Dia Internacional de Apoio às Vítimas de Tortura
Entrevista com Adriana Costa, perita do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT)
“Quero a utopia, quero tudo e mais
Quero a felicidade dos olhos de um pai
Quero a alegria muita gente feliz
Quero que a justiça reine em meu país
Quero a liberdade, quero o vinho e o pão
Quero ser amizade, quero amor, prazer
Quero nossa cidade sempre ensolarada
Os meninos e o povo no poder, eu quero ver”
Coração Civil – Milton Nascimento e Fernando Brant
Os versos de Milton Nascimento e Fernando Brant continuam a ser urgentes em nosso país que, em um turbilhão, submerge aos poucos em meio às sombras. Fechamento do Congresso Nacional, fim do Supremo Tribunal Federal, retorno à ditadura civil-militar e volta do AI-5 são algumas das demandas efetuadas por grupos sociais que colaboram em sustentar as ações do atual governo. Todos esses apelos aterradores ressoam com mais força em contextos de crise, como o vivenciado durante a pandemia do novo coronavírus. Entretanto, nem tudo se perdeu. Estamos em um cenário de intensas disputas que, entre muitos lados, há aqueles que ainda buscam a liberdade, o vinho e o pão.
Datas emblemáticas ajudam a enrijecer determinadas pautas. Neste texto, gostaríamos de ressaltar o 26 de Junho, Dia Internacional de Apoio às Vítimas de Tortura. Em acolhida à luta histórica de movimentos sociais e de organizações de direitos humanos, momentos assim ajudam a ecoar que a tortura não deve ser banalizada e, sobretudo, não deve sob qualquer hipótese ser legitimada. O crime é problema estrutural, entranhado em nossa sociedade, devendo ser sistematicamente combatido. Portanto, devemos estar alertas para que a crise causada pela Covid-19 não sirva de inflexão para a passagem da boiada que causaria mais dor às populações vulneráveis.
A ação de órgãos estatais autônomos como o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) avigora a luta em desfavor dessa prática. Com base nas leis n° 12.847 e n° 12.857, ambas de 2013,[1] este ente atua desde 2015 realizando visitas a espaços de todo o país onde as pessoas têm suas liberdades cerceadas e emitindo recomendações aos responsáveis por esses estabelecimentos.[2] Após percorrerem mais de 180 instituições, como unidades prisionais, centros socioeducativos, comunidades terapêuticas, hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico e instituições de longa permanência para idosos, entre outros tantos locais, os membros do órgão produziram uma série de registros que aponta ser a tortura parte de nosso cotidiano tão permeado por desigualdades.[3]
Apesar da grande importância do órgão, em 2019, o governo Bolsonaro publicou o Decreto n° 9.831. As ações desempenhadas pelos integrantes do MNPCT passaram a ser identificadas como prestação de serviço público voluntária, não podendo ser exercida por pessoas vinculadas a redes, a entidades da sociedade civil e a instituições de ensino e pesquisa. Tal medida foi contestada e, hoje, o ente atua graças exclusivamente à decisão liminar em ação civil pública em tramitação na Justiça Federal. Ou seja, nossa política de prevenção à tortura se equilibra em corda bamba diante de um contexto de direitos naufragantes.
Conversamos com a integrante do MNPCT Adriana Costa com o intuito de compreender de que modo o órgão vem atuando em face da pandemia de Covid-19. Assistente social, perita do MNPCT, especialista em Psicologia Social (UFMA) e em Direitos Humanos (UCB) e mestranda do Programa de Pós-Graduação em Política Social pela UnB, ela falou sobre a atual conjuntura política e em que medida o Dia Internacional de Apoio às Vítimas de Tortura ajuda a revigorar pautas imprescindíveis à manutenção do estado democrático de direito.
Conte um pouco de sua trajetória. Como você chegou ao MNPCT?
Comecei a minha como assistente social no fim dos anos 1990, no Movimento de Criança e Adolescente, no Maranhão. Como técnica e militante, atuei por cinco anos do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente Padre Marcos Passerini, organização da sociedade civil que foca na defesa de direitos difusos e coletivos de crianças e adolescentes. Nossa ação era muito voltada ao fomento da participação social na discussão e no controle das políticas públicas, assim como na cobrança de responsabilidades por parte do Estado. Minhas primeiras visitas de monitoramento às unidades socioeducativas de privação de liberdade foram naquele período.
Uma denúncia envolvendo uma rede de exploração sexual de adolescentes e a necessidade de acompanhamento das vítimas me aproximou de uma nova experiência: a proteção a vítimas. E, atraída por novos desafios e aprendizados, não tive dúvidas no que queria atuar em 2002, quando me candidatei ao processo seletivo da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH), entidade cujo histórico guarda vinculação orgânica à luta contra a ditadura e pela democracia. Atuar nessa instituição me permitiu várias frentes de ação, inclusive, realizar inspeções ao sistema prisional e contribuir na escrita de relatórios elaborados à Corte Interamericana de Direitos Humanos, como os relacionados ao “Caso Pedrinhas (MA)”. Na área da proteção, também estive na coordenação do Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAAM), ocasião em que me mudei para o Distrito Federal.
Esses e outros locais pelos quais eu passei me permitiram vivenciar atividades que tinham aproximação com algumas competências previstas ao Mecanismo Nacional. Concorri, então, ao edital para compor o órgão por entender que minhas experiências e aprendizados anteriores poderiam ser úteis nas ações desenvolvidas pelo ente.
Quais são suas atividades no Mecanismo? Qual lugar que você visitou te marcou mais? Por quais motivos?
Exceto a coordenação do MNPCT, os(as) peritos(as)[4] não têm atribuições distintas entre si. Todos(as) somos igualmente responsáveis pelo cumprimento das obrigações tratadas pela Lei n° 12.847/2013, que cria o órgão. Em nossa estrutura organizacional, contamos com Núcleos Temáticos integrados por peritos(as) e assessores(as), encarregados na produção e na divulgação de documentos como, por exemplo, relatórios temáticos e notas técnicas. Os núcleos também propõem discussões e indicam leituras de normativas a serem observadas durante a preparação e a realização das missões aos estados, cujo foco são as visitas aos espaços de privação de liberdade. Atualmente, componho o Núcleo Socioeducativo e de Acolhimento Institucional que tem a prioridade de garantir direitos à pessoa idosa institucionalizada.
Muitas situações nos enchem de indignação e, de alguma forma, isso se transforma em combustível ao trabalho. Esse sentimento também nos traz a certeza de que o desafio de enfrentamento à prática de tortura é coletivo, requerendo uma atuação articulada entre os diversos órgãos de promoção, proteção e defesa de direitos.
Lembro agora de duas situações recentes de confronto com realidades que por alguns minutos me fizeram desacreditar em um processo civilizatório, pois me vi diante da negação da condição humana de pessoas privadas de liberdade: eram nove homens jogados no chão, acorrentados uns aos outros, sob a vigilância de três policiais da Brigada Militar, na Delegacia de Novo Hamburgo, no Rio Grande do Sul. A cena afrontava aos direitos humanos, remontando ao período escravagista, assim como escancarava uma cultura conservadora e punitivista.[5]
Também me marcou ver a dignidade da pessoa humana cedendo lugar à coisificação de corpos nas unidades prisionais do Pará que visitamos. Parecia cena de campos de concentração, já que no local onde fazíamos a inspeção havia quatro homens andando no corredor das celas, enfileirados e encaixados uns aos outros, com as pernas flexionadas, braços e punhos fechados dentro do peito, coluna arqueada, cabeça baixa. Ao passarem próximos a um policial penal, repetiam com a voz fraca, as palavras: “sim senhor, licença senhor”.[6]
Muitas vezes, é inevitável se sentir impotente nesse campo de atuação, mas gosto de acreditar no potencial das recomendações emitidas pelo MNPCT. Essas medidas ajudam a provocar discussões sobre a aplicação de políticas públicas e, ainda, podem incidir na formulação de projetos de lei e na criação de novas pautas relativas à privação de liberdade.
De que maneira a pandemia afeta as pessoas privadas de liberdade no Brasil?
Ainda se percebe uma disputa de narrativas em torno da pandemia, sendo que alguns dos relatos que andam correndo publicamente tentam afirmar que a doença atinge a todos igualmente. No entanto, não há dúvidas de que os efeitos da Covid-19 alcançam mais fortemente e, por vezes de modo mais letal, pessoas em situações de maior vulnerabilidade socioeconômica. Afinal, como disse Boaventura de Sousa Santos, “a pandemia não é cega e tem alvos privilegiados”. Portanto, é preciso considerar marcadores de classe, gênero e raça ao cobrarmos as responsabilidades estatais, tanto em ações de prevenção e combate à propagação do vírus, como na execução das políticas públicas de saúde e proteção social.
Na contramão disso, temos sido surpreendidos por ataques a políticas essenciais ao momento, à exemplo da recente Portaria nº 1.325, de 18 de maio de 2020, a qual dispôs sobre a extinção do “Serviço de Avaliação e Acompanhamento de Medidas Terapêuticas Aplicáveis à Pessoa com Transtorno Mental em Conflito com a Lei”, no âmbito da Política Nacional de Atenção às Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional.
Por sua vez, as orientações e recomendações de como se proteger da Covid-19 publicadas pelo Ministério da Saúde deveriam ser aplicadas a todos os locais onde as pessoas têm seu direito de ir e vir cerceado. Entretanto, a realização dessas medidas não coaduna com a precariedade das estruturas das instituições existentes no Brasil. Como falar em distanciamento físico, em espaços asseados e na lavagem frequente de mãos em um contexto de superlotação, insalubridade, umidade, racionamento de água e de materiais de higiene? Os protocolos de contingência publicados pelos órgãos nacionais não tornam claras as medidas a serem adotadas no sentido de adequações dos estabelecimentos de privação de liberdade.
De fato, sabe-se que em muitos casos isso nem seria possível. Antes mesmo da pandemia, no sistema prisional, por exemplo, sempre foram alarmantes os casos de tuberculose e de escabiose (sarna) entre os presos. Além disso, a falta de medicação é queixa comum a quase todos os espaços de privação de liberdade visitados pelo MNPCT. Portanto, para além das novas questões sanitárias trazidas pela Covid-19, os reflexos da pandemia às pessoas estão associadas a problemas já antigos e conhecidos. Cruzam-se fatores de riscos à integridade física e mental dos indivíduos institucionalizados, ao mesmo tempo em que esses espaços criam condições de adoecimento também para familiares e para aqueles que lá exercem suas atividades profissionais.
O que o MNPCT tem feito para reduzir os efeitos da pandemia?
A função precípua do Mecanismo é realizar visitas a espaços de privação de liberdade em todo o país. No entanto, quando se iniciaram as medidas de restrição de acesso a essas instituições em face da pandemia, tais inspeções foram suspensas. Há um entendimento entre os atores relacionados à privação de liberdade de que os(as) peritos(as) (além das famílias) poderiam ser vetores de transmissão do vírus. No entanto, o fechamento das unidades ao controle social é algo que preocupa. Por isso, neste momento, estamos discutindo meios para que as visitas do MNPCT sejam retomadas, garantindo a segurança das pessoas privadas de liberdade, dos profissionais das instituições e dos(as) peritos(as).
A pandemia também forçou o nosso órgão a buscar outras estratégias de monitoramento e a aperfeiçoar a interlocução com atores estratégicos ao trabalho que desenvolve, através de reuniões virtuais com representantes do poder público e da sociedade civil. Além disso, o MNPCT passou a solicitar de modo mais sistemático determinadas informações às autoridades estaduais.
Através desses dados, o ente vem elaborando documentos e recomendações às autoridades, tentando incidir e contribuir para a observância e garantia de direitos das pessoas privadas de liberdade. Na Nota Técnica n°5, destacamos ser fundamental a criação de estratégias de cuidado de saúde que não se traduzam em maiores restrições e violações de direitos às pessoas privadas de liberdade. Apresentamos também ações de mitigação por perfil de pessoa privada de liberdade, trazendo o desencarceramento e a desinstitucionalização como questões centrais. Salientamos também a importância de os indivíduos terem contato com o mundo exterior ao estabelecimento onde vivem, bem como a necessidade de serem efetivados canais de denúncia, ser garantida a permeabilidade ao controle externo e prover condições de cuidados de saúde.
Além disso, atentos ao número de óbitos de pessoas idosas institucionalizadas, construímos a Nota Técnica nº 6, com vistas a contribuir na promoção e cuidado à saúde, integridade física e emocional da pessoa idosa e de profissionais em instituições de longa permanência. Com mote semelhante, lançamos, junto ao Coletivo de Mecanismos Brasileiros de Prevenção e Combate à Tortura, uma Campanha contra o Projeto de Lei n° 1.026/2020, apresentado recentemente na Câmara Federal. Essa ação legislativa propõe alterar o Estatuto do Idoso para permitir que a pessoa idosa contribua com 100% de seu benefício previdenciário ou assistencial para custeio de entidades durante a pandemia e em períodos de calamidade pública.
A partir desses documentos e ações, temos feito movimentos no sentido de contribuir na ativação de redes e de sistemas de direitos humanos nos estados. Isso nos permite, inclusive, monitorar recomendações proferidas por outras instituições públicas, como as emitidas em março pelo Conselho Nacional de Justiça,[7] além de possibilitar acompanhar a aplicação das diretrizes fornecidas pelo MNPCT através de suas notas técnicas.
Diante dos distintos retrocessos pelos quais o Brasil passa atualmente, como o retorno da narrativa sobre a importância de uma ditadura militar e do AI5, qual é o significado do 26 de Junho deste ano?
O cenário atual é desalentador graças ao grave contexto de ameaça ao estado democrático de direito e as constantes investidas presidenciais contra os instrumentos de participação e controle social, estabelecidos nesse curto processo de abertura democrática pós ditadura civil-militar. Vivenciamos um momento em que os atos do governo federal concretizam retrocessos na política contra a tortura no Brasil. Mas, cabe lembrar que, historicamente, a luta por direitos e pela construção da democracia são parte de um mesmo processo. Nesse sentido, o 26 de Junho deve ser assumido como uma data para lembrarmos o que não pode ser esquecido nem negado pela história oficial, sendo um dia de cobrança por garantias, particularmente o direito a não tortura.
Nesta data, é igualmente importante publicizar que a tortura permanece como problema atual, embora esteja muito associada ao período ditatorial. Assim sendo, é preciso evidenciar quem são as pessoas submetidas à prática na contemporaneidade, onde elas estão, quem são os torturadores e onde eles atuam. É preciso também perguntar, a despeito da lei nº 9.455/1997 (que tipificou o crime de tortura no Brasil) e da lei nº 12.847/2013 (que criou o Sistema Nacional de Prevenção e Combate a Tortura), quais ações têm sido efetivamente colocadas em prática para a investigação dos acusados e para a responsabilização dos autores de tortura. De igual maneira, deve-se questionar quais programas e serviços de atenção às vítimas funcionam e o que o Estado tem a dizer sobre processos de reparação.
Por fim, destacaria a importância de referenciarmos e estarmos atentos às contribuições que as vítimas de tortura podem trazer não só à reconstrução da nossa história, como também à elaboração da política nacional contra a tortura, ainda recente e sob ameaça em nosso país. Por isso, é fundamental trabalhar para que essas pessoas participem efetivamente dos debates públicos e de ações de controle social.
Ter uma data de força simbólica internacional como o 26 de Junho na agenda é necessário e pedagógico. Um dia como esse permite evidenciar a dor de quem é torturado, lembrando que a prática é crime e, assim, quem a comete ou a promove deve ser responsabilizado.
Sylvia Diniz Dias é assessora jurídica e representante da Associação para a Prevenção da Tortura (APT) no Brasil.
Thais Lemos Duarte é socióloga, pesquisadora de pós-doutorado em Sociologia na Universidade Federal de Minas Gerais e do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (CRISP/UFMG) e ex-integrante do MNPCT.
*Este texto diz respeito a percepções pessoais, não necessariamente abarcando as visões dos órgãos que os envolvidos na entrevista estão vinculados.
[1] A lei de formação do MNPCT foi construída a partir do Protocolo Facultativo à Convenção das Nações Unidas contra a Tortura (OPCAT), o qual estabelece um sistema de visitas regulares a locais de detenção como forma de prevenir a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes.
[2] Entende-se como “locais de privação de liberdade” os espaços, públicos ou privados, onde indivíduos, seja por mandato, seja por ordem judicial, estejam obrigados a permanecer, sem poder deliberadamente sair. Entre outros exemplos, estariam incluídos nesse conceito os estabelecimentos penais, os centros socioeducativos, os hospitais psiquiátricos, as casas de custódia etc.
[3] Os relatórios, notas técnicas e outros documentos produzidos pelo órgão estão publicados em: https://mnpctbrasil.wordpress.com/.
[4] Integrantes do órgão, conforme disposto por normativas que constituem o MNPCT.
[5] Informação está registrada no Relatório da Missão Conjunta ao estado do Rio Grande do Sul, de dezembro de 2019.
[6] Informação registrada no Relatório da Missão Pará de 2019.
[7] Resolução n° 62 do Conselho Nacional de Justiça, de 17 de março de 2020.