protestantes e católicos, concordam que a megalomania ciumenta do pequeno deus de Israel teria sido discutível se um passado politeísta milenar não houvesse enchido, no Oriente Próximo e Médio, os centros e santuários com representações pictóricas de poderes mais ou menos divinos.
Apenas no século de Voltaire, mais de 2 mil anos após Deuteronômio ou Ezequiel, David Hume teve a ousadia de reconhecer a primazia daquilo que alguns de seus contemporâneos gostavam de chamar de “politeísmo”. Ainda levará muito tempo para que os politeísmos sejam bem analisados no Ocidente, dado o poder do monoteísmo cristão.
Arqueólogos, linguistas e historiadores inauguraram recentemente em Bogazkale (Turquia) o inventário dos panteões hititas. Esse era o local de assembleia dos deuses e parecia ser a capital do reino. Um politeísmo altamente centralizado, com administração de escribas, funcionários públicos e ministros, ocupados em classificar uma população divina funcional. Paralelamente, os especialistas em civilizações sumerianas e paleobabilônicas continuam mostrando como eram cuidadosos os letrados da época – adivinhos e escribas – e como se dedicaram a organizar centenas de deuses, fazendo a exegese de nomenclaturas, reagrupando-os em famílias, pares e tríades.
Os deuses podem estar representados em tudo. Na porta ao lado, numa pegada na areia, num trono vazio, num espelho de metal, num odor, num silêncio. No Japão, eles são inúmeros: todos os objetos, todo ser, um grão de arroz, um topônimo, um galho, uma pedra.
Por muito tempo, o Ocidente classificou esses milhares de pequenos reinos, inventados no cotidiano, como “animismo”, pensando assim poder oferecer a milhões de pessoas a esperança de um dia conhecer o verdadeiro sentido de anima3, pela graça daqueles que, de forma muito cristã, eram encarregados das almas humanas. Tais coisas e objetos são chamados de “fetiches”, que os africanistas tanto analisam, escutando aqueles que os fabricam para seu próprio uso, nos pequenos rituais de adivinhação diária, a fim de escolher dentre os mil caminhos qual o melhor a percorrer entre o nascimento e a morte. Conhecimento passado de um povo ancestral a outro.
Se existem deuses em todos os lugares, em todos os cantos do mundo, não significa que a pessoa já nasça com conceitos formados sobre espíritos poderosos ou grandes divindades. Elas provavelmente adquirem o conhecimento ouvindo aqueles que o transmitem, assistindo aos cerimoniais imaginados para dar forma e consistência aos “agentes sobrenaturais”, selecionados seja para intervir diretamente na vida das pessoas, seja para nutrir as especulações sobre as metamorfoses ou a comunicação sem palavras nem linguagem de espírito para espírito, de um anjo a outro.
Crenças
Tanto aqui como lá, os vigias da espécie humana jogam na escuridão da noite o flash de um vaga-lume. Desta forma, um deles em meio à emoção despertada pela revelação do Novo Mundo observa que há em toda parte e sempre as “opiniões populares”, por vezes familiares, por vezes monstruosas, mas pontos de vista do outro. Esse foi Michel de Montaigne, que sugere à meia-voz que essas crenças devem ser atribuídas a essa “grande obreira dos milagres” que é a mente humana, única capaz de produzir crenças “similares” e igualmente “absurdas” em locais e tempos distantes. E se as crenças nascem como “chuchu na serra”, qual delas pode se aproveitar de “magistral autoridade”? O admirável pensador concluiu em silêncio que os deuses plurais, espíritos ou gênios, não se confrontavam entre gangues, nem um bairro contra outro. Nenhum grão de arroz, até hoje, sonhou em escravizar a espécie humana sobre toda a terra habitada, a ekumene (mundo habitado) dos “conversores”.
Esses são, por simples constatação, os monoteístas, esses que adoram esnobar proselitismo, que fazem guerra contra todos e, em primeiro lugar, contra si mesmos. Uma verdade banal é que o cristianismo e o Islã se lançaram em grandes massacres recíprocos desde que se reconheceram como testemunhas da Verdadeira Revelação. História patética, terrivelmente mortal e que hoje ganhou estilo hollywoodiano de uma “guerra de civilizações”.
Se existe uma única “verdade”, então as outras crenças vivem de um “erro”. No tempo dos césares, apareceu um pequeno profeta com sua mensagem de amor, uma morte e uma crucificação, um punhado de devotos exaltados pelo carisma de um “deus” ansioso por cada alma em particular. Trata-se de uma singularidade entre tantas. Uma crença familiar na ressurreição de um profeta que realizou maravilhas. Um grupo de seguidores que quer se convencer em “assembleias”4 que Jesus veio para salvar o mundo; trata-se ainda de um caso de messianismo. O mal menor para um fundador de novas crenças é fazer crer que ele carrega algo como uma “religião superior”. Por que não haveria uma revelação num canto perdido da Galileia? A revelação de um grande projeto destinado a salvar os homens de um mundo onde são brutalmente oprimidos por uma culpa que não é deles? Nada mais louvável, portanto, do que informar a seus amigos e vizinhos que, a partir de então, “tudo faz sentido”!
Isso não implica sonhar sob uma árvore com uma vasta operação de exclusão universal do “erro” que representam as outras fés. No entanto, foi isso que chegou ao Ocidente, por volta do ano 320 da nossa era: quando um cidadão romano, nada especial, exceto pelo fato de ser o imperador – nem pior, nem melhor que seus predecessores –, optou por se converter à “boa nova”. Constantino ainda teve tempo para fazer uma escolha estritamente pessoal. E foi assim que, no início do século IV, os fiéis do pobre crucificado, reunidos em “assembleias” em torno das palavras de seu mestre, transformadas em “livros5”, criaram o que conheceríamos logo após como Igreja.
A Assembleia começou a se enraizar no coração do Império, na cidade de Rômulo e Remo. Assim que esta Igreja pôde contar com o poder e autoridade do Príncipe, que assegurou que apenas ela recebera a “revelação” junto com a “verdade” da interpretação das Escrituras, ela passou a professar rapidamente a obrigação de acreditar em sua crença, excluindo qualquer outra “fé”, tornando-se, por sua vez, idolatria e superstição. Cresceu, então, um clero hierarquizado, cujo poder em todo o mundo, durante séculos, ofuscou todos os outros “funcionários do divino”. A “civilização ocidental” estava em marcha para converter os povos estrangeiros, conquistar terras de animistas selvagens, empunhar a cruz para realizar guerras justas, ditas “religiosas”, informar a todos sobre a autoridade da “verdade” e do “bem”.
Eis, então, como carregados por uma torrente de almas penadas, nos tornamos “politeístas”… com o desejo, de alguns, de colocar em perspectiva crítica a história profunda de um monoteísmo com vocação totalitária e intolerante.
O resultado disso é um benefício imediato: descobrir dentre os imensos recursos imaginários de que dispomos qual seria o “erro na religião”. Um especialista diabólico sussurra nos meus ouvidos: “Os politeísmos, um mercado promissor!”
Marcel Detienne é filósofo, autor da obra Comparer l’incomparable. Oser expérimenter et construire, Seuil, Paris, 2009.