Do processo de organização das idéias
Alguns poderiam dizer que saber toda a história antes de escrever tira toda a graça da escrita. Mas literatura policial é um troço assim. É um artesanato com uma técnica.Olivia Maia
Vez ou outra alguém me pergunta como eu faço para organizar as tramas das minhas histórias policiais. Porque para uma história policial é preciso alguma ordem, alguma lógica. Ou que seja saber quem era o assassino. Não basta ter um personagem interessante e sair por aí atrás dele, seguindo seus passos e ouvindo seus pensamentos.
E já escrevi uns dois livros assim. Sabia vagamente o que eu queria para o fim, sabia muito mais vagamente o que acontecia no meio, e saí escrevendo. Funciona. Mas não com as histórias policiais.
No policial há algo a ser desvendado. Há pistas que são deixadas para trás. Há uma história antes da história, aquela que levou ao crime e então ao começo da investigação. Essa é a história que deverá ser desvendada. Para isso, nada mais justo que se saiba, de antemão, o que aconteceu. Não basta começar a escrever sabendo que alguém morreu, e que várias pessoas podem ser o assassino.
A primeira coisa que faço é bolar essa história antes da história. É uma parte que não será escrita, literalmente, mas que vai surgir em pedaços para serem montados pelo investigador e pelo leitor. Então ela precisa estar inteira, na minha cabeça. Mas é também a parte mais divertida da criação. Porque é a criação pura, sem a preocupação de que o que é criado vai precisar depois se transformar em um texto. Aquilo não vai ser escrito, mas precisa existir.
A literatura policial costuma ser isso: você lê uma história para descobrir uma segunda história. Ricardo Piglia já falou sobre isso. O leitor quer chegar ao fim, e não curtir o potencial literário do meio.
Nada mais justo que o autor começar a escrever sabendo qual, afinal, é essa segunda história, também para ter em mente o quanto dela pode ser contado, e como ela vai ser contada.
Minha memória é meio zero, então vou anotando tudo. Claro que depois preciso encontrar os mil cadernos com trechos espalhados da história e centralizar tudo em um arquivo do computador. Vou anotando as datas e os nomes e as relações e o que cada um fez e pensou e tudo. E então o crime que vai iniciar a história. Difícil é fazer as pistas ficarem sutis o suficiente para que não dê tudo muito na cara.
O que eu acabo fazendo é complicando demais a vida dos investigadores. A gente, parece, quer logo inventar o crime perfeito. Ou então o crime fica tão imperfeito que a gente começa a duvidar da inteligência do criminoso. Criminoso burro! Podia ter matado com uma injeção de potássio!
Ok, divago.
A maioria dos criminosos não sai por aí matando com injeção de potássio. E mesmo se matassem, dá pra criar buracos no plano e dar uma brecha para a investigação que vai precisar acontecer depois. Senão não tem história. Ou então eu crio logo o que deveria ser o crime perfeito e desconstruo. É, isso pode funcionar.
Eu ia dizer era: sem essa história antes da história toda bem formada e criada, eu não consigo seguir adiante. Ou sigo, escrevo trechos, mas jamais a trama toda. Falta coisas. Surgem buracos e pontas soltas. Pontas soltas são o terror da criação da literatura policial.
“O bicho vai nascendo”
Com isso feito, eu vou para a segunda parte mais divertida do meu processo. Isso quem me ensinou foi a minha avó, que é cineasta e roteirista de cinema. Pego uns cartõezinhos (uns pedaços de sulfite cortados, tipo papel de recado) e vou tascando neles as cenas ou trechos da história que eu quero escrever. Pode ser uma seqüência inteira, pode ser uma constatação do tipo “investigador descobre que fulano estava mentindo” (mesmo que eu ainda não saiba por que diabos ele descobriu a mentira, mas eu sei que preciso do momento descoberta) ou um diálogo engraçadinho que eu queria muito colocar no meio.
Vou fazendo isso, cartão a cartão. Sem a menor ordem, diga-se de passagem. Vou só escrevendo o que eu me lembro que deveria ser importante. É muito provável que antes disso eu tenha escrito mais ou menos a lógica da trama em algum lugar, mas a ordem eu nunca consigo fazer sem esses benditos cartõezinhos.
Chega hora tem uma pilha enorme de cartões na minha frente. Aí vem a gata e deita em cima. Segue-se o momento de convencer a gata a me liberar um pedaço do chão e não deitar em cima dos papéis. Gatos adoram deitar em cima de papéis. Eu também poderia fazer isso na mesa. Mas o chão costuma ser mais interessante.
Aí espalho os cartões e tento colocar as coisas em alguma ordem. Sempre tem seqüências que dependem de outras para acontecer. Quer dizer, o investigador só descobre que fulano está mentindo depois de conversar com fulano. Ou antes de sair atrás de fulano e tirar satisfações. Digamos, digamos. Então o bicho vai nascendo. E ver a trama toda assim, de cima, é uma coisa mágica. Está lá toda a história. Posso então reorganizar isso ou aquilo para que o personagem tal apareça mais vezes. Posso criar outras cenas para preencher os buracos. Posso saber exatamente o que falta ser criado e resolvido.
É lindo.
Antes eu tinha o hábito de depois botar tudo no quadro de cortiça ao lado do computador. Mas são muitos cartões. Quando acho que já está tudo resolvido, digito em um arquivo no computador. Estando no computador fica mais fácil mexer, adicionar elementos. Eu sempre acabo mudando qualquer coisa que seja, já enquanto estou escrevendo. Às vezes os próprios personagens não dão clima para o que você queria que eles fizessem. Vez ou outra quero meus personagens bravos e apontando o dedo na cara do outro, mas eles dão um sorrisinho cínico, viram as costas e vão embora.
Personagens, pois sim.
Alguns poderiam dizer que saber toda a história antes de escrever tira toda a graça da escrita. Mas literatura policial é um troço assim. É um artesanato com uma técnica. (E de qualquer forma, os personagens sempre têm esse hábito terrível de não obedecer quando a gente manda).
Mais que isso, preciso desse processo para não enlouquecer. Como falei, minha memória é meio zero. No meio da escrita me esqueço se a narrativa está em uma terça ou quarta-feita, se o crime foi há um ou dois dias. Se eu esqueço, imagina o coitado do leitor.
Começar a escrever sem saber o que levou ao crime acaba criando um monte de furos na narrativa. Como é que vai desvendar alguma coisa que não está ainda muito certa? E esse processo funciona comigo. Não existe bloqueio de escritor desse jeito. Existe crise, mas cr