Disparidades raciais em um país onde negros morrem diariamente
A população negra totaliza 84,1% das vítimas das mais de 6 mil mortes decorrentes de intervenção policial ocorridas em 2021. Os números expõem a desumanização de negras e negros e, ao mesmo tempo, revelam uma agenda de políticas públicas urgentes a ser enfrentada nas diferentes instâncias federativas
Os massacres, os desaparecimentos forçados e as execuções extrajudiciais com a participação de agentes das forças de segurança representam a expressão mais trágica de um país autoritário e desigual. As recentes chacinas no Rio de Janeiro, o caso do homem executado numa viatura da Polícia Rodoviária Federal em Sergipe ou os vídeos cotidianos de abusos policiais, que diariamente circulam nas redes sociais expõe a face cruel de uma sociedade que naturalizou a violência e que jamais acertou as contas com o seu passado de terror e brutalidade estatal.
Os dados divulgados em julho de 2022 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública reiteram enfaticamente este déficit democrático do Brasil e nos desafiam a elaborar saídas para esta que é, sem dúvida, a mais explícita de todas as nossas contradições sociais. De acordo com a pesquisa, entre 2013 e 2021 mais de 43 mil pessoas foram mortas pela polícia no Brasil.
Os dados revelam ainda que, de 2020 para 2021, estas mortes caíram 4,9%, o que representa a primeira redução da taxa nacional nos últimos 10 anos. Porém, mesmo que esta informação seja promissora, é preciso seguir pensando sobre toda a complexidade do problema com vistas a identificar as nuances, as variações e contorno racial deste fenômeno.
Segundo o mesmo levantamento, a população negra totaliza 84,1% das vítimas das mais de 6 mil mortes decorrentes de intervenção policial ocorridas em 2021. São dados que expõem a desumanização de negras e negros e, ao mesmo tempo, revelam uma agenda de políticas públicas urgentes a ser enfrentada nas diferentes instâncias federativas.
Mesmo quando a taxa de mortes decorrentes de intervenção policial de pessoas brancas caiu 30,9%, houve um incremento de 5,8% em relação a vítimas negras, revelando o tamanho da desigual distribuição desta violência. Ou seja, a aparente queda nos casos de letalidade policial não representou, sob nenhum aspecto, mais proteção ou mais segurança para as pessoas negras diante de episódios de abusos ou de violência policial.
O racismo estrutura relações de poder e dirige a violência do Estado na direção de jovens, homens, negros. As chacinas durante supostas operações policiais, bem como a atuação de grupos de extermínios e milícias, com a participação de agentes das forças de segurança, concentram-se em territórios de maioria negra e dirigem-se especialmente contra esta parcela da população sublinhando duplamente a crueldade dos dados apresentados.
Se por um lado a violência praticada com a participação de agentes públicos, em si, expressa a triste situação de deterioração das instituições e de erosão da democracia, por outro ladro, a distribuição racial com que se realizam estas violências expõe o caráter seletivo com que o Estado e os grupos armados paramilitares dirigem-se a este segmento mais excluído da população.
É como se os ganhos das políticas de segurança ou das tentativas de controle da ação policial fossem sendo corroídas pelo racismo de modo que as lutas da sociedade em democratizar e dar transparência ao trabalho das forças de segurança fossem sendo minadas pela discriminação e pela seletividade policial. Vivemos como um país cindido entre aqueles que podem viver e os outros a quem a sentença de morte está escrita a cada esquina e enfrentar este problema é a condição necessária para falarmos seriamente sobre justiça e democracia entre nós.
Felipe da Silva Freitas é doutor em Direito pela Universidade de Brasília, professor do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) e coordenador de projetos da Rede Liberdade.
Bruna Santos é mestranda em Direitos Humanos pela Central European Univesity e advogada da Rede Liberdade