Dissecando a "tolerância zero"
A chamada “tolerância zero”, vulgata da segurança que se apresenta como um discurso científico que propõe implantar uma ação policial “racional”, não passa de uma fraude, decantada por políticos de esquerda e direita pelo mundo inteiroLoïc Wacquant
Um pânico moral espalha-se através da Europa em torno da “violência urbana” e da “delinqüência dos jovens”, que ameaçariam a integridade das sociedades desenvolvidas e seriam punidos com penas severas. A encenação política da “segurança”, atualmente divulgada em sua estrita acepção criminal – desde que o próprio “crime” foi restrito apenas à delinqüência de rua, ou seja, em última instância, às torpezas das classes populares -, tem como função permitir aos dirigentes atuais, ou futuros, reafirmar a capacidade de ação do Estado no momento em que pregam unanimemente sua impotência em matéria econômica e social1. A canonização do “direito à segurança” é o correlato do abandono do direito ao trabalho, inscrito na Constituição, mas vilipendiado pela continuidade do desemprego em massa e pelo aumento dos assalariados em regime precário. Estes negam qualquer segurança de vida aos que a ele estão condenados e que são a cada dia mais numerosos.
Nos canais de televisão mais importantes, o jornal das 20 horas transformou-se em crônica das ocorrências policiais que subitamente são muito numerosas e ameaçam todo mundo: aqui, é o caso de um professor primário pedófilo; ali, uma criança assassinada; mais adiante, um ônibus urbano apedrejado. Os programas especiais se multiplicam no horário nobre, como o “Isto pode acontecer com você” de 13 de fevereiro último na TF1 que, no item da “violência escolar”, conta a história de um garoto que se suicidou depois de um roubo à mão armada no pátio de uma escola, caso absolutamente aberrante, mas rapidamente usado como paradigma, em função dos índices de audiência. As revistas semanais estão repletas de reportagens que revelam os “verdadeiros números”, os “fatos ocultos” e outros “relatórios explosivos” sobre a delinqüência, em que o sensacionalismo compete com o moralismo, sem esquecer de estabelecer, periodicamente, a assustadora cartografia de “bairros proibidos” e enumerar “conselhos práticos” indispensáveis para enfrentar os onipresentes e multiformes perigos decretados2.
A ordem social pela força
Por toda parte é repetido o pungente refrão sobre a inércia das autoridades, a imperícia da justiça e a indignação apavorada ou exaltada das pessoas comuns. O governo multiplica as medidas ostensivas de repressão – das quais mesmo seus membros menos argutos não ignoram a total ineficácia sobre os problemas de que deveriam tratar. Um exemplo é a compra excessivamente dispendiosa de um colete à prova de balas para cada policial francês, quando 97% deles nunca chega a entrar em contato com qualquer bandido armado durante toda a sua carreira e o número de policiais mortos em serviço tenha diminuído pela metade em dez anos.
O noticiário de TV transformou-se em crônica de ocorrências policiais: um professor pedófilo; uma criança assassinada; um ônibus apedrejado
A oposição de direita não fica atrás e promete sobre todos os aspectos fazer a mesma coisa, porém mais depressa, mais intensamente e mais energicamente. Com exceção dos representantes da extrema-esquerda e dos Verdes, todos os candidatos a cargos eletivos promoveram a “segurança” ao grau de prioridade absoluta da atuação pública. E propõem apressadamente as mesmas soluções primitivas e punitivas: intensificação da atividade policial, concentração sobre os “jovens” (de origem operária e imigrante, claro), os “reincidentes” e os “focos” de criminosos da “periferia” (o que exclui comodamente a criminalidade do “colarinho branco” ou institucional), aceleração dos procedimentos judiciários, endurecimento das penas, extensão do recurso à detenção – inclusive para menores de idade – quando está amplamente comprovado que a reclusão é eminentemente geradora de criminalidade. Finalmente, para permitir tudo isso, reivindicam o aumento sem limites dos meios destinados à manutenção da ordem social pela força. Até o chefe de Estado3, delinqüente por várias vezes reincidente e sem qualquer vestígio de pudor, ousa pedir “tolerância zero” contra infrações, ainda que leves, nos bairros desfavorecidos.
Política made in USA
Essa nova figura político-discursiva da “segurança” que, em todos os grandes países da Europa, reconcilia a direita mais reacionária com a esquerda governamental retira o essencial de sua força de imposição dessas duas potências simbólicas contemporâneas que são a ciência e os Estados Unidos da América do Norte – e melhor ainda, do cruzamento de ambas: a ciência norte-americana aplicada à realidade norte-americana.
Da mesma forma que a visão neoliberal em economia se baseia em modelos de equilíbrio dinâmico construídos pela ciência econômica ortodoxa made in USA, país que detém um quase monopólio dos prêmios Nobel nessa disciplina, a atual vulgata da segurança apresenta-se sob a aparência de um discurso científico que quer pôr a “teoria criminológica” mais avançada a serviço de uma política decididamente “racional” e, portanto, ideologicamente neutra e em última instância indiscutível, uma vez que é orientada por puras considerações de eficácia e eficiência. Assim como a política de submissão ao mercado, ela provém diretamente dos Estados Unidos, transformados em sociedade-farol da humanidade, a única da história dotada de meios materiais e simbólicos capazes de converter suas particularidades históricas em ideal trans-histórico, e de fazê-lo acontecer, transformando a realidade à sua imagem por toda parte4. Foi em Nova York, por exemplo, que os dirigentes políticos franceses (mas também britânicos, italianos, espanhóis e alemães), de direita como de esquerda, foram em peregrinação nestes últimos anos para marcar sua determinação recobrada de vencer a criminalidade de rua e para se iniciarem, com esse objetivo, nos conceitos e medidas implementados pelas autoridades norte-americanas5. Apoiado na ciência e na política do crime control. testadas na América do Norte, o pensamento único sobre segurança apresenta-se sob a forma de um encadeamento de “mitos científicos” dos quais se torna urgente examinar a trama e dissecar as motivações.
O refrão repressivo catastrofista
A imprensa sensacionalista divulga, periodicamente, mapas de “bairros proibidos” e enumera “conselhos práticos” para enfrentar perigos onipresentes
1. Uma América do Norte “supercriminosa” hoje pacificada e superada pela França: segundo esse primeiro mito, os Estados Unidos estavam assolados, até há pouco tempo, por taxas astronômicas de criminalidade, mas teriam, graças a suas inovações policiais e penais, “resolvido” a equação do crime, a exemplo de Nova York. Ao mesmo tempo, as sociedades da velha Europa, por negligência, se teriam deixado apanhar pela espiral da “violência urbana”. Foi assim que Alain Bauer – diretor-presidente da Alain Bauer Associates, empresa de “consultoria em segurança” e, além de assessor de ministros socialistas, grão-mestre do Grande Oriente da França – anunciou com estardalhaço que, depois de fazer o “cruzamento histórico das curvas” entre os dois países em 2000, “a França é mais geradora de crimes que os Estados Unidos” 6.
Difundida pela mídia institucional, essa “revelação” demonstra que, em matéria de insegurança, pode-se dizer tudo e qualquer coisa e ser levado a sério, desde que se entoe o refrão repressivo catastrofista da moda. Na realidade, foi estabelecido há uns dez anos, graças à International Crime Victimization Survey (ICVS) 7, que os Estados Unidos têm taxas de criminalidade absolutamente comuns, quando se medem em função da incidência da “vitimação” – e não a partir das estatísticas da criminalidade declarada às autoridades, cujos especialistas sabem que elas medem melhor a atividade da polícia que a dos delinqüentes. Com exceção, notável e explicável, dos homicídios, os índices norte-americanos são há muito tempo comparáveis e mesmo geralmente inferiores aos de muitas outras sociedades desenvolvidas. Em 1995, por exemplo, os Estados Unidos estavam em segundo lugar – depois da Grã-Bretanha – em roubos de carros e em agressões e ferimentos; em terceiro lugar, bem atrás do Canadá, em matéria de roubos em residências; em sétimo lugar no que diz respeito a atentados sexuais; e em último lugar na incidência de roubos simples, com um índice inferior à metade do índice da Holanda.
Uma bobagem ideológica
Repete-se incessantemente o refrão sobre a inércia das autoridades, a imperícia da justiça e a indignação apavorada ou exaltada das pessoas comuns
No entanto, com dez assassinatos por 100 mil habitantes no início da década passada, e seis por 100 mil hoje, seu índice de homicídios continua seis vezes superior ao da França, da Alemanha e da Grã-Bretanha. Os Estados Unidos, portanto, têm um problema específico de violência mortal por arma de fogo, fortemente concentrado nos guetos urbanos. Essa violência está ligada, por um lado, à posse de uns 200 milhões de fuzis e pistolas (quatro milhões de norte-americanos portam armas normalmente), e por outro lado ao enraizamento da economia ilegal de rua nos bairros desfavorecidos das metrópoles.
O decréscimo da criminalidade violenta na França, e mais amplamente na Europa, não aproxima mais esses países do “modelo norte-americano” dominado pela violência letal. A taxa de homicídios na França caiu um quinto em dez anos, passando de 4,5 por 100 mil habitantes em 1990 para 3,6 em 2000. Se as agressões e ferimentos voluntários aumentaram significativamente, essa violência, longe de atingir “todo mundo e em toda parte”, permanece concentrada no meio da população jovem de origem operária e é geralmente leve: na metade dos casos, as “agressões” apresentadas às autoridades são exclusivamente verbais; só provocam hospitalização ou dispensa do trabalho num caso em vinte8.
Portanto, a afirmação de que a América do Norte era “supercriminosa” e não o é mais a partir do advento da “tolerância zero”, enquanto a França o passa a ser (está subentendido: porque não soube importar com urgência essa medida), não tem como origem a tese criminológica, mas a bobagem ideológica.
O mito da diminuição da criminalidade
2. Em Nova York, como em qualquer outro lugar, foi a polícia que fez desaparecer a criminalidade. Um relatório recente do Manhattan Institute, centro nevrálgico da campanha mundial de punição da miséria, afirma enfaticamente esse mito: a baixa contínua da estatística criminal nos Estados Unidos seria atribuída à ação das forças da ordem, uma vez que estas foram liberadas, como em Nova York, dos tabus ideológicos e das imposições jurídicas que as limitavam9. Mas também aqui, os fatos são insistentes: todos os estudos científicos concluem que a polícia não desempenhou o papel motor e prioritário que os partidários da gestão penal da insegurança social lhe atribuem – longe disso.
A primeira prova é que a baixa da violência criminal em Nova York ocorreu três anos antes da chegada ao poder de Giuliani, em fins de 1993, e continuou diminuindo depois de sua posse na prefeitura. Melhor ainda, a taxa de homicídios cometidos sem arma de fogo diminui regularmente desde 1979. Só os homicídios por bala, cujo número crescera muito, entre 1985 e 1990, devido à difusão do comércio de crack, caíram a partir de 1990. Nenhuma dessas duas curvas apresenta inflexão especial na gestão de Giuliani10.
Emprego diminui a violência
Com exceção da extrema-esquerda e dos Verdes, todos os candidatos a cargos eletivos promoveram a “segurança” a prioridade absoluta da atuação pública
A segunda prova é que o refluxo da criminalidade violenta não é menos nítido nas cidades que não aplicam a chamada política de “tolerância zero”, inclusive as que, optando por uma abordagem oposta, se empenham em estabelecer relação contínuas com os habitantes de forma a prevenir os atentados, em vez de tratá-los com a repressão penal excessiva. Em São Francisco, uma política de orientação dos jovens delinqüentes para programas de formação, de aconselhamento e de tratamento social e médico permitiu diminuir o número de ingressos em casas de detenção em mais da metade, reduzindo a criminalidade violenta em 33% entre 1995 e 1999 (contra 26% em Nova York, onde o volume de admissões na detenção aumentou um terço nesse período). A terceira prova é que Nova York já havia posto em prática, de 1984 a 1987, uma política de manutenção da ordem similar àquela adotada a partir de 1993, tendo como resultado um aumento significativo da violência criminal… A estratégia policial adotada por Nova York na década de 90, portanto, não é necessária nem suficiente para explicar a queda da criminalidade nessa cidade.
Seis fatores, independentes da atividade da polícia e da justiça, combinaram-se para reduzir significativamente a incidência de crimes violentos nas metrópoles norte-americanas. Inicialmente, um crescimento econômico sem precedentes por sua amplitude e duração deu trabalho a milhões de jovens até então condenados à inatividade ou ao business, inclusive nos guetos e bairros em que o desemprego regrediu nitidamente, embora a maioria desses empregos continue sendo precária e mal remunerada.
Depois, o número de jovens (principalmente de 18 a 24 anos, os mais inclinados a infrações violentas) baixou, o que se reflete quase mecanicamente por um refluxo da criminalidade de rua. Por outro lado, o comércio de pasta do crack nos bairros desfavorecidos estruturou-se e estabilizou-se; os usuários passaram a consumir outros entorpecentes (maconha, heroína e anfetaminas), cujo tráfico gera menos violência porque opera através de redes de conhecimentos, mais do que por trocas anônimas em lugares públicos11.
O discurso sedutor da “responsabilidade”
Até Chirac, delinqüente por várias vezes reincidente e sem qualquer pudor, ousa pedir “tolerância zero” contra infrações nos bairros mais pobres
Além dessas três causas econômicas e demográficas, um efeito de aprendizagem afastou os jovens nascidos depois de 1975 das drogas pesadas e do estilo de vida a elas associado, por se recusarem a sucumbir ao destino macabro que viram ter seus irmãos mais velhos, primos e amigos: toxicomania incontrolável, reclusão criminal, morte violenta e prematura. Em seguida, as igrejas, escolas, associações diversas, clubes de bairro, coletivos de mães de crianças vítimas de matanças de rua se mobilizaram nas zonas de exclusão e exerceram, por onde ainda podiam, sua capacidade de controle social informal. Suas campanhas de sensibilização e de prevenção acompanharam e reforçaram o movimento de recuo dos jovens da economia predatória da rua. Essa dimensão é totalmente ocultada pelo discurso dominante sobre a queda da criminalidade nos Estados Unidos. Finalmente, as taxas de violência criminal divulgadas pelos Estados Unidos no começo da década de 90 eram anormalmente elevadas e tinham, portanto, todas as chances de se encaminhar para uma baixa, ainda mais porque a combinação dos fatores que a fizeram saltar para fora da norma (tal era a progressão inicial do tráfico do crack) não podia perdurar.
A conjunção desses seis fatores é suficiente para explicar o declínio da criminalidade violenta nos Estados Unidos. Mas o tempo longo e lento da análise científica não é esse, rápido e irregular, da política e da mídia. A máquina de propaganda de Giuliani soube aproveitar esse atraso natural da investigação criminológica para preencher o vazio de explicação com um discurso pré-fabricado sobre a eficiência da repressão policial. Um discurso sedutor já que, escorado pelo tropo da “responsabilidade”, faz repercutir a temática individualista e utilitarista trazida pela ideologia neoliberal atualmente hegemônica. Mas admitamos, para a necessidade da demonstração, que a polícia tenha tido efetivamente um impacto significativo sobre a criminalidade em Nova York. Resta então a questão de saber como ela teria produzido esse resultado.
Recursos e novas tecnologias
3. Por trás da “tolerância zero”, a reorganização burocrática. Segundo a mitologia planetária difundida pelos think tanks neoliberais e suas correias de transmissão midiáticas e políticas, a polícia nova-iorquina teria abatido a hidra criminal aplicando uma política especial – chamada de “tolerância zero” – que se empenha em perseguir sem trégua as menores infrações cometidas na via pública. Desde 1993, por exemplo, qualquer pessoa que se encontrasse mendigando ou vagando pela cidade, ouvindo o rádio do carro muito alto, sujando ou “grafitando” a via pública, poderia ser automaticamente detida e diretamente enviada para trás das grades: “Acabaram-se os simples controles na delegacia. Se você urina na rua, vai preso. Decidimos consertar as “vidraças quebradas” [ou seja, as mínimas marcas externas de desordem] e impedir quem quer que seja de quebrá-las de novo.” Essa estratégia, afirma seu chefe, William Bratton, “funciona nos Estados Unidos” e funcionaria também “em qualquer cidade do mundo12.”
Assim como a política de submissão ao mercado, a figura político-discursiva da segurança provém diretamente dos EUA, sociedade-farol da humanidade
Esse slogan policial da “tolerância zero” fez a volta ao mundo, mas é uma noção vaga que oculta, pelo próprio fato de misturá-las, quatro transformações concomitantes – mas distintas – da manutenção da ordem pública. A polícia de Nova York inicialmente se empenhou numa vasta reestruturação burocrática: descentralização dos serviços, diminuição dos níveis hierárquicos, rejuvenescimento dos efetivos, indexação da remuneração e da progressão dos delegados de bairro de acordo com os “números” que produzem. Em seguida, seus recursos aumentaram consideravelmente: os efetivos policiais passaram de 27 mil, em 1993, para 41 mil menos de dez anos depois, às custas de um aumento do orçamento da polícia, enquanto, ao mesmo tempo, o orçamento dos serviços sociais era cortado. A polícia procedeu também a um desenvolvimento de novas tecnologias informáticas, entre as quais o sistema Compstat, que permite seguir em tempo real a evolução de delitos e crimes, a fim de redistribuir “em fluxo tenso” os efetivos policiais nos setores atingidos. Finalmente, foram revistos os procedimentos do conjunto dos serviços de acordo com os esquemas dos gabinetes de consultoria em “engenharia empresarial” e foram implementadas ações precisas contra o porte de armas, o tráfico de entorpecentes, a violência conjugal, as infrações do código de trânsito etc.
A polícia-empresa em ação
No total, uma burocracia considerada pouco inspirada, passiva, corrompida e que tinha adotado o hábito de esperar que as vítimas do crime apresentassem a queixa para se contentar em registrá-la, transformou-se em verdadeira “empresa” de “segurança” zelosa, dotada de recursos humanos e materiais colossais e de uma atitude ofensiva. Se essa mutação burocrática teve um impacto significativo sobre a criminalidade – o que ninguém chegou a demonstrar -, esse impacto, no entanto, não é motivado pela tática adotada pela polícia.
4. Da “vidraça quebrada” aos “testículos despedaçados”. O último mito planetário sobre a segurança proveniente dos Estados Unidos é a idéia segundo a qual a política de “tolerância zero”, considerada responsável pelo sucesso policial de Nova York, se basearia numa teoria criminológica cientificamente comprovada, a famosa “teoria da vidraça quebrada”. Ela postula que a repressão imediata e severa das menores infrações na via pública detém o desencadeamento de grandes atentados criminosas (r)estabelecendo nas ruas um clima sadio de ordem – prender os ladrões de galinhas permitiria paralisar potenciais bandidos maiores13. Ora, essa pretensa teoria é tudo menos uma teoria científica, já que foi formulada, há vinte anos, pelo cientista político conservador James Q. Wilson e seu comparsa George Kelling sob a forma de um texto de nove páginas – publicado não numa revista de criminologia, submetida à avaliação de pesquisadores competentes, mas numa revista semanal cultural de grande circulação. E nunca recebeu, desde então, o menor indício de prova empírica.
Verniz racional para a discriminação
Apoiado na ciência e na política do crime control, o pensamento único sobre segurança apresenta-se na forma de um encadeamento de “mitos científicos”
Seus adeptos citam sempre, em sua defesa, um livro do cientista político Wesley Skogan, Disorder and Decline, publicado em 1990, que estuda as causas e os remédios para os deslocamentos sociais em quarenta bairros de seis metrópoles norte-americanas. Mas esse livro demonstra, na verdade, que é a pobreza e a segregação racial – e não o clima de “desordem urbana” – que são as principais determinantes da taxa de criminalidade na cidade. Por outro lado, as conclusões estatísticas foram invalidadas em razão do acúmulo dos erros de avaliação e dos dados incompletos. Finalmente, seu próprio autor dá à famosa “vidraça quebrada” o status de simples “metáfora” 14.
Há coisas ainda mais esquisitas: a adoção do assédio policial permanente da população pobre de Nova York não tem, segundo declarações dos próprios inventores, ligação alguma com qualquer teoria criminológica. A famosa “vidraça quebrada” só foi descoberta e invocada pelos oficiais nova-iorquinos a posteriori, a fim de fantasiar com adornos racionais medidas populares junto ao eleitorado (em sua maioria branco e burguês), mas discriminatórias tanto em princípio como na aplicação, dando assim um aspecto inovador ao que era apenas um retorno a uma velha receita policial. Qualificado por Giuliani de “gênio da luta contra o crime”, Jack Maple, que foi o iniciador dessa política no metrô antes de estendê-la à rua, diz, aliás, sem subterfúgios, em sua autobiografia Crime Fighter, publicada em 1999: “A teoria do vidro quebrado é apenas uma extensão do que tínhamos o hábito de chamar a ?teoria dos testículos despedaçados? (breaking balls theory)”. Originária da sabedoria policial comum, que estipula que se os policiais perseguirem com insistência um criminoso notório por pequenos crimes, ele acabará, vencido pelo cansaço, por abandonar o bairro para ir cometer seus delitos em outro lugar.
Enxurrada de bobagens transatlânticas
O mestre de obras da política policial de Giuliani debocha abertamente dos que acreditam na existência de uma “ligação mística entre os incidentes menores provenientes da desordem e os atentados criminosos mais graves”. A idéia de que a polícia poderia fazer baixar a criminalidade violenta combatendo incivilidades parece-lhe “patética” e ele dá uma grande quantidade de exemplos contrários tirados de sua experiência profissional. E compara o prefeito que adotasse essa tática policial a um médico que “fizesse um lifting num canceroso”, ou a alguém que fizesse caça submarina e pegasse “golfinhos em vez de tubarões”.
Considerada pouco inspirada, passiva e corrompida, a polícia de Nova York transformou-se numa “empresa” de “segurança” dotada de recursos colossais
Jack Maple provavelmente ficaria muito espantado se lesse a “Ficha nº 31” redigida pelos “especialistas” franceses do Instituto de Estudos Superiores da Segurança Interna (IHESI), organização de “pesquisa” do Ministério do Interior. Destinada a orientar os prefeitos franceses na redação de “contratos locais de segurança”, essa ficha indica: “Pesquisas norte-americanas mostraram que a proliferação de incivilidades é apenas o prenúncio para um aumento generalizado da delinqüência. As primeiras condutas irregulares, por menores que pareçam, pelo pouco que se generalizem, denunciam um bairro, centralizam sobre ele outros desvios, são o indício do fim da paz social na via cotidiana. A espiral do declínio se inicia, a violência se instala e, com ela, todas as formas de delinqüência: agressões, roubos, tráfico de entorpecentes etc. (cf. J. Wilson e T. [sic] Kelling, A teoria da vidraça quebrada). Foi com base nas constatações dessas pesquisas que o chefe de polícia de Nova York estabeleceu uma estratégia de luta chamada de ?tolerância zero? contra os provocadores de incivilidades, o que parece ter sido um dos fatores da maior redução da criminalidade nessa cidade15.”
É difícil conter um sentimento de incredulidade diante de uma tal enxurrada de bobagens transatlânticas. Pois a tática do assédio policial aos pobres implementada por Nova York é só a aplicação plenamente assumida das “teorias” autóctones baseadas no bom senso prático dos policiais. E esse bom senso não faz, no caso, grande sentido.
Justificativa para “limpeza de classe”
Orientada pelos dois melhores especialistas norte-americanos, uma avaliação rigorosa do conjunto dos trabalhos científicos destinados a testar a eficiência da polícia em matéria de luta contra o crime concluiu que nem o número de policiais envolvidos na batalha, nem as mudanças internas de organização e de cultura das forças da ordem (como a introdução da polícia comunitária), nem mesmo as estratégias de levantamento dos locais e dos grupos com maior propensão para o crime (com “exceção possível e parcial” dos programas visando ao tráfico de rua de entorpecentes) tiveram por si só impacto sobre a evolução das infrações. E, como última ironia, os autores designam o dispositivo “Compstat” e a “tolerância zero” como “os candidatos menos plausíveis para explicar o recuo da criminalidade violenta” nos Estados Unidos…16
Esses quatro mitos científicos provenientes do além-Atlântico encaixam-se de modo a formar uma cadeia de aparência silogística que permite justificar a adoção de uma política de “limpeza de classe” essencialmente discriminatória. Baseia-se, na realidade, numa equivalência entre agir fora das normas e estar fora da lei, visa bairros e populações previamente suspeitas – quando não consideradas previamente culpadas. Se é verdade que a sociedade norte-americana foi pacificada pela ação da polícia – enquanto outros países são atingidos por uma “onda” de crimes – graças à política de “tolerância zero”, que por sua vez se baseia numa teoria criminológica sólida (a da “vidraça quebrada”), então como não se apressar em importar essas noções para pôr em prática os dispositivos que elas parecem fundamentar na razão? Na realidade, as quatro propostas-chave da nova vulgata de segurança made in USA são desprovidas de qualquer validade científica e sua eficácia prática origina-se numa crença coletiva sem fundamento na realidade. Reunidas, servem de rampa de lançamento planetário a uma fraude intelectual que, dando um aval pseudocientífico ao ativismo desordenado dos serviços de polícia, contribui para legitimar a mudança para a gestão penal da insegurança social que, por toda parte, é gerada pelo não comprometimento econômico e social do Estado.
(Trad.: Regina Salgado Campos)
1 – Cf. Loïc Wacquant, Les prisons de la misère, ed. Raisons d?agir, Paris, 1999.
2 – Ler, de Annie Collovald, Violence et délinquance dans la presse: politisation d?un malaise social et technicisation de son traitement, Editions de la DIV, Paris, 2000; e, de Serge Halimi, “L?insécurité des médias”, in Gilles Sainati et Laurent Bonelli (org.), La machine à punir, ed. Dagorno, Paris, 2001.
3 – N.T.: O Chefe de Estado de que fala o texto é Jacques Chirac, reeleito recentemente.
4 – Ler Actes de la recherche en sciences sociales, nºs 138 e 139, junho e setembro de 2001, sobre o tema “L?exception américaine”. Ler também “L?Amérique dans les têtes”, Manière de voir, nº 53.
5 – Ler “Ce vent punitif qui vient d?Amérique”, Le Monde diplomatique, abril de 1999.
6 – Le Figaro, 18 de junho de 2001. Estudo retomada por France Inter: cf. “Le Far West de Radio France”, Le Monde diplomatique, agosto de 2001. Ler também, de Pierre Rimbert, “Envahissants experts de la tolérance zéro”, Le Monde diplomatique, fevereiro de 2001.
7 – International Crime Victimization Survey é uma pesquisa por questionário feita com famílias a cada quatro anos desde 1989 sob a égide do Ministério da Justiça holandês, que compara as taxas de “vitimação” criminal nos principais países desenvolvidos.
8 – Ler, de Laurent Mucchielli, Violences et insécurités. Fantasmes et réalités dans le débat français, ed. La Découverte, Paris, 2001, p. 67.
9 – Ler, de George L. Kelling e William H. Souza, “Does Police Matter? An analysis of the impact of NYC?s Police Reforms”, Nova York, Manhattan Institute, Civic Report., nº 22, dezembro de 2001.
10 – Ler, de Jeffrey Fagan, Franklin Zimring e June Kim, “Declining Homicide in New York City: A Tale of Two Trends”, Journal of Criminal Law and Criminology, 88-4, verão de 1998, pp. 1277-1324.
11 – Sobre o funcionamento diário do tráfico de crack em East Harlem, ler, de Philippe Bourgois, En quête de respect. Le commerce du crack à New York, Editions du Seuil, Paris, 2001.
12 – Ler, de William W. Bratton, com Peter Knobler, Turnaround: How America’s Top Cap Reversed the Crime Epidemic, Nova York, ed. Random House, 1998, p. 229 e 309.
13 –