Dez anos de Chávez
Praticando superávits primários de fazer inveja a qualquer economista ortodoxo, o presidente venezuelano conseguiu fortalecer as reservas internacionais do país. Resta saber se agora ele ampliará o desenvolvimento social com esses recursos ou se aumentará ainda mais a dependência do petróleo
Em fevereiro de 2009, Hugo Rafael Chávez Frías completou 10 anos como presidente da Venezuela. Um período marcado por processos conturbados, desde a Reforma Constitucional, passando por um golpe de Estado, até o recente plebiscito sobre a reeleição contínua para os cargos executivos e legislativos.
Após a queda da ditadura de Marcos Peres Jiménez, o sistema democrático venezuelano, operado entre os anos de 1958 e 1998, teve como base um “pacto populista de conciliação” de elites, o chamado Pacto de Punto Fijo.
Arraigado na constituição de 1961, este pacto reconheceu a existência de interesses comuns por parte dos diversos partidos que, apesar das naturais divergências entre eles, se empenhavam na sobrevivência do sistema.
O sistema político venezuelano foi suficientemente aberto para gerar oportunidades atrativas, tanto para os sócios em coalizão como para outros partidos pequenos. Os dois grandes partidos, o AD (Ação Democrática) e o Copei (Comitê de Organização Política Eleitoral Independente), cuidavam para que a governabilidade não se operasse como um jogo de soma zero.
Os representantes das agremiações políticas menores obtinham cargos de segundo escalão e alguns setores de esquerda tinham representação proporcional na poderosa Central de Trabalhadores da Venezuela (CTV), controlada pela AD.
Essa articulação conservadora, além de garantir estabilidade institucional, excluía as opções políticas radicais, fossem elas de esquerda ou de direita. Eram também incorporadas as forças armadas, a Igreja e os empresários, com vistas à agregação de interesses sociais e corporativos.
Os atores incluídos no pacto negociavam seus interesses diretamente com as lideranças dos dois partidos. Os sindicatos, que na época tinham como principal representante a CTV desenvolveram uma relação corporativista com a AD, garantindo para si a distribuição de cargos e benefícios em troca do apoio político.
Em 1988, Carlos Andrés Pérez, da AD, foi eleito pela segunda vez presidente da Venezuela. Pérez já havia governado o país entre 1973 e 1978, período coincidente com a primeira grande escalada dos preços internacionais do petróleo.
No início de seu novo mandato, Pérez promoveu um forte ajuste fiscal, o enxugamento da máquina administrativa e a privatização das principais companhias estatais. Tudo isso em um país onde o Estado e suas empresas sempre foram os principais empregadores.
A PDVSA (Petróleos de Venezuela S/A), por seu tamanho e importância para o país, estava no final da lista das privatizações, o que não impediu iniciativas para desmantelar o arcabouço institucional que fora erguido no período de nacionalização.
A crise que vinha desde os anos 1980 não suportava que se acentuasse ainda mais o programa liberal. O colapso múltiplo das instituições e do modelo de desenvolvimento e de financiamento do Estado torna eleitoralmente viável a alternativa proposta pelo Movimento V República e pela candidatura de Hugo Chávez.
A arrasadora vitória eleitoral de Chávez, em dezembro de 1998, que recebeu 58% dos votos válidos, derrotou a opção pela continuidade da agenda implementada pelos dois governos anteriores, representada por seu adversário, Enrique Salas Romer Feo. Este resultado eleitoral trouxe importantes alterações para a política e economia venezuelanas e para a própria América Latina.
Chávez prometia mudanças, mas o descenso do preço do petróleo – o barril estava cotado em US$ 9 – o obrigou a aceitar um acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e um “Programa Econômico de Transição 1999/2000”, que resultaram em medidas ortodoxas como restrições fiscais, corte de 10% dos gastos públicos, aumento de juros e a criação de um imposto sobre movimentação financeira.
O ajuste recessivo, potencializado pela diminuição da produção de petróleo (de 3,45 para 3,16 milhões de barris/dia, decidida pela Organização dos Países Exportadores de Petróleo – OPEP), impediu a elevação da receita fiscal como se pretendia. O ajuste foi suavizado pelo novo aumento do preço do barril, que chegou a US$ 16 em março de 1999. As medidas foram muito duras, afetando gravemente a economia: queda de 8% do PIB (Produto Interno Bruto) no primeiro semestre e de 5,98% em um ano.
Ainda que tenha adotado uma política recessiva para 1999, Chávez manteve seus propósitos de realizar reformas institucionais e econômicas progressistas, conforme prometera na campanha eleitoral.
Em abril de 1999 foi aprovada em plebiscito, com 70% dos votos (e abstenção de 55%), a convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte, que concluiria seus trabalhos em dezembro de 1999.
A nova Constituição ampliou a participação decisória do povo, assegurou maior transparência governamental e postulou a integração econômica com a América Latina e o Caribe. Diga-se de passagem, iniciativas muito similares às da Constituição brasileira de 1988, e bastante distintas da Cubana, pois garante a propriedade privada.
Entre suas principais medidas, cabe destacar a alteração do nome do país para República Bolivariana de Venezuela; a eliminação do Senado e a criação de uma Assembléia Nacional unicameral e de uma Câmara Constitucional para interpretar a nova Constituição; a criação do Poder Moral, uma nova agência do governo, composta pelo Ministério Público, Controladoria Geral da República e Defensoria do Povo, criada para fiscalizar a administração pública contra atos que atentem à ética e à moral; a equivalência dos direitos eleitorais entre militares e civis; o reconhecimento dos direitos das comunidades indígenas no que diz respeito à justiça, cultura, língua e território; a reafirmação do controle do Estado sobre as reservas de petróleo e outras atividades estratégicas e a proibição do governo vender sua participação acionária na PDVSA, podendo, contudo, vender suas subsidiárias; a autorização dada ao governo para tomar medidas que protejam produtores locais contra a competição estrangeira; a punição da evasão fiscal com pris&
atilde;o; a redução da jornada semanal de trabalho de 48 para 44 horas; a garantia aos trabalhadores da indenização quando o empresário romper o contrato de trabalho; a garantia de saúde, educação e aposentadoria a toda a população (antes, só se aposentava quem tivesse contribuído para a Previdência).
No final de 2000, a Assembléia Nacional aprovou um pacote de 49 leis habilitantes. Duas delas, em especial, causaram grande polêmica no país: a Lei de Hidrocarbonetos, que rege o setor petroleiro, e a Lei de Terras, que trata da reforma e do desenvolvimento agrários.
No primeiro caso, o governo passou a exigir que o capital venezuelano tivesse maioria acionária nas parcerias com petroleiras estrangeiras atuantes no país, o que os defensores da liberalização do setor viram como retrocesso.
No segundo, o presidente Chávez manteve na Constituição Bolivariana o artigo 342, que já vinha da Carta de 1961, indicando que “o regime latifundiário é contrário ao interesse social” da Venezuela.
Mas somente após o golpe de abril de 2002 e, em seguida, a reestruturação do governo, é que houve definição mais concreta da distribuição dos recursos petroleiros, por meio da criação de vários fundos, como o Fondem (Fundo de Desenvolvimento Econômico) e os programas sociais denominados de misiones.
As misiones foram desenvolvidas entre amplos setores populares e, pelo menos, um terço da classe média. São programas sociais emergenciais, dentre os quais se destacam três de curto e médio prazos e um de longo prazo, todos financiados com recursos da PDVSA.
Barrio Adentro
Entre os mais imediatos está o programa de saúde Barrio Adentro, em que médicos, cubanos em sua maioria, prestam consultas diárias e permanecem em estado de prontidão, 24 horas por dia, nas regiões mais pobres do país. A população atendida representa 18,3 milhões do total de 29 milhões de venezuelanos.
Mercal
O programa Mercal promove feiras populares que visam a segurança alimentar. Nelas, mais de 20 produtos da cesta básica podem ser comprados a preços subsidiados pelo governo, que criou em todo território nacional mais de 16 mil estabelecimentos, beneficiando aproximadamente 16 milhões de pessoas.
O programa inclui ainda a distribuição gratuita de alimentação pronta a setores populares que vivem em condições de quase indigência.
Educação
Já o plano que possui efeitos de longo prazo concentra-se na área de educação e abrange três frentes: a Misión Robinson, que já alfabetizou mais de 3,5 milhões de pessoas entre 2003 e 2007; a Misión Ribas, que estimula o reingresso no segundo grau daqueles que ainda não concluíram seus estudos, beneficiando 2,2 milhões de venezuelanos. E, por fim, a Misión Sucre, dirigida à educação superior, cuja realização mais concreta foi a Universidade Bolivariana, que incorporou 500 mil estudantes sem vagas no sistema de educação superior, público ou privado.
Com essas iniciativas, o governo Chávez avançou sensivelmente nas políticas sociais, que por sua vez desencadeiam, em longo prazo, o desenvolvimento econômico.
Trata-se de uma verdadeira reconstrução do Estado por meio de ações que podem ter uma conotação “revolucionária”, pois melhoraram sensivelmente a qualidade de vida da população venezuelana.
Desafios ante a crise internacional
Com a erupção e aprofundamento da crise internacional a partir de setembro do ano passado, alguns podem desenvolver uma análise simplista de que a era chavista também estará em crise.
Com a aprovação, por referendo, que permite a reeleição contínua, os desafios de Chávez e seu partido, o PSUV (Partido Socialista Unificado da Venezuela) aumentam, ainda que a oposição venezuelana, por enquanto, não possua uma agenda para combater a política e o desenvolvimento econômico e social chavista em processo.
Principalmente a partir de 2003, com a extraordinária elevação das rendas do petróleo e a pronunciada recuperação econômica, a consolidação institucional do governo Chávez se deu num contexto favorável.
A expansão recente dos gastos públicos advindos das receitas petrolíferas se deu, em grande parte, nas áreas sociais e nas atividades econômicas fora do setor do petróleo.
Nesse período, de 2004 a 2007, a Venezuela criou fundos de investimento da ordem de US$ 20 bilhões, que são responsáveis pelo desenvolvimento de obras de infraestrutura, de integração regional e de comunicação, além da criação de um banco de desenvolvimento como o BNDES no Brasil.
Chávez ainda estatizou empresas de energia elétrica e siderurgia e nacionalizou o Banco da Venezuela, que estava em poder do grupo espanhol Santander.
Além disso, nesse período de 10 anos, o governo da Venezuela praticou superávits primários de fazer inveja a qualquer economista ortodoxo, mantendo uma média de 3,75% do PIB.
Devido ao alto preço do petróleo no mercado internacional e controle de capitais, de acordo com o estatuto do FMI, fortaleceu as reservas internacionais o que corresponde atualmente a 25% do PIB venezuelano, ou seja, US$ 40 bilhões. Outro ponto importante foi a redução das dívidas interna e externa, que correspondiam a 30% do PIB em 1999, chegando a 47% no golpe de Estado, e correspondem agora a 17% (US$ 27 bilhões), portanto, a situação é diametralmente oposta àquela de 10 anos atrás.
A questão principal é o que se fará com essas reservas internacionais, pois a abundância de divisas pode representar, neste momento de crise, uma grande oportunidade de ampliar a base produtiva, desvencilhar-se da dependência do petróleo e, assim, manter a soberania nacional.
Para que o desenvolvimento continue, a economia venezuelana terá de elevar substancialmente a eficiência de sua produção agropecuária e se indu
strializar num sentido muito mais amplo e complexo. Será necessário orientar uma parte substancial dos investimentos para pesquisa e a elevação do nível educacional e técnico da população.
No que diz respeito à agricultura, apesar de ter havido um aumento de investimentos, da superfície plantada e da produção, ainda não se atingiu um patamar de autosuficiencia do país.
Para tanto, além de resgatar a vocação venezuelana anterior ao descobrimento do petróleo, quando se exportava cacau e café, por exemplo, é importante continuar subsidiando os produtores com sementes, tecnologia e financiamentos.
Já em relação ao incremento do nível educacional e técnico, essa é uma tarefa que está sendo bem realizada pelo atual governo, como demonstra o aumento significativo no número de matrículas em todos os níveis educacionais e a obtenção, em outubro de 2005, do certificado da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) de que a Venezuela é território livre de analfabetismo – algo somente conquistado na América Latina, até aquele momento, por Cuba. Contudo, o país ainda precisa aumentar o nível de pesquisa tecnológica e científica.
Entretanto essas tarefas e/ou diretrizes anteriores ainda não são suficientes, é necessário que se faça a preparação de agentes que deverão ter iniciativa de transformar a economia, ou seja, organizadores e empresários.
Para que a classe empresarial venezuelana se desenvolva junto com o país, é importante que se proporcione uma assistência técnica adequada e ampla, em que deverá estar incluída não apenas a preparação de pessoal para organização e administração de negócios, mas também para a elaboração de projetos e prestação de serviços.
Todos esses investimentos têm como meta o aumento da produção no país. Isto é, são da mesma natureza que os investimentos em transportes e energia e se concretizam em serviços de caráter permanente, gerando um fluxo importante de salários que vão contribuir para a expansão do mercado interno.
Na Venezuela atual, a centralização cambial e a acumulação de reservas vêm permitindo reduzir a dolarização da riqueza privada, aumentando, assim, a capacidade de manobra da política econômica, necessária na busca de uma estratégia nacional de desenvolvimento, o que nenhum país conseguiu realizar em uma única geração.
Apesar da crise, as ferramentas econômicas e políticas estão à disposição de Chávez. Resta saber se, na atual etapa, ele ampliará o desenvolvimento econômico e social via utilização de reservas e recursos já aplicados em fundos de desenvolvimento, ou se aumentará ainda mais a dependência do petróleo promovendo a retração do investimento público e o crescimento da carga tributária petrolífera.
*Paulo Daniel e Silva é economista, mestre em economia política pela PUC-SP, membro do núcleo de estudos Estado e Políticas Públicas (PUC-SP/CNPq) e professor do departamento de administração e economia da Unianchieta.