Direitos humanos, religião e comunicação social no Brasil
Os direitos humanos são uma linguagem com a qual, se não podemos humanizar o mundo, ainda podemos, ao menos e mesmo que raramente, responder a práticas desumanas e abrir espaço para novas ordenações
Os direitos humanos podem ser muitas coisas no Brasil. Em nome deles, a Comissão dos Direitos da Câmara dos Deputados denunciou o presidente Jair Bolsonaro à Alta Comissária da ONU para Direitos Humanos e relatores na organização por liderar “um projeto autoritário em curso”. Tomando-os como contraprovas invertidas, o vice-presidente Hamilton Mourão usou os direitos humanos em uma entrevista concedida em outubro à Deutsche Welle para sustentar a honradez do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, condenado por tribunais brasileiros pela prática de tortura durante a ditadura militar. Segundo o vice-presidente, o coronel seria digno por sempre ter respeitado os direitos humanos dos seus subordinados.
O que podemos entender por direitos humanos e quais as formas de abordá-los? Podemos olhar para eles desde uma ótica formal. Desta ótica, os direitos humanos são normas de direito internacional para cuja elaboração, efetivação e implementação foram instituídos procedimentos e órgãos em escalas nacional (como a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados), regional (como a Corte Interamericana) e global (como o Conselho de Direitos Humanos). Instituições regionais e globais em geral são distantes do Brasil, e é o trabalho de jornalistas que as torna presentes em nosso cotidiano. É pelas páginas (cada vez mais as eletrônicas) de veículos de comunicação que o Conselho, com sede em Genebra, o Comitê de Direitos Humanos, com sede em Nova Iorque, a Comissão e Corte Interamericanas, com sede em Washington, D.C., ganham espaço entre os brasileiros e tornam-se parte de como representamos o mundo para nós mesmos em imaginação.
Mas, se podemos falar de direitos humanos em páginas de jornais e sites, é porque eles transbordaram as instituições e todos temos deles alguma ideia, por vaga que seja. Houve tempo em que esses direitos estavam associados, primordialmente, à constituição de ordens democráticas, sem relação com uma ordem internacional, e houve tempo em que sua vida internacional estava circunscrita a círculos diplomáticos e instituições judiciais. Há uma historiografia dedicada a analisar como eles transbordaram tais limites, mas não é o caso de recuperá-la detalhadamente aqui. O que nos interessa nessa história é o entendimento de que a certa altura, em meados dos anos 1970, os direitos humanos prevaleceram sobre outras utopias, como o nacionalismo, o socialismo, o comunismo, e se incorporaram ao vernáculo em escala global, passando a ser usados como enquadramentos interpretativos, ou quadros de significados, para denunciar o injusto e demandar o justo.
Em pesquisa em andamento, temos tentado mostrar que os usos dos direitos humanos compreendem a produção de redes de encontros e confrontos, alianças contingentes e sujeitos políticos modelados a partir dessas relações. Dessa perspectiva, estamos propondo pensar direitos humanos como uma linguagem dentro da qual controvérsias se configuram e disputas são travadas em performances públicas.
Essa maneira de abordar os direitos humanos nos parece pertinente diante uma novidade histórica ainda pouco percebida no Brasil: a centralidade política, em diferentes países, inclusive aqui, de uma rede de ativistas cristãos conservadores, que nas arenas internacionais inclui organizações islâmicas e que age para a disputa dos direitos humanos, mais do que para a sua contestação, mais do que contra eles. Desse fenômeno resultam novos atores, novos discursos, novas práticas e a ascensão de uma interpretação nova desses direitos. Isto tudo implica também novas agendas para os direitos humanos.
Novas em relação a quê? Em estudo do início dos anos 2000, Doris Buss e Didi Herman já sugeriam que uma rede que elas denominaram “direita cristã onusiana” tinha se articulado transnacionalmente por ocasião das Conferências da ONU, com destaque para a do Cairo, em 1994, e a de Pequim, em 1995. Essa rede encontrava na Santa Sé um ponto de convergência e uma instância de produção de discursos dentro das instituições, com destaque para as questões relacionadas a direitos reprodutivos e sexuais.
Os anos 1990 e 2000 assistiram, contudo, a dois processos importantes: (a) a politização em escala global de aspectos antes considerados da vida privada e social; (b) a prevalência de uma leitura pluralista dos direitos humanos, que imprimiu neles uma tonalidade contramajoritária e amplamente contestatória. Uma ilustração disso é a gradativa transformação de minorias sexuais em sujeitos de direitos, pela ação de indivíduos (ativistas ou não) e movimentos que acionaram canais institucionais, mas também pela atuação de cortes nacionais e internacionais que passaram a interpelar mais recorrente e abrangentemente aparatos estatais acerca da forma como as diferenças de gênero e orientação sexual eram geridas.
Esses dois processos consolidaram, a seu turno, (a) um descolamento da moralidade dos direitos humanos em relação ao Cristianismo, que, como Samuel Moyn mostra, tem papel importante em sua construção no pós-Segunda Guerra e (b) um estreitamento da associação entre direitos humanos e ‘progressismo antitotalitário’, a qual é interessante se considerarmos, de um lado, que a inscrição desses direitos no direito internacional é, ao menos em parte, uma resposta ao secularismo estatal de Estados socialistas e comunistas e, de outro, que diferentes grupos de esquerda atuantes contra as ditaduras na América Latina encontraram neles uma plataforma a partir da qual dar sentido universal e civilizatório à sua luta.
O que nos parece novo, ao final, é que uma rede cristã conservadora articulada com conexões transnacionais se deslocou para o centro da política em diferentes locais e tem construído problemas públicos na linguagem dos direitos humanos. Como dissemos no início deste artigo, a fala do vice-presidente em entrevista recente é reveladora dessa novidade, pois a ideia de que direitos humanos eram ‘privilégios de bandidos’ era parte da retórica da ditadura militar em resposta às ações de seus detratores. Então, se de um lado a contestação desde fora se reconfigurou, assumindo a forma “direitos humanos para humanos direitos”, de outro os direitos humanos se tornaram uma linguagem preferencial da política, a ponto de Ustra ser reclamado publicamente como um defensor seu.
Tomar os direitos humanos nesses termos implica que os atores disputem seus sentidos e que nós olhemos para a política na língua. No caso do Brasil, essas disputas se dão em um contexto marcado por maior pluralidade religiosa do que aquele em que vimos a inscrição internacional dos direitos humanos nas décadas precedentes e por novos meios de comunicação à disposição dos atores. Ou seja, o processo acontece enquanto há menos Igreja Católica e mais rede social. Se esse entendimento é válido, pensamos ser preciso observar, então, as formas de ação desses atores políticos, que são variadas e dentre as quais destacamos os usos das liberdades presentes na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na Constituição Federal.
Quando lemos a Declaração Universal, percebemos que a liberdade religiosa está inscrita no mesmo artigo da liberdade de pensamento e da liberdade de consciência. Como argumenta o historiador sueco Linde Lindkvist, essa sua inscrição – na linha da liberdade de pensamento e de consciência – tem sentido se tomarmos a religião como algo que é da dimensão da interioridade e do engajamento individual. O indivíduo da Declaração manifesta a sua religião, mas a faz sozinho. Não espanta, portanto, que a liberdade de opinião e de expressão, ambas do domínio das trocas, apareçam na sequência, em outro artigo da Declaração.
Essa construção nos interessa porque os novos meios de comunicação, bem como os novos personagens sociais que se publicizam por meio delas, parecem ampliar a própria ideia do que são práticas religiosas, ou, como temos pensado em nossa pesquisa, do fazer religião, que se torna uma prática mais e mais pública e comunicacional. Essa relação também lança luzes sobre uma lógica subjacente à reivindicação daquilo que é descrito como “direito de discriminar”. Se existem fórmulas jurídicas para conter essa prática a partir da postulação relativamente consensual dos limites da liberdade de opinião e expressão, religiões públicas e seus líderes passariam a reivindicar essa prerrogativa ao exercer sua liberdade religiosa, de pensamento e consciência, agora praticada como ato público.
Como essa fabricação do religioso tem se dado no Brasil? Queremos destacar duas formas particulares de ação do ativismo cristão conservador no Brasil. Uma é a aposta na configuração de controvérsias. Essa aposta se traduz em um investimento em enquadramentos e performances visando a produção de engajamentos discursivos, que, favoráveis ou contrários, ampliam a circulação de seus discursos. Não raro controvérsias compreendem processos de nomeação, a atribuição de nomes a fenômenos no intuito de ou torná-lo visível, ou mudar a percepção que se tem dele. Outra das suas formas privilegiadas de ação, como já foi anunciado acima, são usos da liberdade de opinião em defesa da liberdade religiosa, que lhes têm possibilitado justificar publicamente suas posições. Podemos pensar aqui, apenas para ilustrar, nas recentes controvérsias sobre o especial da Natal do Porta dos Fundos e da interrupção da gravidez de uma menina de 10 anos vítima de estupro. Em ambos se pretende delimitar a liberdade por códigos religiosos.
É nesta última forma de ação que talvez fique mais claro que tais atores aplicam direitos humanos e, para aplicá-los, interpretam-nos de formas concorrentes com a interpretação de instâncias superiores do Judiciário nacional e de cortes internacionais. Em linhas gerais, sua interpretação é informada por um ideal de vida boa inscrito em um código que se postula ter validade universal por ser conforme à natureza, da qual se inferem princípios morais. A ideia é que a interpretação da ordem jurídica seja informada por esses princípios, contribuindo para a produção de uma ordem social que espelhe a natural. A prática dos atores nos leva a pensar que há uma espécie de neonaturalismo em voga, isto é, uma reapropriação do direito natural e sua doutrina, que os inspira e que, ao mesmo tempo, eles forjam. Isso significa que os atores recolocam em circulação a ideia de direito natural, o que compreende formas específicas (a) de relacionar direito, moral e natural, com a atribuição de sentido ao natural, a moralização da natureza e a naturalização do social, e (b) de relacionar a regulação das relações entre Estados e entre indivíduos dentro deles, com a construção de uma totalidade a partir da hierarquia superior da ordem natural, em contraposição à fragmentação e às articulações contingentes entre nacional e internacional.
Essa interpretação dos direitos humanos, a nosso ver, é não-pluralista e antipluralista, ou desloca o pluralismo como princípio hermenêutico e tensiona o pluralismo como valor. Trata-se de um problema, entre outras coisas, porque o humano é um ser social: o status de humano encerra uma dimensão compartilhada e, por conseguinte, comunicacional, isto é, mutável e plural. Em outras palavras, ele depende tanto da possibilidade de entendimento quanto da liberdade de desentender-se, considerada a polissemia do termo.
Temos trabalhado com a ideia de que, entre as muitas coisas que os direitos humanos são, eles são um um aviso de perigo. É verdade que esse aviso frequentemente não encontra ressonância na sociedade brasileira, em parte por força de acomodações que temos sido hábeis em produzir e que obstam a prevalência da igualdade como forma de gestão das diferenças. Mas pensamos que os direitos humanos são uma linguagem com a qual, se não podemos humanizar o mundo, ainda podemos, ao menos e mesmo que raramente, responder a práticas desumanas e abrir espaço para novas ordenações. Religiosos conservadores na política despontam como intérpretes seus, dispostos a disputar palmo a palmo consensos que nos pareciam bem estabelecidos.