Direito de nascer
Ter um parto natural não é algo fácil. Ao menos para quem vive em uma cidade como São Paulo. Trata-se de fazer opções que, simplesmente, não estão previstas no roteiro-padrão do atendimento médico, apesar dos esforços do Ministério da Saúde, já há alguns anos, para reduzir o índice de cesáreas no país
Segunda-feira, 24 de agosto, oito e meia da noite. O monitoramento do coração da criança indicara uma leve desaceleração. Somado ao fato de que, naquele dia, completavam-se 41 semanas de gestação – nas contas dos médicos –, a residente decidiu decretar: “Vamos ter de interná-la”.
O desconcerto foi enorme. Apesar do nervosismo com a demora para que a criança nascesse, os dois não esperavam que a ida até o hospital público resultasse num parto induzido. Depois de meses de esforço para que tudo ocorresse de maneira natural. Rapidamente conversaram e avisaram à jovem doutora que desceriam para tomar um café e pensar sobre que decisão tomariam. Aparentemente irritada por ser contrariada em sua autoridade de médica, ela retrucou, sem pestanejar: “Tudo bem. Mas se a criança morrer nesse meio tempo, eu lavo as minhas mãos”. O impacto sobre o ânimo do casal foi enorme. Tensos, eles desceram até um restaurante próximo para conversar sobre o que fariam.
Por absurdo que pareça, ter um parto natural não é algo fácil, ao menos para quem vive em uma cidade como São Paulo. Trata-se de fazer opções que, simplesmente, não estão previstas no roteiro-padrão do atendimento médico. Apesar dos esforços do Ministério da Saúde, já há alguns anos, para reduzir o índice de cesáreas, existe algo além da simples decisão da gestante por um parto “natural”: afora driblar profissionais como a citada acima, é preciso descobrir as minúcias envolvidas no chamado “protocolo médico”.
Ou seja, ter conhecimento de que uma série de procedimentos é aplicada automaticamente na paciente, fazendo a diferenciação entre parto normal e natural, este último com o mínimo possível de intervenções e respeitando as vontades da mãe. Isto porque, mesmo onde se pratica o parto normal, em grande parte das vezes não se pergunta se a mãe quer ou não receber a aplicação de ocitocina – hormônio que estimula as contrações artificialmente, causando dor e desconforto. Quem não sabe sobre esse tipo de detalhe antes, dificilmente vai conseguir fazê-lo quando já está sentindo as contrações.
Igualmente a presença de um acompanhante durante o pré-parto e o parto é um direito da mãe1, mas em muitos locais não existem instalações para que essa segunda pessoa fique acomodada. É possível então que a gestante tenha de ficar por, digamos, 20 horas sozinha, em trabalho de parto e, só no fim, durante os 15 minutos de expulsão, tenha a companhia de alguém.
Ter um parto natural é, portanto, algo que demanda amplo envolvimento em pesquisa. Sem curiosidade e tempo para se informar, a gestante é facilmente enquadrada nos protocolos e, talvez, só descubra que tinha a opção de fazer diferente quando for tarde demais. Não por acaso, grande parte dos usuários das poucas casas de parto natural do Sistema Único de Saúde tem ensino superior e padrão econômico elevado2. Em São Paulo, há, hoje, apenas duas delas em funcionamento, em São Miguel Paulista e Sapopemba. E pasme: mesmo sendo poucas, elas são subutilizadas – operam com menos de 50% da capacidade atual.
A ideia das casas de parto é tirar o nascimento do âmbito hospitalar e proporcionar-lhe um ambiente o mais natural possível, com o máximo respeito à mãe. Por isso, as figuras centrais nessas instalações não são os médicos, mas sim as enfermeiras obstetrizes ou parteiras – reconhecidas pela Organização Mundial de Saúde como as profissionais mais indicadas para lidar com os partos de baixo risco. Há uma triagem rigorosa: casos com potencial de complicação são automaticamente encaminhados para os hospitais.
Boicote às casas de parto
E por que não existem mais unidades ou não se divulga as que já estão em funcionamento? Bem, dez anos depois da criação das casas no âmbito do SUS, a tática de seus opositores parece estar clara: por um lado, protelar o máximo a expansão dessa rede (em 1999, a intenção era a de criar 40 casas de parto por todo o país – hoje, há pouco mais de 10 em funcionamento); por outro, boicotá-las aos poucos, até que morram por inanição.
Em 2008, por exemplo, foi fechada a Casa de Parto que funcionava na Universidade Federal de Juiz de Fora, sob a alegação de que ela dava prejuízos à instituição e não cumpria com os seus objetivos, em função do baixo número de atendimentos. No início de 2009, a Vigilância Sanitária chegou a interditar a Casa de Parto do Rio de Janeiro por falta de equipamentos – posteriormente, a unidade foi reaberta.
Além disso, o sistema público, muitas vezes dominado pelos próprios médicos, não divulga a existência desses equipamentos3 porque o sucesso das casas de parto é, também, a evidência mais forte de que o trabalho dos doutores pode ser dispensável na maioria dos casos. Afinal, segundo a OMS (Organização Mundial de Saúde), o índice internacional considerado aceitável é de 15% de cesáreas. Por aqui, chegamos a uma média de 43% de cesáreas, com taxa de 26% na rede pública, e 80% na rede privada4.
A militância pelo parto natural tem raízes inauditas5. O médico cearense José Galba de Araújo é reconhecido como pioneiro. Nos anos 1970, ele coordenou esforços para integrar as parteiras tradicionais ao Sistema Público de Saúde, capacitando-as para melhorar o trabalho comunitário que já exerciam. Outra figura central é o médico Moysés Paciornik. No Paraná, depois de estudar as índias kaingang, que tinham mais filhos e melhor saúde que as brancas em geral, ele escreveu o livro “Aprenda a nascer e a viver com os índios” e passou a defender o parto de cócoras. Os trabalhos desses brasileiros, além de pessoas como o francês Frederick Leboyer6, atiçaram a curiosidade de profissionais de saúde de várias partes do país e formaram uma geração de ativistas. Nos anos 1990, foi constituída a Rede pela Humanização do Nascimento (Rehuna). Gente oriunda dessa turma espalhou a militância pelo parto natural por coletivos como o Amigas do Parto ou o Grupo de Apoio à Maternidade Ativa (Gama).
Hoje, a novidade é que, cada vez mais, o ativismo pelo parto natural incorpora usuárias do Sistema de Saúde, e não apenas técnicos. São mães que passaram por boas ou más experiências e querem compartilhá-las. A rede Parto do Princípio7, por exemplo, reúne mais de 200 mães em 16 estados e busca estimular o debate público sobre a questão.
Além de disponibilizar farto material na internet, essas redes estão, muitas vezes, associadas a centros como o que o Gama8 mantém na zona oeste de São Paulo. Ali, diversas reuniões semanais gratuitas oferecem informações às gestantes sobre todas as opções disponíveis e os direitos de que elas dispõem caso sejam atendidas em hospitais privados ou na rede pública. Num trabalho de mapeamento de grupos semelhantes ao Gama, a rede Parto do Princípio já encontrou 47 coletivos, em 29 cidades brasileiras.
E quanto ao casal lá do início? Felizmente, meses antes, eles tinham tido acesso a toda essa rede de informações, sobretudo a partir de amigas que já tinham tido boas experiências com o parto natural e contavam, também, com médicos conhecidos que puderam dar parâmetros mais confiáveis sobre o que estava acontecendo naquela noite. De volta ao hospital, exigiram que o exame do coração do bebê fosse refeito, uma vez que uma única irregularidade no ritmo cardíaco poderia não configurar problema nenhum. Depois, outra residente constatou dilatação mínima e efetuou o descolamento da bolsa d’água que ajuda a apressar o trabalho de parto.
Eles se recusaram a interná-la para a indução – o que significaria ficar sozinha no hospital, sendo medicada, por até três dias – e voltaram para casa. No dia seguinte, ela continuou em observação, até que, de noite, entrou naturalmente em trabalho de parto. Dirigiram-se, então, ao Amparo Maternal – maternidade paulistana que atende pelo SUS e privilegia o parto normal humanizado. Entrando na 41ª semana, já não poderiam ser atendidos nas casas de parto da cidade.
Depois de 20 horas, junto ao companheiro, alternando-se entre a cama e os banhos de chuveiro e banheira, para aliviar as dores das contrações, e com uma breve aplicação de ocitocina na fase final do processo, com autorização da mãe, ela deu à luz, pelas mãos de uma enfermeira obstetriz, um menino de 4,15 quilos e 53 centímetros, em perfeito estado de saúde. Recebeu o nome de Tiê Moncau Pimentel.
Em memória de José Eduardo Cajado Moncau, o Peninha.
*Joana Moncau é jornalista, cientista social e educadora. Spensy Pimentel é jornalista e doutorando em antropologia pela Universidade de São Paulo (USP).