Dia da vitória
A França festeja a salvação da minha fábrica. Foi o que eu lhe disse. E a honra de meu avô, operário da oficina de Depasse. De meu pai, mecânico de automóveis com 17 anos de idade. A honra de seu filho, que entrou para a Blanquefort em 1974, um ano após sua inauguração por Jacques Chaban-Delmas e Henry Ford II. A honra dos 862 assalariados em luta, aos quais em breve vão se juntar outros 2 mil, como na década de 2000.
– Não feche a janela, por favor.
Eu tinha dito isso de um jeito dócil, um simples murmúrio. Mas Svetlana me lançou um olhar fulminante. Era a enfermeira. Ela tinha todos os direitos sobre esse quarto e o doente que o ocupava. A quantidade de travesseiros, sua posição embaixo da cabeça, o cobertor a mais, o cobre-leito a menos, tudo era com ela. Esse quarto de moribundo tornara-se dela. Ela tomava as decisões de dia e de noite. Era quem acendia a luminária do teto ou o abajur que ficava na cabeceira da cama. Era quem controlava o aquecimento e o silêncio. Era quem tinha confiscado o controle remoto da televisão.
– Tem barulho demais na rua – protestou Svetlana.
– Ele não me incomoda – sorri.
Fazia dez anos que a velha moldava cuidava de meu pai. Ele a adorava, ela o defendia. Ela se virava com ele como a tia de um parente que chegou ao seu crepúsculo. Comigo, ela era outra coisa. Eu era o filho inoportuno. Descerebrado. O irresponsável que servia um copo de vinho branco gelado para o moribundo. Aquele que lhe passava um cigarro para uma única baforada. Eu era quem o impedia de morrer tranquilo. Que abria as cortinas quando o sol mandava. Que remontava o inverno com uma bola de neve para que nela ele esfregasse seus lábios de criança. Que lhe falava da fábrica, de novo e mais uma vez, mesmo quando ele fechava os olhos.
– Você o cansa, Henry!
– Eu o distraio, Svetlana.
Desde o início da noite, a cidade estava agitava com a Copa do Mundo de futebol. Felicidade, alegria, entusiasmo. Nas rádios, nas TVs, os jornalistas tentavam encontrar em seus dicionários uma palavra melhor que a outra. De Bordeaux a Lyon, de Paris a Clermont-Ferrand, de Bayonne ao menor povoado de Mayenne, as famílias estavam nas ruas. As avenidas cantavam, as trilhas campestres, as varandas burguesas, as grandes cidades, os terraços, as orlas, as aldeias montanhosas. Uma alegria barulhenta, despreocupada, buzinas de carros, gargalhadas de mulheres, gritos de homens e gritaria de crianças.
– Eu quero que ele escute isso – disse.
Ela destravou a fechadura da janela. Em seguida, deu de ombros antes de sair do quarto.
Eu me sentei na cama debruçado sobre meu pai. Ele fechou os olhos, respirava com dificuldade.
– Você me ouve?
A cidade enlouqueceu. Ele concordou com a cabeça. Seu sorriso estreito. De manhã, eu lhe disse que a fábrica continuaria ali. Que o governo havia sido firme e que a Ford desistira de deixar o lugar.
– Firme? Como firme? – perguntou meu pai.
Eu me aproximei de sua orelha. Ele tinha os olhos fechados, então fechei os meus. Dois cegos lúcidos. E lhe contei. O que ele queria acreditar, o que eu adoraria ter ouvido. A Ford tinha decidido lançar a nova caixa de marchas aqui em Blanquefort.
– A 8F-MID?
Ele sorriu, os olhos abertos. Ele entendia. Ele só entendia disso. Quando criança, ele não me contava sobre príncipes e cavaleiros, mas sobre mecânica. Seu herói se chamava Henri Depasse, um importador exclusivo da Ford, na França. Foi ele que, em 1913, na Rua Fondaudège, nº 63, tinha aberto a primeira oficina de montagem francesa do Ford T. Francis, meu avô, tinha trabalhado para Depasse no Boulevard Albert-I. Com três companheiros da oficina, eles tinham feito o caminho em Paris até o estande 21 do Salão do Automóvel para ver o Ford T, com seu Bordeaux, sorrindo para os burgueses que não ousavam se aproximar da preciosidade.
– Henry?
Eu cheguei mais perto. Meu pai me tinha dado ao mesmo tempo os prenomes de Ford e de Depasse.
– Eles acharam o dinheiro?
Ele estava com os olhos abertos. Já seu olhar estava distante.
– Dinheiro para quê?
– A contabilidade…
Por minha vez, sorri. Ele falava da compatibilidade das linhas de montagem. Passar da caixa 6F35 para a nova tecnologia. Milhões de euros.
– Sim, é claro. Tudo foi resolvido.
Ele olhava para mim.
– Acho até que vai ser possível continuar com a 6F15. Os sindicatos falaram de 150 mil unidades para a Europa.
Ele levantou a mão, apenas uma. Sua palma desgrudou do lençol. Continuava a olhar para mim.
– Mas é certo? Está garantido? A fábrica está salva?
Eu me levantei, abri as janelas mais ainda.
– Você não escuta?
A França festeja a salvação da minha fábrica. Foi o que eu lhe disse. E a honra de meu avô, operário da oficina de Depasse. De meu pai, mecânico de automóveis com 17 anos de idade. A honra de seu filho, que entrou para a Blanquefort em 1974, um ano após sua inauguração por Jacques Chaban-Delmas e Henry Ford II. A honra dos 862 assalariados em luta, aos quais em breve vão se juntar outros 2 mil, como na década de 2000. A honra do grande estacionamento que, de novo, vai ficar lotado. A honra de todos os rapazes da linha de montagem, a honra dos companheiros dos setores de produção, de montagem, do tratamento térmico. A honra dos reguladores, dos controladores, do serviço de compras das matérias-primas. A honra de todos aqueles que acreditam que o trabalho é o lugar da dignidade. A honra de nossos ancestrais, que mostravam sua insígnia Ford para tranquilizar o banqueiro. A honra daqueles que acreditam que o desenho oval azul é um talismã para a vida, sem saber que Henry Ford havia dito: “Os homens trabalham por duas razões: o salário e o medo de perder o emprego”.
A honra das mulheres e dos homens que recusaram o salário do medo.
– Estou ouvindo – murmurou meu pai.
Ele saboreava os gritos, os cantos, os apitos, os fogos. Uma sirene o fez reagir com um sobressalto. Ele sussurrou. Minha face junto à dele.
– Falam disso na TV?
Eu liguei o aparelho. Temia a volta de Svetlana. Coloquei em um canal de esportes, o primeiro, qualquer um. A Champs-Élysées estava em brasa. Dezenas de milhares, com os braços para cima, sorrisos vitoriosos, uma França antes dos tormentos. Meu pai abriu os olhos. Com dificuldade. Tirei o som. Ele observou a tela, o entusiasmo, o close de uma criança nos ombros de um adulto. A fisionomia de papai era dolorosa. Desliguei a televisão. Ele fechou a cara. Conheço bem essa cara. Ele tinha esse mesmo beiço quando eu era criança e não repetia as sábias palavras que ele me ensinava.
– Engrenagens epicicloidais, de qualquer maneira não é complicado!
Como o pai dele, ele tinha me educado para o Ford T.
– O ancestral dos câmbios automáticos!
Seu reino era um mundo de alavancas, pedais, correias de comandos. Suas joias se chamavam Consul, Zodiac, Zephyr, mas nenhum de nós jamais conseguiu se dar um carro feito com nosso trabalho. “Trabalhamos duro para os ricos”, dizia meu pai. Nem amargo, nem triste, nem com raiva de nada. A Ford era seu trabalho, não seu lazer. Ele tinha fechado os olhos de novo. Fechou a cara. Seus lábios desvitalizados caídos.
– Tudo bem, papai?
Um vago levantar de ombros. Sua voz esgotada pela idade e pelo tabaco.
– Não há bandeira vermelha. Nada de faixas dos sindicatos. Onde pensam que estão? Numa partida de futebol?
Acariciei seus cabelos. Aquilo era Paris. Eles são assim em Paris. Pena que ele não pudesse se levantar, vir até a janela, porque em nossa casa, Praça Pey-Berland, só havia isso, bandeiras vermelhas. Da alegria operária. Da altivez, da dignidade, da beleza.
Ele abriu os olhos pela última vez.
– Então ganhamos, meu filho?
Peguei a mão dele.
– Ganhamos, papai.
Em seguida, ele voltou a dormir, com o sorriso nos lábios.
Quando Svetlana chegou, peguei minha mochila. Ela tinha um mau olhar.
– O senhor não o cansou, espero!
Eu dei um beijo em sua bochecha. Um gesto assim, furtivo, não habitual. O beijo de uma borboleta. Ela deu de ombros sacudindo as mãos. Tenho certeza de que ela riu. Saí no meio da multidão. As bochechas estavam pintadas, eram tricolores, adolescentes usavam camisetas com as cores do time da França. A cidade exaltada dançava e cantava a vitória. E aí então mergulhei no meio dessa alegria que não era minha. Caminhei até a catedral, abri minha mochila e vesti a camiseta branca dos companheiros da Ford sobre minha camisa, “Lutemos todos juntos para salvar os empregos”.
Em seguida, subi no pedestal da estátua de Chaban e levantei o punho. Uma criança me imitou, sua mãe também. Depois, um homem que passava por ali. E depois um jovem. E depois outro…
*Sorj Chalandon é jornalista e escritor. Este texto foi extraído do livro coletivo Blanquefort, même pas mort! [Blanquefort, enfim, não está morta!], publicado pela editora Libertalia (Montreuil) como forma de apoio à luta dos operários da fábrica da Ford em Blanquefort, França.