Do pensamento social afro-pindorâmico à filosofia política quilombola
Nego Bispo lança seu livro “Colonização, Quilombos modos e significações” na Festa Literária das Periferias (Flup). O autor diz que a publicação não é um livro “é uma relatoria. Eu não inventei nada, todo mundo sabe o que tá aí”
“As letras que eu escrevo são sementes okantada no papel, quando alguém lê essa semente germina”. Assim, Antônio Bispo dos Santos, conhecido como Nego BIspo, define sua troca “pedra” por “pena” em um improviso de samba de roda bem popular no recôncavo e que em sua harmonia, composição, ritmo e estrutura, em tudo, lembra também um samba do Piauí cantado por Bispo, no qual se permuta a “pedra” pela “pena” na mão de quem matou o gavião, enquanto no samba de roda corrido, no qual se ensaia essa cena, é onde se diz: “[…] foi você/ foi você mesmo/ que eu peguei /com a pedra na mão,/ não fui eu não fui eu/ quem matou seu gavião […].”
O lavrador quilombola – educado por mestres de ofício do Quilombo Saco-Cortume, em São João do Piauí -, ativista político e militante do movimento social quilombola atua em ocupações, retomadas e enfrentamentos nas lutas pela terra em Pindorama. Ele nos indica uma pajelança entre as linguagens da luta, da guerra e da resistência indígena, quilombola, comunitária. Com a poesia, a escrita e intelectualidade, a sua oralidade o torna um “relator de saberes”. Neste livro, ao lado de Álvaro Tucano, Casemiro Tukano, Antônio Gomes Barbosa e Taís Garone, incluindo um posfácio de Maria Sueli Rodrigues, Nego Bispo encara a missão natural de “contracolonizador” ante “colonizadores”.
A partir dos conhecimentos dos mestres das comunidades quilombolas afro-pindorâmicas, onde pajés, xamãs e guerreiros dos povos originários e dos africanos interagem na partilha e elaboração dos saberes e modos de vida, é posta uma disputa contra o sistema capitalista. Nesse contexto de conflito e assimetrias de poder – há uma voz quilombola contra colonização.
O livro “Colonização, Quilombos modos e significações” traz desde as leituras das Cartas de Caminha, sobre o batismo do Monte Pascoal, a invenção da Terra de Vera Cruz, da Terra de Santa Cruz, até se chamar o nome que dá atualmente ao território dos povos originários: Brasil. Nesse caminho transformaram tupinambás, kariris, outros tantos em índios e índias, tomando seus nomes e suas línguas, suas identidades e formas de autorreconhecimento, assim como o “negro” impedido de retomar a sua posição de africano.
A análise de Nego Bispo da relação negativa por meio da colonização na cosmovisão dos colonizadores constrói uma cosmofobia em torno do capitalismo e da sobrevivência da vida humana na terra e, principalmente, como vivê-la, e isso é o que o livro de Bispo nos entrega, uma alternativa em uma “biointeração” comunitária com a Natureza (seja na pescaria, na plantação da macaxeira ou na casa de farinha), produzindo no outro um reflexo da sua própria imagem, no processo de formação e construção de uma identidade coletiva e individual de ataque e resistência cultural contra os racismos e os genocídios étnicos.
Bispo explica o esvaziamento dos territórios tradicionais provocados pelo êxodo rural de todo o século 20 e junto à introdução da monocultura houveram múltiplos deslocamentos de populações ciganas, povos de terreiros, caiçaras, quilombolas urbanos a rigor a “imposição” e a “arbitrariedade” sobre a “autodenominação dos povos” desrespeitando o princípio de autodeterminação dos povos. O autor abre o “pacote agroquímico”, o lixo da segunda guerra europeia, desde os “desfolhantes” para a camuflagem dos exércitos até os tratores e máquinas de mover a terra, depois de abrir túmulos e trincheiras, agora o “agro é pop” e estas máquinas agrícolas devastam mais milhares de campos de futebol todos os anos das florestas, em especial, da Amazônica.
Perpassando questões como as do Sapê do Norte e Guarani Mbya, no Espírito Santo, nos anos 1940 num conflito contra uma empresa de papel e celulose através de ataques a lideranças em uma invasão do território. Outro ponto levantado pelo livro é a situação, nos anos 1970, do enfrentamento dos pescadores artesanais dos quilombos no Maranhão contra os militares responsáveis pela instalação da Base de Alcantara. Mais um caso levantado na obra é o projeto Grande Carajás da Vale contra os timbiras, os apinajé, o povo gavião-pykobjê, gavião parkatejê, krikati e os surui-aikewara entre outros casos como a transposição do Rio São Francisco, criação da Rodovia Transnordestina, da Usina Hidroelétrica de Belo Monte, da criação de estaleiros em Camaçari-Ba, ainda sem falar em uma empresa canadense que pratica a exploração mineral em Pracatu-MG. Tudo isso, entre outros casos levantados, como que alcança a natureza de formas como “desastres ambientais, sociais, culturais”, faccionalismos, fome, miséria e êxodo nas comunidades de “territórios e territorialidades tradicionais”.
O livro reúne vários saberes rituais, agroecológicos, poéticos, sociológicos, antropológicos e apresenta-se por sua vez como ferramenta de leitura e compreensão e atuação nas questões da terra que atravessam comunidades, latifúndios, mega projetos de desenvolvimento e exploração, as universidades, os governos federal e estaduais em meio a legislações e litígios judiciais acerca de remoções e deslocamentos de territórios tradicionalmente ocupados por comunidade originárias de povos indígenas, quilombolas, quebradeiras de coco, pescadores artesanais e marisqueiras, ciganos, ribeirinhos, caatingueiros, povo de santo (povos de terreiros), vazanteiros, entre outros, que num estado de conflitos se encontram numa “correlação de forças desigual” contra inimigos que “queimam, inundam, implodem, trituram, soterram” comunidades inteiras, territórios inteiros, populações inteiras, símbolos, significados e modos da vida das futuras gerações e de gerações de antepassados. E é assim que nessa passagem de uma expressão do pensamento social afro-pindorâmico traduzindo-se à uma filosofia política quilombola que encontramos Nego Bispo que sendo natureza de encontro, de transformação, de mudança é por si – naturalmente – Ogun-Xoroquê, guerreiro que abre caminho nas batalhas.
Guajajara é Omo obatalá babá t’Ifon