ARQUEOLOGIA
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Dinossauros à venda
O mercado de arte se interessa cada vez mais pelo potencial especulativo da paleontologia. Em 1997, quatro anos após a estreia do filme Jurassic Park, de Steven Spielberg, a rede McDonald’s e a Disney foram os principais mantenedores do Museu Field, em razão da descoberta do Tyrannosaurus rex mais completo do mundoHenri Jautrou
Em Paris, dois objetos de história natural foram vendidos por 250 mil euros. Em dezembro de 2009, na prestigiosa sala Drouot-Montaigne, a casa de vendas Cornette de Saint Cyr comercializou por essa mesma quantia o esqueleto de um dinossauro do gênero Spinosaurus. No início deste ano, graças ao mecenato do grupo petroleiro Total, o Museu Nacional de História Natural (MNHN) da França adquiriu, também por valor semelhante, uma fluorita – amálgama cristalizada há pouco tempo, certificada como tesouro nacional e atualmente exposta na Grande Galeria da Evolução. Feito inédito na França no que se refere a uma peça do reino mineral.
As vendas e leilões de minerais, fósseis e meteoritos são comuns nos Estados Unidos, mas o tema é novidade na França, onde a famosa sociedade de leilões Christie’s vem organizando uma série de eventos do tipo. O marchand Bertrand Cornette de Saint Cyr confirmou, logo após o leilão de dezembro passado, em Drouot: “Nossa venda é experimental. Desenvolver esse mercado é uma meta de longo prazo”. As sessões, que duraram dois dias, arremataram um conjunto de objetos bastante heterogêneos entre si: desde um canguru anão empalhado até a “foto enquadrada de uma expedição do astronauta Guennadi Strekalov fora da espaçonave”. Esse verdadeiro circo de curiosidades atraiu um grande público.
Em geral, os leilões são acompanhados por um cientista e, em caso de necessidades eventuais, pesquisadores externos podem ser contratados para análises complementares. “Nem sempre podemos realizar sistematicamente descrições onerosas em termos de tempo e dinheiro, mas tentamos responder às demandas da melhor forma possível”, sublinha Eric Buffetaut, paleontólogo do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS), antes de completar: “Mas, verdade seja dita, nem sempre somos consultados”. De fato, muitos colecionadores manifestam certa inquietude ao ver pesquisadores manipularem suas peças por longo tempo, justificando que estes desejam realizar estudos aprofundados, estão muito ocupados ou trabalham com pouco afinco. É nesse ponto que se complicam as relações entre cientistas e “amadores”. Contudo, de acordo com a lei, todo novo objeto que se torne de fato uma referência, deve ser depositado em alguma coleção oficial para ser conservado em condições ideais e tornar-se acessível. “As revistas especializadas recusam publicações que não estejam de acordo com essa regra. Exigem, inclusive, a explicitação da trajetória das peças mencionadas e os números de certificação outorgados pelo MNHN ou outra instância oficial”, afirma Michel Guiraud, diretor das coleções do MNHN.
No caso das vendas realizadas em Drouot, um chefe honorário de conservação do patrimônio, Gilles Pacaud, examinou se cada um dos objetos estava de acordo com a legislação de seu país de origem. Essa checagem se deve ao fato de que alguns Estados, como a Argélia, proíbem a exportação de peças pertencentes ao patrimônio natural, enquanto outros privilegiam o desenvolvimento de sua economia e deixam os fósseis cuja estimativa de valor é baixa sair do país em contêineres. É para extrair objetos como esses que, em troca de alguns poucos dólares, pessoas se lançam em escavações em galerias precárias nos montes de Kem-Kem, na região Sudeste de Marrocos. Acidentes são inevitáveis, o que não impede que um exército de escavadeiras desenterre algumas ossadas nas jazidas gerenciadas pelo
Escritório Árabe de Fosfatos.
Os objetos de história natural, contudo, possuem um rastreamento limitado. “É incrível o número de meteoritos que chegam do Marrocos”, ironiza Alain Carion, proprietário de uma loja em Paris. A data da extração do material também não é algo evidente. A sessão de leilão de uma amonita gravada da reserva natural geológica da Alta Provença, onde a coleta de objetos é formalmente proibida, gerou protestos na região, em outubro de 2009. “Como saber se a peça foi mesmo encontrada antes da data de criação da reserva?”, observa Hervé Jacquemin, diretor da área protegida.
Valores milionários
O mercado de arte se interessa cada vez mais pelo potencial especulativo da paleontologia. Em 1997, quatro anos após a estreia do filme Jurassic Park, de Steven Spielberg, a rede McDonald’s e a Disney foram os principais mantenedores do Museu Field, em razão da descoberta do Tyrannosaurus rex mais completo do mundo. A instituição arrematou a peça, contra nove ofertas de leiloeiros, por US$ 8,6 milhões – uma compra que fez disparar a cotação desses grandes carnívoros. O paradoxo da situação é que os museus não possuem subvenções suficientes para esse tipo de comércio e, confrontados com a concorrência de colecionadores bilionários, são obrigados a recorrer ao mecenato para adquirir peças de valor internacional. As somas obtidas por esse meio são, em grande parte, isentas de impostos – em até 90%, como foi o caso do valor referente ao Spinosaurus, decretado tesouro nacional. O valor de certos objetos, portanto, passa a ser questionável. Em relação ao mesmo Spinosaurus, os paleontólogos avaliaram como “excessivo” o preço pago pelo artefato, “a não ser que seja considerado um objeto de arte”.
O catálogo do leilão em Drouot especificava que a reconstituição do objeto havia sido realizada com 50% de ossos e fragmentos “recolhidos em diversas localidades da região de Kem-Kem, no Marrocos, em um intervalo de 25 anos”. Ora, se dois milhões de anos separam as diversas estratificações do solo, cada uma delas pode conter espécies em momentos diferentes de evolução. A menção do catálogo de que são fragmentos “compatíveis com o gênero Spinosaurus” não enganou ninguém do meio científico. Tanto que, em 2005, após adquirir o crânio do “animal” – vendido na época por 81 mil euros, pela Christie’s – o MNHN voltou atrás. O gesto gerou algumas complicações jurídicas, mas a parte civil desistiu de seguir adiante, dada a formulação ambígua da notícia e o possível escândalo que se delineava.
As descobertas de objetos de história natural – qualificadas de “invenções” em termos técnicos – muitas vezes obliteram os processos de pesquisa envolvidos. Há pouco mais de um ano, os maiores vestígios de dinossauros já vistos foram encontrados em Plagne, em Ain, por dois membros da Sociedade de Naturalistas de Oyonnax (SDNO). Essa sociedade, que possui uma linda coleção, pode se gabar de inegável expertise. “Seus membros encontraram um sítio sobre rudistas (moluscos fossilizados), único no mundo e um importante sítio com vestígios de saurópodes”, sublinha o geólogo Patrice Landry. Geralmente criadas pelo incentivo de pesquisadores universitários, essas associações às vezes montam modestos museus que, no verão, rendem alguns subsídios à economia local. “Os dinossauros chamam a atenção do público. É nesse momento que podemos transmitir diversos conhecimentos sobre evolução, genética, geologia, linha do tempo, fisiologia, tudo.”, constata Marie-Hélène Marcaud, professora aposentada e codescobridora do sítio de Plagne. Ainda que a ideia de criar um parque esteja em estudo, equipes do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS) da Universidade de Claude Bernard, em Lyon, já desenvolvem trabalho de campo. Diante dessa meta, a SDNO se apresenta como uma sólida aliada dos pesquisadores, segundo o princípio do crowdsourcing ou “coleta de informações para as massas”.
As fronteiras entre esfera pública e privada, amadores e marchands, cientistas e colecionadores mantêm-se, contudo, extremamente fluidas. Também seguem aumentando as denúncias de infração ou degradação de sítios arqueológicos que atraem um número crescente de turistas a cada ano. Muitos pesquisadores temem que alguns desses sítios sejam devastados pela busca frenética de artefatos estéticos. Outros, ao contrário, apostam na regulação do mercado e acreditam que a pilhagem é apenas um epifenômeno e que os marchands, apesar de tudo, contribuem para a difusão da área. Há ainda os pesquisadores que, talvez de maneira idealista, acreditam que se trata de um “jogo de gato e rato” com os revendedores: o status de especialistas os tornaria parceiros inevitáveis na validação das peças de alto valor científico, o que lhes conferiria certo poder de ingerência.
A atual alta de preços reforça a dimensão patrimonial das peças de história natural – e gera demandas de restituição das mais importantes. Há dois anos, por exemplo, o Brasil tenta recuperar na íntegra os fósseis de Araripe que estão no Museu Americano de História Natural de Nova York.
Henri Jautrou é jornalista.