Do absurdo à barbárie: apatia e solidariedade em tempos de pandemia
Até que ponto esse misto de desinformação, negligência orgulhosa e ameaças à sobrevivência nos fazem duvidar do potencial agressivo da pandemia, ou nos deixam exaustos de saber-nos abandonados ao seu arbítrio?
Uma cena ocupou as redes sociais em outubro. Um homem, talvez em torno de seus quarenta anos, é entrevistado por Luiza Zveiter para o programa Encontro com Fátima Bernardes, da Rede Globo. O homem está sozinho, despojadamente sentado em uma mesa de bar ao ar livre, coberta apenas por um toldo, e fala sobre prevenção e covid: “Eu tenho saído, curtido muito as baladas, as festas. Volto para casa, tenho uma mãe de 78 anos, ela não pega covid”, diz. Já perdeu duas tias em razão da doença, “mas são tias de 80, mais de 70 anos”, revela em justificativa. Acredita que quem está “forte espiritualmente” está livre do contágio. Fiquei pensando em qual adjetivo caberia melhor à cena. Pitoresca? Revoltante? Surpreendente? Ou, talvez, cotidiana?
Entre cenas de bares lotados e multidões nas praias, está o dia a dia de uma sociedade que precisa sobreviver em meio a uma pandemia, ao mesmo tempo em que parece ignorá-la. Enquanto escrevo, somamos 181.835 mil mortos e 6.927.145 milhões de casos registrados de pessoas infectadas por Covid-19 no Brasil. Vivemos em apatia, indiferença ou negligência? O que falta para que escolhamos melhor as nossas estratégias de sobrevivência? Ou então, estamos à espera de qual barbárie que enfim nos mova a um sentido de autopreservação e solidariedade?
Em A Peste, livro que teve aumento de vendas durante a pandemia, Albert Camus retrata os caminhos da moralidade humana frente ao absurdo do flagelo, que transforma o tempo, a cidade, a liberdade e os anseios, aprisiona os sujeitos, e adia o futuro. No livro os habitantes de Orã, cidade da Argélia acometida pela peste, oscilam entre aceitar com orações um suposto castigo divino, reagir em esforços contra a propagação da doença ou apenas seguir fazendo negócios, preparando viagens e dando opiniões: “Nossos concidadãos não eram mais culpados que os outros. Apenas se esqueciam de ser modestos e pensavam que tudo ainda era possível para eles, o que pressupunha que os flagelos eram impossíveis (…). Julgavam-se livres e jamais alguém será livre enquanto houver flagelos” (p. 37-38). Como diz Camus, é difícil aceitar os flagelos quando nossos projetos e expectativas são também suas vítimas.
Assim como os habitantes de Orã, lidamos com os números crescentes de contaminados e mortos como abstrações, e por mais que tenham havido alguns esforços em nomear, conferir rosto e história às vítimas da doença, ainda não foi o suficiente para nos comovermos e agirmos enquanto comunidade. A realidade da peste, seja a de Camus ou a nossa, é entediante, burocrática e absurda. Nos exige atenção à morte enquanto somos lembrados da urgência da vida.
A nossa resposta ao acaso da doença tem sido, aparentemente, a da aparente apatia em relação à pandemia, a indiferença em relação aos falecimentos diários. O que falta à nossa sensibilidade? O sentido de coletividade, a solidariedade, a alteridade e a empatia são frutos exclusivos da vontade ou dependem também das condições sociais e culturais que os sujeitos produzem e em que são produzidos? Algumas reflexões já foram feitas em torno dessas questões.
Renata Nagamine pensa as impossibilidades da partilha do sensível em uma sociedade que ainda não conseguiu transformar suas relações com a diferença e a traduz em termos de violações naturalizadas de corpos considerados inaceitáveis. Serge Katembera atenta para a insivibilidade do vírus e dos corpos afetados por ele, ou seja, a doença não nos perturba em nossa dimensão estética e não nos amedronta pela exposição do horror. O problema é a morte que não chega a nossos olhos e a miopia dos nossos tempos. A Organização Mundial de Saúde (OMS) já discute o custo emocional do isolamento social e demais medidas de restrição impostas pela pandemia, considerando o que tem sido chamado de “fadiga da pandemia” uma ameaça à saúde mental global, bem como um possível obstáculo contra as medidas de contenção do vírus.
Não acredito haver uma única resposta que satisfatoriamente dê conta dessas questões e, portanto, não pretendo apresentá-la. Tampouco tais reflexões pretenderam uni-dimensionar o problema, mas revelam as suas múltiplas facetas, que envolvem a mobilização dos afetos e da ação política, a reorganização do trabalho, a fragilização da saúde mental e a exigência de revisão das estruturas sociais.
Fato é que, além de sermos confrontados com todos os percalços que compartilhamos globalmente nesses meses de convívio com a Covid-19, vivemos sob a omissão planejada das nossas instituições e, na falta uma ação nacional coordenada, a pandemia segue livre de qualquer governabilidade, a não ser pelos esforços isolados de agências de pesquisa; e de alguns governos estaduais e prefeituras, vale dizer.
O governo federal minimiza os sintomas da Covid-19 e sua potencial letalidade, investe tempo e dinheiro na defesa de medicamentos ineficazes, contribui com a disseminação de notícias falsas sobre a doença e sua prevenção, desinforma pelo mau exemplo. Se exime de apresentar um planejamento transparente e minimamente eficaz de combate à pandemia, bem como hesita a assumir protocolos para uma possível vacinação. Mas não se furta a afirmar que o cidadão está por sua conta e risco ao propor a assinatura de um Termo de Responsabilidade a quem decidir se vacinar, disseminando mais uma vez a dúvida e a insegurança em relação a processos comprovadamente eficazes de prevenção.
A omissão do governo se traduz em silenciosa deliberação: deixar morrer. À determinada parcela da população se impõe o sacrifício em nome da saúde da economia, como se essa fosse entidade aparte da sociedade, ainda que se meça o valor da vida pelo lucro. Aos que não podem estar em isolamento, aos que não puderam manter seu sustento durante a pandemia, aos que perderam seus empregos, a esses resta arriscar a vida como loteria e a luta pela manutenção do auxílio emergencial, que sempre enfrentou resistência dentro do Executivo. Se morrerem – sempre os pobres, negros, indígenas, as mortes no Brasil nunca nos igualaram – bom, e daí?
A morrer pelas consequências nefastas da crescente pobreza e desigualdade social, a morrer pelo sucateamento dos serviços públicos de saúde, a morrer pelo acirramento da violência policial e das “balas perdidas” que já assassinaram 12 crianças em 2020, que se morra também pela urgência infecciosa de um vírus sem governo: “eu sou Messias, mas não faço milagre”, foi o que afirmou o Presidente da República quando atingimos a marca de 5 mil mortos, em abril. No Brasil convidamos a barbárie para sentar à mesa.
Até que ponto esse misto de desinformação, negligência orgulhosa e ameaças à sobrevivência nos fazem duvidar do potencial agressivo da pandemia, ou nos deixam exaustos de saber-nos abandonados ao seu arbítrio?
Outra alteração substancial que experimentamos convivendo com a Convid-19 foi a do tempo. Ao mesmo tempo em que o futuro parece em suspensão, o ritmo das nossas atividades parece ter se alterado, com acúmulo de trabalho especialmente para as mulheres. Vivemos presos em um tempo presente como quem corre em uma esteira sem condições de diminuir o ritmo. Nesses termos, a pandemia que justamente armou esse cenário, fica em segundo plano. É preciso adaptar-se a esse novo tempo até para viver o luto.
Iasmim Martins lembra que nos tem sido negada a experiência do luto, que não diz respeito apenas a ausência daqueles que nos deixam, mas também aos modos de viver que estamos sendo obrigados a deixar pra trás. Não temos tipo tempo para elaborar essa perda, “seja por não termos mais condições de manter os rituais que nos possibilitam realizar o trabalho de luto, seja pelas exigências de produtividade e performance que nos impõe certo ideal de positividade, sem deixar espaço algum para a tristeza e para o recolhimento, que também são necessários e constitutivos da experiência”. Uma das alternativas a essas impossibilidades é manter-se libidinosamente apegado à ideia de que tudo está e será como antes, que a vida pouco mudou, apesar da sombra melancólica que enevoa o nosso cotidiano.
Assim, abandonamos pelo governo e carentes de um sentido de cidadania que não se constrói da noite para o dia, a imobilidade e apatia da sociedade se convertem, por um lado, em aceitação resignada da inevitabilidade da doença e, por outro, em adaptação a um “novo mundo” que segue ajustando precariamente as velhas formas de subjetivação e sujeição às novas exigências de organização social e do trabalho. Enquanto a pandemia nos mata coletivamente e exige um ajuste solidário para o seu enfrentamento, somos ainda indivíduos que não podem parar de alimentar a máquina capitalista (e os deuses tão humanos do mercado), amparados em uma racionalidade neoliberal, que não nos deixa tempo de pensar e organizar as nossas perdas e as novas formas do viver. E assim seguimos, sem outra alternativa que não repetirmos, dia após dia, os velhos hábitos que hoje nos põe em risco.
Ainda que um vírus não seja “suficiente para mudar o mundo”, em razão dele vivemos a “crise do imaginário neoliberal”, defende Laval. Segundo o autor, a pandemia nos obrigaria a questionar o “princípio vital da concorrência”, que acaba por justificar a proteção dos mais ricos e a exposição dos mais pobres à letalidade do vírus, além de se colocar como empecilho ao fortalecimento da solidariedade social.
Talvez essa seja mesmo uma mudança inevitável. Mas que não será dada a passo largos, nem há garantias de que nós seguiremos nessa direção. No mundo, o acirramento do nacionalismo, da vigilância, das guerras comerciais e da apatia me parecem mais próximos. Se nos carece outro ethos que desperte a solidariedade para reagir ao vírus, nos falta também no Brasil o sentimento de comunidade e garantia de igualdade que nos constitua cidadãos, e que demandam um longo trabalho de construção. Mas que é possível, a exemplo das comunidades que se auto-organizam em resistência aos nossos flagelos. Antes de se indignar com a barbárie, é preciso deixar de nos habituarmos a ela.
Referências
CAMUS, Albert. A peste. 23 ed. Rio de Janeiro, São Paulo: Record, 2017. Edição Kindle.