Despejo e violência contra a comunidade Bom Acerto
Em 11 de agosto de 2020, os moradores da comunidade Bom Acerto foram surpreendidos pela presença de policiais fortemente armados, oficial de justiça, seguranças armados e tratores, que derrubaram todas as casas e destruíram as roças da comunidade, em plena pandemia.
Nos últimos dez anos, os conflitos agrários no estado do Maranhão alcançaram os maiores patamares de sua história e o triste ano de 2020, apesar de não ter se encerrado, registra 297 comunidades em conflitos, conforme os dados da Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado do Maranhão (Fetaema).
Parte desses conflitos no estado se concentram na região denominada de Matopiba – abreviação dos estados do Maranhã, Tocantins, Piauí e Bahia -, caracterizada pela expansão de uma fronteira agrícola no Brasil baseada no uso de tecnologias modernas de alta produtividade de grãos, sobretudo soja. No Maranhão, 135 municípios estão compreendidos nessa região, criada pelo governo federal para acomodar os interesses econômicos do agronegócio. Assim como outros municípios que compõem a região do Matopiba, o município de Balsas, no sul do estado, tem sido palco de intensos conflitos agrários. Entre janeiro e outubro de 2020, foram registrados conflitos nas comunidades Mato Grosso, Pedreira, Projeto de Assentamento Gado Bravinho, Fazenda Picos, Fazenda Pedreiras, Fazenda Boa Esperança, Fazenda Uruçu, Fazenda Bela Vista e Assentamento Lagoa do Belém e Bom Acerto.
A comunidade Bom Acerto, a qual vamos analisar o conflito neste artigo, se localiza a 50 km da sede municipal de Balsas e é formada por 16 famílias. A comunidade foi constituída há mais de cinco décadas e lá, além da residência fixa, os camponeses realizavam diversos cultivos, como mandioca, milho, arroz, feijão, manga, caju, além da criação de galinhas e patos. Há pouco mais de um ano, a comunidade recebeu eletrificação rural.
Em 11 de agosto de 2020, os moradores foram surpreendidos pela presença de policiais fortemente armados[1], oficial de justiça, seguranças armados e tratores, que derrubaram todas as casas e destruíram as roças da comunidade, em plena pandemia. Alguns dos moradores foram colocados dentro de um caminhão, junto com seus poucos bens, visto que muitos objetos foram destruídos e posteriormente levados para um ferro velho na cidade de Balsas. Até animais de estimação foram mortos na operação e um ancião, com 86 anos de idade, passou quase 48 horas somente com a roupa do corpo, sem acesso aos seus documentos e medicamentos, que ficaram sob os escombros.
No dia seguinte, quando estiveram na sede do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Balsas, os camponeses despejados descobriram que a violência sofrida por eles se deu em razão de uma decisão judicial proferida por um magistrado estadual da 2ª Vara da Comarca de Balsas, que concedeu uma liminar de imissão na posse em favor de um latifundiário, filho de ex-prefeito desta cidade.
Nas suas alegações judiciais e em seus parcos documentos juntados no processo[2], o latifundiário informou ser proprietário de imóvel na Gleba Bom Acerto, com área de 8.444,80 hectares[3] e que tomou conhecimento que o imóvel teria sido invadido em meados de 2019.O latifundiário também juntou no processo um registro de ocorrência policial nº 178458/2019, lavrado na delegacia regional de Balsas, onde alega uma pretensa invasão, bem como imagens de satélite da área ocupada pelas famílias.
Com base nesses documentos e sem ouvir os trabalhadores rurais[4], o Juiz de Direito da 2ª Vara da Comarca de Balsas determinou que ISAAC DOS SANTOS ARAÚJO, MANOEL BATISTA NUNES, MARIA DO ESPIRITO SANTO ARAÚJO DOS SANTOS, JAILSON DOS SANTOS ARAÚJO, JOÃO FERREIRA DE OLIVEIRA, NORINDA DOS SANTOS, MARIA DOS SANTOS, LUIZA DOS SANTOS, eventuais esposos ou companheiros, que desocupem, no prazo de 30 (trinta dias) contados a partir da intimação desta decisão, o imóvel denominado Gleba Bom Acerto, encravado na Data “Flor do Tempo”, Município de Balsas-Estado do Maranhão, com área de 8.444,80 hectares, conforme consta do registro de imóveis Livro nº 2-AA; Fls. 146, R.9-6.910 (Matrícula nº 6.910) do Cartório de Registro de Imóveis de Balsas-MA ficando advertidos de que o descumprimento da presente ordem, no prazo determinado, resultará na REMOÇÃO COMPULSÓRIA E IMEDIATA, com a utilização de força policial (art. 536, §1º, CPC). Em 03 de junho de 2020, o mesmo magistrado determinou a expedição de novo mandado de DESOCUCUPAÇÃO DO IMÓVEL, bem como ofício ao Comando da Polícia Militar de Balsas/MA, para que seja efetivada a REMOÇÃO COMPULSÓRIA dos promovidos, da área de terra descrita na exordial, sob pena de prisão em flagrante, por crime de desobediência.
Em 11 de agosto de 2020, momento de grave crise sanitária na cidade de Balsas, os trabalhadores rurais da comunidade Bom Acerto sofreram um dos mais violentos despejos ocorridos no Maranhão, com o aniquilamento de todo o assentamento humano que foi constituído há mais de cinco décadas. Chama-nos atenção que as famílias sequer sabiam da ordem judicial. Outro detalhe estarrecedor se refere à participação do oficial de justiça e de policiais civis no cumprimento do despejo.
De acordo com informações requisitadas pelo Promotor de Justiça de Balsas, Felipe Boghossian Soares da Rocha ao Delegado Regional de Balsas[5], este esclareceu que policiais civis lotados nesta Delegacia Regional, atendendo determinação do Delegado Roosevelt Kenedy Monteiro, titular do 1º Distrito Policial de Balsas, e sob o comando deste, efetivamente participaram do cumprimento do mandado de reintegração de posse referente ao processo PJE nº 0800398-79.2020.8.10.0026, acompanhando o oficial de justiça Arildo Carlos Pereira, designado para o ato. Acrescento ainda que tal diligência foi realizada sem a autorização ou o conhecimento deste subscritor, por iniciativa exclusiva do Delegado Kenedy, o qual, na tarde anterior, arregimentou policiais e solicitou viaturas e armamento (inapropriado para esse fim, diga-se de passagem), mas sem comunicar qual seria a natureza da operação que planejava, fazendo-nos acreditar que se trataria de cumprimento de mandados de prisão ou de busca e apreensão. Ainda de acordo com o Delegado Regional de Balsas,a referida decisão (anexa) foi apresentada pelo oficial de justiça, diretamente ao Delegado Kenedy, no dia 07/08/2020, o que também causa espécie, considerando que esta autoridade, nessa data, se encontrava na Delegacia Regional, o dia inteiro, e nenhum documento lhe foi entregue ou à sua equipe de apoio administrativo, transparecendo que o propósito do oficial de justiça e da autoridade policial era exatamente garantir que tal decisão e o plano elaborado para seu cumprimento não chegassem ao conhecimento deste Delegado Regional. Da mesma maneira, causou estranheza o fato de o oficial de justiça ter chegado a essa Delegacia Regional, após o cumprimento da decisão, no veículo do autor da ação e junto com este, denotando, dessa maneira, alguma proximidade de ordem pessoal com ele.
Ademais, causa estranheza e repulsa o Auto de Desocupação do Imóvel, que foi assinado pelo oficial de justiça, que se revela parte interessada no processo, na medida que confessou ter procedido à demolição das casas, em evidente excesso no cumprimento do mandado, apesar de a ordem judicial ser tão somente para DESOCUPAÇÃO do imóvel, por ter acionado informalmente o delegado Roosevelt Kenedy Monteiro para apoio, desobedecido a ordem judicial para oficiar a Polícia Militar, realizado tais procedimentos em razão das “constantes cobranças” por parte do patrono do autor para cumprimento do mandado.
Nesse sentido, a violência no campo deve ser analisada a partir das diversas articulações entre público e privado, envolve uma multiplicidade de agentes públicos, privados, nomes aparentemente respeitáveis da sociedade , empresas, entre outros relação sociais e de dominação e também sob a ótica do profundo comprometimento do Poder Judiciário[6] com os interesses ligados à propriedade da terra, o que coloca um impasse nessas situações de disputa.[7]
Nota-se que o processo de expulsão das famílias da Comunidade Bom Acerto adota o mesmo padrão ou estratégia de tempos anteriores no Maranhão, cujo resultado efetivo foi a expulsão de centenas de famílias de camponeses de suas terras dos vales férteis dos rios Pindaré e Mearim nas décadas de 70 e 80 do século XX.
De posse de um título de propriedade, com a descrição do imóvel, mapas, o pretenso proprietário ajuíza a ação reivindicatória[8], isto é, judicializa a sua pretensão, que é prontamente acolhida pelo Poder Judiciário. Em nenhum momento, o latifundiário demonstra a sua posse sobre as terras, mesmo porque não teria como fazê-lo, diante do longínquo tempo de ocupação das terras pela comunidade Bom Acerto.
A comprovação do exercício da posse das terras, requisito indispensável ao deferimento da liminar, nem sequer é observada, ignorada pelo magistrado da 2ª Vara de Balsas. O deferimento da liminar nas ações, mantida pelo Tribunal de Justiça do Estado, autoriza o latifundiário a reaver pretensa propriedade e posse de áreas que nunca deteve, com as consequentes ordens que inviabilizam os usos das terras pelas comunidades e mais grave, com a destruição por completo de uma comunidade rural em pleno período de restrições causadas pela pandemia da Covid-19, que agrava a situação vivida pelas dezenas de famílias, às quais, privadas de cultivar, resta sobreviver da caridade do poder público.
Após o violento despejo, as famílias desalojadas passaram a viver na periferia sob uma lona cedida pela Prefeitura de Balsas. Homens, mulheres, muitas crianças e idosos estão há dois meses vivendo sob intenso calor[9], poeira, dormindo em macas hospitalares, com severas limitações alimentares, sem trabalho, sem terra e sem renda. Em razão do violento despejo, alguns idosos estão com severos problemas psiquiátricos, outros com depressão.
O Instituto de Terras do Estado do Maranhão (Iterma), órgão fundiário do Estado, apesar de ter sido acionado desde 14 agosto de 2020 pela Comissão Estadual de Prevenção à Violência no Campo e na Cidade (COECV), até o presente momento nada fez em prol das famílias, sobretudo para verificar se as terras que os camponeses ocupavam tradicionalmente foram alvos de grilagem de terra. E, apesar da ocupação tradicional, as comunidades são tratadas pelo Poder Judiciário, que deveria tutelar esses grupos tidos por vulneráveis, como invasores das terras.
Sublinha-se que essa disposição do Poder Judiciário para tutelar os mais afortunados não é uma medida pontual, episódica de um magistrado, mas de um outro, e do próprio Tribunal de Justiça. A Sociedade Maranhense de Direitos Humanos, no levantamento denominado Despejos em Tempo de Pandemia da Covid-19, analisou 29 decisões judiciais de despejos que foram concedidas no período da pandemia e que afetou diretamente mais de 2.500 famílias em todo o território nacional.
Assim, constata-se com nitidez que essas decisões judiciais reproduzem textos e ideias semelhantes acerca do direito e da propriedade privada da terra, sendo possível observar que os discursos contidos nas decisões, além de utilizarem termos iguais ou equivalentes e remeterem sempre aos mesmos dispositivos legais, alinham-se a uma concepção de propriedade que inclusive foi banida com a edição do Código Civil de 2002 e a Constituição Federal de 1988, impregnadas por um certo preconceito enraizado na sociedade brasileira, inclusive no próprio sistema de justiça e de segurança pública.
As situações de violência e de violação dos direitos humanos relatados que atingiram a comunidade Bom Acerto atestam que o sistema de justiça brasileiro consolidou o entendimento pela criminalização dos trabalhadores e dos movimentos sociais do campo e pela imunização das ações violentas de latifundiários, mantendo as estruturas de desigualdade no país. Nesse contexto de violações, o Poder Judiciário tem sido uma peça-chave. Esta breve análise aponta que decisões judiciais são responsáveis pela violação dos direitos humanos, na medida em que promovem a brutalidade e a expulsão das famílias de seus territórios tradicionais.
Diogo Diniz Ribeiro Cabral é advogado popular. Especialista em Direitos Humanos. Associado na Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH).
[1] Após diligência da Promotoria de Justiça de Balsas-MA, descobriu-se que os agentes públicos eram policiais civis e um delegado, que participaram do ato sem autorização superior, à revelia da lei.
[2] Processo Nº 0800398-79.2020.8.10.0026
[3]O autor da ação juntou no processo Certidão de Inteiro Teor que consta no Livro n° 2-AA, fls. 146, Matrícula n° 6.910 do Cartório de Registro de Imóveis de Balsas/MA, a qual menciona área de 7.467,8658 hectares. Desta forma, apesar de ter alegado ser proprietário de 8.444,80 hectares, só
houve a juntada de documento probatório com localização de 7.467,8658 hectares, remanescendo
976,9342 hectares sem qualquer prova do domínio e localização técnica precisa.
[4] A ação foi ajuizada em 07.02.2020. A decisão é datada de 10.02.2020
[5] Ofício nº 339/2020 – 11DRPC/SPCI/DG/PCMA
[6] De acordo com Joaquim Shiraishi Neto, para se compreender o processo de legitimação e consagração do Direito é necessário apreender as relações que se estabelecem fora deste campo, mas que também se encontram submetidas a distintos domínios de poder. O Direito também depende de outras instâncias que o determinam e condicionam, sendo que suas transformações se relacionam aos conflitos entre os diversos agentes.
[7] MEDEIROS, Leonilde Servolo de. Dimensões políticas da violência no campo, disponível em https://www.historia.uff.br/tempo/artigos_livres/artg1-7.pdf
[8] São três os requisitos desta ação: Demonstrar o domínio atual sobre a coisa reivindicanda, individuar a coisa pretendida, ou seja, demonstrar os limites e confrontações do imóvel, identificando-o minuciosamente, demonstrar que o réu está exercendo a posse sobre a coisa de forma injusta.
[9] A média das temperaturas máximas em Balsas no mês de setembro de 2020 foi de 40º