Desmilitarização: uma provocação necessária
A relação das polícias com o regime democrático é ambígua: proteger os cidadãos e garantir os seus direitos ou representar o braço armado das forças sociais hegemônicas na defesa da sua manutenção no poder?
Nada é tão novo. A obsessão por segurança pública militar dá o tom da discussão. Vejo o absurdo crescente do autoritarismo e, mais uma vez, o silenciamento do debate público sobre desmilitarização. As discussões sobre PM, tiro, milícia e senador, com retroescavadeira e tudo, sacodem a velha história sobre a proibição de greves na conservadora PM.
Quando iniciei uma pesquisa, em fins dos anos 1990, sobre praças – PMs de baixa patente – e suas reivindicações, que incluíam a desmilitarização, havia uma esperança nos desdobramentos da crise institucional que reverberava as tensões entre praças, oficiais e governos. Naquele momento, em 1997, várias lideranças dos praças estavam atentas, a partir das especificidades de cada estado da federação, às denúncias da população sobre violência policial, e assumiram o debate sobre direitos humanos em princípios progressistas, muitas vezes vinculados a movimentos e partidos de esquerda. Assumir a expressão “greve dos praças” era o primeiro passo para os debates sobre desmilitarização – ainda embrionários, com abordagens reformistas ligadas ao direito à greve para o frágil objetivo de integração ou unificação das polícias, desconsiderando o conflito estrutural entre polícia militar e polícia civil.
O problema era mais espinhoso, demandava a coragem para experimentar uma nova forma que ultrapassasse a militarização, mas infelizmente isso não aconteceu. Era difícil naquele momento captar a supervalorização do discurso autoritário da segurança pública. A prioridade, ao analisar os protestos de 1997, era assumir uma escuta sensível: “praças grevistas” que, em sua maioria, reivindicavam a desmilitarização frente aos abusos dos oficiais e à precarização das condições de trabalho.
O atual protesto da PM do Ceará não é uma novidade. Praças cearenses integraram, em 1997, o que chamei, no livro que derivou da minha tese de doutorado, de “ciclo nacional de protestos”, envolvendo catorze estados brasileiros. Naquele momento, a maioria dos praças, em múltiplos contextos regionais, assumiram o debate público da desmilitarização – com intensidade e profundidade moduladas pela história do governo e da PM de cada estado. Esse sentido se perdeu, e, efetivamente, precisamos assumir a vitória dos discursos conservadores – fixados na abordagem da segurança pública embrutecida, vinculada à cultura do medo, e que sufoca a cultura da coletividade e da autogestão para práticas de liberdade.
Os contextos são evidentemente diferentes. 1997 não é 2020, e, atualmente, são muitas as forças obscuras enfurnadas no mesmo balaio – praças e oficiais da PM, milicianos, exército e autoridades públicas. Não se trata mais de fazer uma reiteração legalista das definições para o conceito – motim, rebelião ou greve. Interessa, agora, reaquecer o debate público sobre a desmilitarização – catalisado nos últimos vinte anos por movimentos sociais e em propostas de emendas constitucionais – mas que perdeu força com o recrudescimento do conservadorismo, avesso a projetos de transformação social e grande propagador da cultura militar.
Entrevistei 47 praças, em um trabalho de história oral de vida que me levou a refletir sobre uma crise de pertencimento: “pertencer ao movimento reivindicatório que questionava a militarização” e “pertencer à corporação policial militar em uma cultura política conservadora”. É necessário, portanto, indagar as transformações ocorridas nesse arco de 1997 ao tempo presente para compreender as mudanças nas discussões sobre o tema.
Uma hipótese explicativa trivial para o giro desse debate é o avanço autoritário, perceptível mundialmente e que no Brasil tem supervalorizado o militarismo. Como exemplo desse cenário, chegamos ao ponto de ver autoridades defendendo a ditadura civil-militar iniciada em 1964, minimizando, negando e até reivindicando a violência daquele processo. Ou o obscurantismo, na crescente reivindicação para que escolas públicas sejam administradas aos moldes das escolas militares. A crista dessa onda, que parece longe de se dissipar, culminou na eleição de um presidente cujo histórico político registra quase três décadas de atuação legislativa em defesa de interesses tanto do exército como das polícias. Nesse processo, como é sabido, a proximidade da família presidencial com milicianos foi cimentada.
Por outro lado, o esfriamento do debate pela desmilitarização não significa que este tenha perdido urgência e pertinência. Mesmo porque, em contraponto ao avanço conservador, se intensificam o aumento de denúncias de violações de direitos humanos e de perseguições a categorias sociais minorizadas, bem como de episódios de ultraviolência com repercussão nacional: o caso Amarildo; o assassinato político da vereadora Marielle Franco, no Rio de Janeiro; ou a execução de duas pessoas, por militares do Exército, que dispararam mais de oitenta tiros de fuzil, em plena via pública, contra um carro que se dirigia para um chá de bebê. Isso para além dos muitos casos diários e ainda mais recentes. Não podemos esquecer.
Nesses tempos de (in)certezas e de intolerância, o medo de um novo ciclo de protestos de PMs em diversos estados explicita tensões históricas: o discurso institucional militarista, os problemas da segurança pública e as questões trabalhistas dos servidores públicos. Discussões sobre uma possível desmilitarização sempre amedrontaram os integrantes da cúpula policial militar. O debate foi catalisado pelas manifestações de 2013, quando foi apresentada a PEC 51 (arquivada em 2018), que propunha a desmilitarização a partir da decisão de cada estado, observando-se as demandas regionais e as reivindicações acerca da violência policial em cada contexto.
As polícias militares são consideradas forças auxiliares do exército, em um sistema organizacional corporativo-militarista. A partir dos mesmos preceitos estruturais das Forças Armadas, as PMs foram se burocratizando para atuarem como forças militares repressivas, visando ao controle e à repressão dos movimentos sociais. A ação repressora das polícias militares, a partir do golpe de 1964, se fundamenta nos princípios da Doutrina de Segurança Nacional. A alta militarização subordinou as polícias militares, em 1969, à Inspetoria Geral das Polícias Militares (IGPM), órgão do Estado Maior do Exército. A IGPM, com o controle e a coordenação das polícias militares, criou uma doutrina estruturada para a organização dessas polícias em todo o território nacional, padronizando condutas, equipamentos, armamentos, a legislação básica, regulamentos e manuais técnicos. A militarização das PMs serviu à ditadura civil-militar, pois, além de intervirem especificamente na luta armada dos anos 1960 e 1970, as polícias locais exerceram o papel de forças de contenção das manifestações sociais da cidade e do campo (passeatas, greves, comícios, protestos e ocupações de terra) por meio das Tropas de Choque.
No período pós-1985, as polícias militares passaram a enfrentar o crime convencional utilizando as mesmas práticas e equipamentos. O policiamento militar seguiu qualificando o crime a partir de conceitos advindos da ideologia da Segurança Nacional. A “função militar” das polícias se aplicou à manutenção de uma suposta ordem social, enquanto a “função policial” visava manter a ordem urbana. Assim, esses policiais militares acabam se dividindo entre a continuidade do respeito à ordem e o inconformismo como trabalhador.
Os diversos processos de transição na história do Brasil não foram capazes de produzir saídas para o problema da militarização. O fim da polícia militar não pode corresponder a uma refundação da própria ideia de polícia e suas práticas. A proposta de “ciclo completo” (uma nova polícia ostensiva e judiciária) não altera o equivocado modelo de serviço precário que as corporações policiais prestam à população. Além disso, não há como negligenciar a diversidade dos estados brasileiros e a sua pluralidade, ou seja, cada município precisa de atenção às suas próprias demandas por segurança pública.
Acredito na importância do debate público sobre desmilitarização. O caráter militar da polícia exprime a existência de uma força auxiliar do Exército para segurança interna – a relação “amigo versus inimigo” é obviamente equivocada para o trato entre concidadãos. Ao impor rigidez e violência no espaço público, a cultura policial militarizante é desnecessária e excessiva. O treinamento militar consiste em uma série de rituais de violência física e simbólica com o intuito de disciplinar os recrutas a obedecerem sem questionamentos a seus superiores hierárquicos. Não raro, policiais submetidos a rituais dessa natureza acabam transferindo essa carga de violência para as ações de “proteção” e “segurança” da população.
A relação das polícias com o regime democrático é ambígua: proteger os cidadãos e garantir os seus direitos ou representar o braço armado das forças sociais hegemônicas na defesa da sua manutenção no poder? Se os protestos de policiais evidenciam os problemas do militarismo, de fato constata-se que a agenda da desmilitarização já não mobiliza as corporações policiais militares. Vivemos a barbárie e o obscurantismo autoritário. A desmilitarização é, mais do que nunca, uma provocação necessária.
*Juniele Rabêlo de Almeida é professora do Instituto de História da Universidade Federal Fluminense (UFF) e autora do livro Tropas em protesto: Manifestações policiais militares no Brasil, anos 1990 (Letra e Voz, 2015).