Divórcio com a Europa: hard brexit?
Os entraves surgidos e o lento ritmo das negociações conduziram à formulação de um novo conceito: o hard brexit, isto é, a possibilidade de um rompimento com a União Europeia sem qualquer tipo de acordo
Há pouco mais de dois anos, 51,8% dos eleitores britânicos votaram a favor da saída do Reino Unido da União Europeia (UE). Após uma campanha subterrânea permeada de embates nas redes sociais e muito apelo às fake news, o resultado da consulta popular surpreendeu a todos ao contrariar as previsões das pesquisas de opinião.
Inevitavelmente, o resultado do pleito não poderia deixar de provocar impactos e reviravoltas no cenário político doméstico, cujas consequências incluíram a renúncia do então primeiro-ministro conservador David Cameron e o aumento do capital político de Nigel Farage e de seus correligionários do Partido de Independência do Reino Unido (Ukip). Desde então, Londres tem se esforçado para enfrentar a realidade e colocar em prática aquilo que ficou popularmente conhecido como brexit.
Contudo, não tardou para começar a aparecer as primeiras dificuldades envolvendo o divórcio entre os britânicos e o bloco europeu. Os entraves surgidos e o lento ritmo das negociações conduziram à formulação de um novo conceito: o hard brexit, isto é, a possibilidade de um rompimento com a UE sem qualquer tipo de acordo.
Seguindo a clássica estratégia maquiaveliana, o governo britânico tem feito o possível para aparentar ter o controle da situação, evitando alardes e tentando convencer os meios de comunicação e os cidadãos de que esse tipo de separação é improvável. Entretanto, Londres começou a se preparar para um cenário de entendimento cada vez mais complexo. Recentemente, o governo apresentou 24 projetos caso a saída do bloco europeu ocorresse no formato hard brexit. Tratam-se de 24 áreas com as quais o Reino Unido deveria lidar – algumas delas em caráter emergencial – para amortecer os choques de uma transição mais brusca e sem qualquer tipo de negociação entre as partes.
Esses planos incidem sobre uma gama variada de temas. Um dos casos é a possibilidade de que os custos de transações bancárias realizadas por britânicos na UE sejam elevados de forma abrupta e substancial, tendo em vista que as taxas de cartão de crédito, por exemplo, são atualmente unificadas e relativamente baixas.
Outra matéria abordada envolve os exportadores britânicos, que estariam sujeitos a dois grandes obstáculos: o aumento da burocracia nas transações com os países-membros da UE e o sistema aduaneiro. A partir do hard brexit, o Reino Unido estaria fatalmente sujeito à adoção de um novo modelo para fazer a contabilização do comércio. Outro revés que deve assolar britânicos que moram em países do bloco é a possibilidade de complicações no acesso a salários e pensões do sistema bancário britânico – o que atualmente é feito sem maiores contratempos.
Outro assunto antecipado pelo governo envolve as dificuldades futuras nas compras de insumos para a indústria farmacêutica, que poderão gerar impactos na produção de medicamentos. A exportação de bens agrícolas também será prejudicada, uma vez que o Reino Unido deixaria de fazer parte da Política Agrícola Comum (PAC), que regulamenta absolutamente tudo o que diz respeito à agricultura dentro da UE.
Dependendo do clima de saída do bloco, até mesmo questões bastante prosaicas podem se tornar um problema. As embalagens de cigarros, por exemplo, teriam de passar por modificações, uma vez que as imagens de advertência para os males provocados pelo consumo de tabaco são de propriedade da União Europeia.
Conclusão
Espera-se que até o fim do ano sejam emitidos mais de cinquenta documentos, igualmente elaborados pensando em medidas preventivas para uma possível separação nos moldes do hard brexit. Em última instância, a modalidade da saída dependerá dos esforços diplomáticos de ambos os lados e do andamento das reuniões que ocorrerão até o prazo final das negociações, previsto para 29 de março de 2019.
Até essa data, o Reino Unido terá a oportunidade de participar de três cúpulas como membro da União Europeia. A primeira delas, nos dias 17 e 18 de outubro, é considerada a oportunidade ideal para que o acordo seja firmado, com tempo suficiente para que todas as regras sejam debatidas e votadas pelo Parlamento. O segundo encontro está previsto para os dias 13 e 14 de dezembro, o que significa que ainda será possível um entendimento entre as partes, embora com o ônus do prazo diminuto e da possibilidade de Londres estar mais suscetível à pressão. Finalmente, a última cúpula ocorrerá nos dias 21 e 22 de março de 2019, há apenas uma semana do prazo para a saída definitiva.
Se a negociação for satisfatória, haverá ainda um período de transição até o fim de 31 de dezembro de 2019. Isso significa, portanto, que um acordo estabelecido com uma antecedência minimamente razoável fornecerá alguma margem de manobra para que o Reino Unido e a própria UE se adaptem aos termos de uma decisão política tão profunda.
A liberação dos documentos mencionados fornece apenas alguns indícios do tamanho das dificuldades que o Reino Unido terá de enfrentar caso as partes não encontrem um ponto de concordância até o final de março do próximo ano. Ao contrário dos argumentos reducionistas de parte majoritária dos populistas de direita, os impactos de uma ruptura mais brusca afetará negativamente a sociedade britânica nos mais diversos âmbitos, dos medicamentos aos maços de cigarros.
*Leandro Gavião é doutor em História Política pela Uerj e professor da Universidade Católica de Petrópolis (UCP) e da pós-graduação do Curso Clio/Damásio; e Tanguy Baghdadi é mestre em Relações Internacionais pela PUC-Rio e professor do Curso Clio/Damásio, do Ibmec e da Universidade Veiga de Almeida. É membro-fundador do canal Petit Journal.