Desigualdades americanas
Segundo Walter Benn Michaels, a ênfase na diversidade étnica seria uma forma de mascarar a questão social. Mas sua crítica tende a desconsiderar a existência de discriminações específicas, que não são automaticamente resolvidas por uma grande “revolução igualitária”
O Ministério da Justiça norte-americano anunciou que, em 2005, 49% das 16.500 vítimas de assassinato, nos Estados Unidos, eram afro-americanas. E, no entanto, os negros representam apenas 12,8% da população do país. Menos protegidos do crime, eles também o são da pobreza (pois somam 32% do total de pobres) e da doença (em 2004, 19,7% não dispunham de nenhum tipo de assistência médica, contra 11,3% da população branca). Não seria difícil aumentarmos a lista, confirmando a existência de uma discriminação específica, que atinge os negros e, em certa medida, os hispânicos, as mulheres e outras “minorias”.
A universidade não escapa à regra. Ao contrário. Nessa instituição, que tece com voluptuosidade proclamações virtuosas, recomendações extensas e colóquios internacionais sobre a “diversidade”, somente 14 dos 433 professores contratados em 2003 pelos estabelecimentos de elite da Ivy League (Yale, Harvard, Princeton, Columbia etc.) eram negros. Em matéria de matrícula de estudantes também existe desproporção, ainda que menos pronunciada.
O acadêmico Walter Benn Michaels não contesta nenhum desses dados em seu ataque à esquerda norte-americana, que acusa de se mostrar obcecada pela questão da diversidade. Porque, segundo ele, se trata apenas de uma determinada forma de diversidade, que favoreceria e mascararia a negligência ou a omissão da questão social. Seguramente, reconhece Michaels, os casos de assassinato, de assistência médica medíocre, de menor acesso à universidade são mais numerosos entre as “minorias” do que entre os “brancos”. Mas o que observamos quando medimos a desigualdade não mais entre negros e brancos, mas entre pobres e ricos? A desproporção é, quase que sistematicamente, ainda mais acentuada!
Em termos de assistência médica, por exemplo, 24,2% dos norte-americanos com ganhos anuais inferiores a 25 mil dólares não dispõem de nenhuma proteção do gênero. Por que, então, privilegiar com tanta freqüência a dimensão racial do problema em detrimento da dimensão social? – pergunta o estudioso. É claro que ambas as categorias – “negros” e “pobres” – se confundem amplamente1. No entanto, ao enfatizar uma em vez da outra, levamos as forças políticas a escolher uma das duas opções, apresentadas como contraditórias. Em um caso, o objetivo visado poderia ser o de que médicos e hospitais passassem a acolher melhor as minorias raciais; no outro, uma fiscalização progressiva, que financiaria a assistência médica universal. Infelizmente, lamenta Michaels, “preferimos nos livrar mais do racismo que da pobreza, comemorar a diversidade cultural, em vez de buscar a igualdade econômica”.
Quando se trata das universidades (um dos terrenos privilegiados pelas políticas de “ação afirmativa” nos Estados Unidos2), a tônica na dimensão étnica da seleção de estudantes parece ainda mais discutível. Pois, nos campi, a discriminação é antes de mais nada econômica. Enquanto 66% dos jovens norte-americanos provenientes da quarta parte mais rica da população passam por algum estabelecimento de ensino superior, apenas 14% dos originários da quarta parte mais pobre têm a oportunidade de fazer o mesmo percurso. No caso dos 146 estabelecimentos mais “seletivos”, as proporções são ainda mais díspares: 74% de filhos e filhas de famílias ricas contra 3% de filhos e filhas de famílias pobres [sobre a elitização do ensino superior nos Estados Unidos, leia-se o artigo publicado na página 32 – nota do editor]. Compreende-se assim por que, ao revelar suas estatísticas sobre a composição do corpo discente, as universidades de elite privilegiam a “raça” das minorias (31% em Princeton, 32% em Yale, 37% em Harvard) e não sua renda3.
Sustentado pela paixão da mídia pelo sucesso individual, “dos farrapos à fortuna”, o mito da mobilidade social é um poderoso componente do pensamento conservador nos Estados Unidos. Ele legitima com eficácia a ordem estabelecida. E a crença que difunde se ancorou no coração de um considerável número de norte-americanos. Estes imaginam possuir excelentes chances de “subir na vida”, pois a estrutura social de seu país se basearia na meritocracia, capaz de recompensar a imaginação e o trabalho. Em 1996, 64% dos americanos declararam que era “muito provável” ou “bastante provável” que se tornassem ricos – o que, naquela época, significava, segundo eles, ganhar 100 mil dólares ou mais por ano (cerca de 6 mil euros por mês). Dez anos depois, no entanto, o ganho médio per capita continua inferior à metade dessa cifra, e somente 7% dos norte-americanos dispõem da quantia que lhes daria acesso ao paraíso dos opulentos. “Em uma sociedade na qual apenas 7% da população ganha mais que 100 mil dólares por ano, o fato de 64% dos norte-americanos imaginarem que virão um dia a fazer parte desse grupo se baseia em uma grande ilusão”, observa Michaels.
Ele atribui boa parte dessa crença – que não pára de crescer, enquanto a realidade se distancia cada vez mais dela – à ideologia da diversidade e da “ação afirmativa”, das quais as universidades americanas constituiriam a vanguarda. Elas seriam, segundo Michaels, “máquinas de propaganda, a ponto de podermos acreditar até que foram concebidas para garantir que a estrutura de classes da sociedade não seja questionada”. E o estudioso explica: “O problema da ‘ação afirmativa’ não é (como se costuma dizer) que ela viola o princípio da meritocracia; ao contrário, o problema é que ela produz a ilusão de que vivemos em uma meritocracia”. Fala-se com freqüência no quanto Harvard seria branca se nos livrássemos da “ação afirmativa”. Mas imaginemos ao que ela se assemelharia se substituíssemos a “ação afirmativa” baseada na “raça” por uma “ação afirmativa” baseada na classe social. Cerca de 90% dos alunos de Harvard vêm de famílias que têm um ganho bem acima da média: no mínimo metade desses estudantes estaria em outra instituição.
A maioria dos excluídos seria, então, formada por ricos e brancos. Não é de surpreender que eles e seus pais não tenham nada a comentar sobre a atual diversidade. Desse ponto de vista, ela é uma gratificação coletiva que aceitam pagar para poder continuar ignorando a questão da desigualdade econômica. O fato de que ser branco não favoreça mais a admissão em Harvard esconde outra realidade, bem mais fundamental: ser rico ajuda a ser admitido e não ser pobre é, digamos assim, condição essencial.
A luta pela diversidade obriga os racistas a vencer seus preconceitos; a luta contra a desigualdade obrigaria os privilegiados a desembolsar dinheiro. Assim resumidas, muitas batalhas universitárias em favor do multiculturalismo não teriam outra implicação além da de não discriminar “a cor da pele dos filhos dos ricos”. E Michaels investe então contra a “chamada esquerda”, que, segundo ele, se tornou “o departamento de recursos humanos da direita”, preocupada antes de mais nada em garantir que as mulheres e as minorias étnicas originárias dos meios socialmente favorecidos disponham dos mesmos privilégios que os burgueses brancos do sexo masculino.
As análises instigantes de Michaels, que gosta de paradoxos e sabe tirar proveito de seu conhecimento da cultura norte-americana (ele é professor de inglês na Universidade de Illinois), revelam a face oculta das noções de “eqüidade”, eleitas pelos partidos políticos franceses, cuja maior preocupação é encerrar de vez a discussão sobre a igualdade. Contudo, elas suscitam inúmeras objeções. O autor traça o perfil de uma esquerda norte-americana restrita a batalhas um tanto limitadas e obcecada pela “diversidade”.
Mas é verdade que também acontece de ela se engajar contra a guerra do Iraque, contra o fechamento de fábricas, contra o peso crescente do dinheiro no ensino superior.
A ênfase exclusiva dada ao combate à desigualdade de renda parece cegar Michaels em relação à existência de discriminações específicas, sexuais e étnicas, que não seriam automaticamente resolvidas por uma grande revolução “igualitária” – a história do movimento operário provou isso. E, afinal, a inexistência de raças impediu alguma vez a existência de racistas, por vezes no próprio seio das classes populares?
Lendo Michaels, ninguém pode deixar de concordar que a ênfase no fato de as mulheres de Wall Street ganharem menos que os homens “mascara o fato” de que elas “não são nem um pouco vítimas”, se comparadas às “mulheres do Wal-Mart”. Mas a recusa dos privilégios sociais dos financistas, homens e mulheres, significa não combater a discriminação salarial sofrida pelas mulheres, inclusive na burguesia?
Talvez em função de passar um tempo considerável de sua vida em um desses campi norte-americanos, em parte preservados da realidade social do país, o autor “insista” demais na outra direção. Dessa forma, ele procura criticar uma casta universitária sempre à espreita de textos para “desconstruir” e de “combates simbólicos” a empreender, em um movimento para substituir o produto em vez de mudar a sociedade. É melhor não contar a ele que europeus desorientados e preocupados com o virtuosismo teórico pretendem importar esse tipo de conhecimento dos Estados Unidos – a fim de socorrer a esquerda!
*Serge Halimi é o diretor de redação de Le Monde Diplomatique (França).