Do sofrimento em se isolar ao agir coletivo na solitude
Passamos por um momento em que estar a par dos fatos pode também contribuir para a angústia e o sofrimento. A situação é séria e o melhor a fazer, para os que não suportam o bombardeio contemporâneo de informações, é afastar-se dessa sobrecarga de preocupação e agir de acordo com o que podemos
Em dezembro de 2019, em Wuhan, na China, surgiu um surto epidêmico de grave pneumonia, causado pela nova mutação na estirpe do coronavírus, chamado agora de Sars-CoV-2. Isso nos revela também que essa pandemia viral é uma segunda versão da Sars, que acometeu o mundo em 2003. Até às 10 horas do dia 13 de fevereiro de 2020, a epidemia havia causado 1.366 mortes dos 59.834 casos confirmados e 16.067 casos suspeitos. Enquanto escrevo este texto, entretanto, já chegamos perto de 500 mil casos confirmados ao redor do mundo, com mais de 21 mil mortes (notificadas), às 05 horas do dia 26 de março de 2020. Os impactos sociopsicológicos desse surto de pneumonia por conta da Covid-19 e suas medidas de controle logo foram notados por psiquiatras e psicólogos chineses, em especial pelos efeitos da quarentena, restringindo o contato desde a socialização cotidiana até intervenções psicológicas tradicionais. Também esses impactos advêm do medo e do pânico generalizados, levando a transtornos de ajustamento e depressão.
Passado algo como um pouco mais de uma semana do protocolo (mal executado e não levado a sério como deveria) de isolamento social como medida de supressão da curva de transmissão da Sars-CoV-2, o vírus causador da Covid-19, percebemos alguns sinais de sofrimento psíquico dado o isolamento e a dimensão estressante e paranoide imposta pelo estado de pandemia. Nosso país não tem experiência com tal protocolo, sequer com algo como uma possível tragédia em larga escala com a perda de um número expressivo de vidas em tão curto espaço de tempo. Formas de enfrentar o sofrimento psicológico e a crise de saúde mental (um terceiro eixo negligenciado da crise em geral, que também é médica e econômica) instaurada pela pandemia já estão sendo desenvolvidas na China, tendo como exemplo o projeto apresentado por pesquisadores do Hospital da China Ocidental (West China Hospital), Jun Zhang, Weili Wu, Xin Zhao e Wei Zhang, que elaboraram um modelo de intervenção psicológica voltado às condições particulares impostas pela situação.
Do corte abrupto à suspensão do tempo
Há uma grande, uma abrupta e esmagadora sensação de impotência, desespero e pânico que a situação viabiliza; sensações que são, sem dúvida, contraproducentes e adoecedoras. Por outro lado, e talvez seja a pior constatação — já que retroalimenta a primeira —, também gera grande angústia perceber que muitas pessoas ainda estão agindo como se nada estivesse acontecendo, como se estivéssemos passando apenas por uma “gripezinha” exótica. Mais do que isso, presenciamos o efeito material prático de um discurso que, vindo desde o mais alto cargo do Executivo — no qual se encontra alguém que, se antes dizíamos que jamais entraria pra história, hoje é possível que esteja justamente traçando as condições para que se inscreva enquanto um genocida —, passando por seus aliados e ideólogos e alcançando suas bases, instaura algo tão próximo de uma política tomada pela forma da loucura. Uma política onde a própria paranoia é meio de gestão.
Passamos por um momento em que estar a par dos fatos pode também contribuir para a angústia e o sofrimento. A situação é séria e o melhor a fazer, para os que não suportam o bombardeio contemporâneo de informações, é afastar-se dessa sobrecarga de preocupação e agir de acordo com o que podemos. Por outro lado, é fundamental compreendermos que uma das grandes causas de ansiedade é também a falta de informação acerca de doenças infecciosas. Os próximos meses serão cruciais. Nesse contexto, um corte abrupto revela uma certa inércia, uma certa continuidade muda de um movimento difícil de simbolizar: a sensação de inquietação e angústia, de demanda pela letargia eufórica e frenética que a normalidade proporcionava. A normalidade automatizada e excessiva revela toda sua força nesse momento. Pessoas que descrevem seu sofrimento simplesmente como uma incapacidade em conseguir parar consigo mesmas, entrando em um espiral por conta da necessidade imposta pela situação e que se apresenta como impossível de ser atendida. É importante traçar algumas relações que essa dificuldade tem com o adoecimento já presente nessa própria normalidade da qual, agora, sofremos abstinência.
Talvez poderíamos dizer que para a realidade brasileira há uma dificuldade específica, alguns diriam até sociológica, nesse processo de ruptura, de corte. Basta relembrar alguns clássicos do pensamento social brasileiro e veremos que, entre a ruptura e o “continuísmo”, a história aqui não é lá muito chegada à primeira — como, por exemplo, ‘Casa Grande e Senzala’ e ‘Sobrados e Mucambos’ nos mostram; ou ainda, a transição acuada e imoral à Nova República, que anistiou tanto exilados quanto torturadores; e até o mais recente exemplo do fim da Nova República, onde a esquerda que fora golpeada e arrastada ao fosso se nega a reconhecer tanto o fim quanto a própria queda. Exemplos da dificuldade histórica em colocarmos um ponto de basta, ou mesmo em reconhecê-lo quando a própria história os coloca. Isso talvez seja o primeiro “insight terapêutico” que esse escrito oferece: talvez todo esse peso, toda essa demanda que de repente caiu sobre os ombros do que compreenderam minimamente a gravidade do momento, seja também algo de um peso histórico, algo de uma sociedade que precisa se constituir em um “não”, um “basta” — enfim, em um corte. Para que estejamos à altura dos nossos tempos é necessário, então, que cortemos, cortemos rente.
O naufrágio de vários mundos
Ao sermos jogados nesse próprio corte de um tempo que cultivamos e nos cultiva — sempre ininterrupto, inacabável, insaciável — encaramos também a necessidade de produzir novas formas de lidar com nossas angústias para não confrontarmos a “angústia em-si” que nos espreita. Novos sintomas surgem, sintomas conhecidos são exacerbados: comemos, bebemos, usamos em demasiado as redes sociais para nos distrair, assistimos um programa onde pessoas também se encontram confinadas, comemos mais, limpamos todos os cantos da casa, reorganizamos tudo mil vezes, fumamos, paramos de fumar, mudamos as coisas de volta para o lugar, praticamos o conhecido narcisismo on-line, compomos, desabafamos com amizades, marcamos conversas por vídeo, marcamos reuniões por vídeo, marcamos trabalho por vídeo, cortamos o cabelo, pintamos o cabelo, escrevemos, lemos, assistimos, consumimos, temos crises, quase surtos (ou mesmo surtos), enfim. Nessa situação, é necessário entender que devemos nos permitir desfrutar dos pequenos prazeres que nos viabilizam passar por isso sem perdermos a consistência de nossa realidade. Todos os mecanismos que nos auxiliem a lidar com esse momento são bem-vindos, em especial aqueles que nos capturem para fora da paranoia de cogitar mil vezes ao dia se estamos infectados e a ansiedade de não podermos ter certeza (já que os testes aqui são escassos), ou nos distraia da imensa e insimbolizável dimensão de tragédia global, a qual somos bombardeados constantemente. Como bem notou Gabriel Tupinambá, ficamos “presos ou na paranoia angustiante (pura globalidade) ou recorremos a simbolizações inefetivas através de acting outs1 que nos expõe a riscos desnecessários (pura localidade).”. Acredito que a precariedade de testes também contribui para o nosso sofrimento mental, já que somos reféns de uma indeterminação individual (será que eu estou infectado? Seria essa tosse apenas tosse? Essa dor de cabeça apenas dor de cabeça?) e de uma indeterminação da magnitude da crise sanitária (quantos realmente estão infectados? Quantos realmente morreram pela doença?).
Tanto a paranoia quanto a melancolia são problemas fundamentais aqui. Mais do que nunca, não são simplesmente nomes para uma disfunção “anormal”, mas consequências lógicas do imbróglio particular desta situação. Precisamos afirmar, entretanto, a importância de mantermos e cuidarmos de nossas distinções e delimitações entre mundos externos e mundos internos. Não podemos nos render à simples invasão do mundo externo em nossa vida psíquica (com a paranóia constante que a própria lógica do vírus enquanto agente invisível de infecção impõe, a constante angústia sobre possíveis sintomas que podem desencadear reações somáticas, etc.), nem podemos fazer o caminho contrário e diluir nossas fronteiras em relação aos eventos externos, assimilando todos os sofrimentos e tragédias como se fôssemos diretamente afetados por tudo, como se tudo dissesse respeito a nós (com a própria brutalidade do fim de um mundo, não poderemos ter outra condição a não ser a melancólica se tomarmos pessoalmente todos e cada um dos lutos, dores, tragédias e sofrimentos que não nos dizem respeito diretamente nesse processo). Precisamos compreender e atravessar a negação de que essa não é uma fase rápida, passageira. E, apesar do vírus não durar para sempre, a melhor coisa agora é encararmos a realidade de que nada mais será como antes, para que possamos lidar com as mudanças. Primeiro: não existe volta à normalidade perdida — ela está, de fato, perdida. O apego desesperado ao passado impossibilitará com que atravessemos nosso luto (da normalidade), o que inevitavelmente irá nos custar mais em termos de sofrimento, e retardará a superação possível e necessária. Segundo: precisamos insistir na tentativa de um sopro no espírito adoecido do presente — um sopro que, apesar de difícil, almeja fomentar sinais de uma nova vida em um outro mundo possível.
A tarefa aqui será árdua por várias questões. Pelas tendências continuístas, pelo luto imposto por uma crise médico-sanitária mundial, a crise econômica profunda que a acompanha somada também a uma crise mental, e pela nossa própria crise política, que se arrasta desde 2013, e vem desde então cobrando que lidemos com os esqueletos nos armários de nossa história. O fim de um mundo que alguns tinham como dado — a Nova República — se revela agora também como parte do fim de um mundo que achava-se interminável — o mundo da hegemonia neoliberal — e é curioso perceber que apesar de Francis Fukuyama, o principal teórico do fim da história após a queda do Muro de Berlim, ter reconhecido o “retorno da história”, praticamente a totalidade da esquerda partidária brasileira insista em continuar “fukuyamaista” (em especial quando vemos alguns dos ferrenhos neoliberais voltando-se para a “solução” keynesiana). Pensa-se em meios de manter a lógica de sacrifício do trabalho, em especial a lógica desenvolvida pela ciência macabra de governar que se criou em território brasilis, a ciência do governo de um Estado que sempre operou metaforizando as formas escravistas na dinâmica capitalista — assassínio, tortura, violação e ocultação.
Esse Estado encontra-se agora numa dinâmica suicidária, como bem apontou Safatle, lembrando do termo de Paul Virilio. Sua dinâmica e vício pelo movimento perpétuo de morte que o sustenta não pode mais funcionar da mesma forma frente à crise médico-sanitária imposta pelo vírus. Podemos perceber, então, que sua imposição para nós é a de nos satisfazermos com duas alternativas: o sacrifício ou a melancolia. Colocam-nos a falsa dicotomia entre economia e saúde, que se revela uma chantagem cifrada, endereçada ao trabalhador, como uma escolha infernal entre a certeza do desemprego e o risco da infecção. Estão postos os termos na mesa, mas nós queremos virar a mesa. Estão dadas as regras do jogo, mas nós queremos mudar as regras, fazer um outro jogo. Psicólogos, psiquiatras e assistentes sociais chineses, baseando-se na recente experiência e em material produzido sobre a crise do surto de Ebola em Uganda e Nigéria, elencaram fatores para o adoecimento mental, angústia e sofrimento advindos da crise epidemiológica, que são em grande parte advindos do desconhecimento sobre doenças infecciosas, o confrontamento com grandes e abruptas mudanças e a inadaptação decorrente. Apesar de evidente, é importante dimensionar que em nossa realidade, tais fatores não se somam com as características prévias já mencionadas. Sendo assim, podemos dizer que parte significativa do sofrimento se dá pela magnitude e complexidade da situação, que é de difícil simbolização, significação e mapeamento. Quando uma ameaça espectral ronda nossa realidade, sua presença desencadeia fenômenos paranóicos, como podemos perceber especificamente com o caso do vírus. Dar contorno, nome, corpo para essa presença angustiante e não rastreável é uma demanda compreensível e necessária. Porém essa demanda também pode desencadear narrativas conspiracionistas das mais variadas, em especial quando somos governados por um regime de ultrapolítica, onde a própria estratégia ideológica de mobilização das bases depende da produção e manutenção da dinâmica de um falso “nós versus eles.” Nosso primeiro passo é então o de percorrer o cenário e produzir um mapa cognitivo próprio para nossa ação. Mais ainda, viabilizar meios para se produzir uma cartografia da crise, para que cada tenha ferramentas para analisar a realidade por si mesmo..
Contra a melancolia na solidão, a militância na solitude
Não podemos negar o efeito paralisante da situação que encaramos, onde a medida mais eficaz para o momento é ficarmos em isolamento social. Traduz-se assim o ficar em casa como um desespero fatalista em não poder fazer nada. Surgem então manifestações políticas como os panelaços, devidamente reapropriados, manifestações culturais em sacadas e shows online etc. Também surgem mecanismos de moralização como soluções à angústia gerada pela situação: vemos operações sádico-masoquistas que invertem o direito [à saúde] e dever [para com o social] que caracterizam o isolamento social como medida de supressão, em ressentimento e culpa, forçando sua leitura como se fosse algo da ordem de um privilégio. Essa operação, plenamente ideológica, inverte o que deveríamos compreender por privilégio e extrai uma satisfação e um excesso [um mais-gozar ideológico, para usarmos do jargão teórico] de um imbróglio conjuntural que nos empurra ao sofrimento e desespero. Devemos nos atentar para essas saídas simbólicas que surgem como miragens no deserto do desespero e revelam-se falsas e, pior, também parte do problema — já que iludem ao apresentarem-se como análises corretas, não sendo, e mistificam um problema real: o fato de muitos ainda terem seus direitos negados e de que o trabalho de segmentos indispensáveis não é reconhecido e segue sendo precarizado.
Essa é uma variante óbvia de algo que se tornou circuito comum dos progressismos que foram (neo)colonizados pela gramática do império: uma variante da lógica de meritocracia do sofrimento, que atomiza sujeitos e os dispõe em uma racionalidade de comparação e competição dos seus padecimentos psíquicos — algo que Achille Mbembe também aborda, de certa maneira, ao descrever o que chama de políticas da visceralidade. A linguagem do ativismo liberal fora introjetada de tal maneira que hoje não podemos sequer acreditar que simplesmente se possa operar fora da mesma simplesmente por reconhecê-la e negá-la. Com bom tino para a análise, não é preciso procurar muito para encontrar pretensos radicais que mimetizam essas formas com outros conteúdos. Trata-se aqui de significarmos alguns aspectos importantes nesse momento de isolamento, para compreendermos que há saídas possíveis e que não serão fáceis — como saídas reais não costumam ser —, mas podem nos auxiliar a tornar esse um ponto de virada nas condições simbólicas para a ação.
Precisamos abandonar a ideia de “não fazer nada” que opera a lógica superegóica de demanda pela produção, pela circulação, pelo consumo e pelo gozo. Um dos ensinamentos fundamentais da psicanálise é o seguinte: o superego, essa instância psíquica sempre incansável de cobranças, restrições e demandas é, por definição, insaciável. Se nos curvamos a seguir suas ordens cegamente, a frustração é o preço a se pagar. E se, do contrário, compreendermos que esse momento não é do “não fazer nada”, mas do “nada fazer”, significando primeiro que é necessário encararmos o quanto sofremos quando não nos permitimos desfrutar do ócio necessário, mas também que precisamos, após isso, reconhecer nesse tempo de parar a oportunidade de um salto qualitativo? Talvez esse momento possa servir para compreendermos uma dupla necessidade: tanto saber da importância de nos voltarmos à totalidade (as análises em termos de política global, capitalismo, crise ecológica, relações transnacionais, estados de exceção, etc.), quanto de nos reencontrarmos com nós mesmos, individualmente, sem recair em nenhum individualismo ou qualquer mito de coincidência consigo mesmo (qualquer baboseira de reencontrar seu verdadeiro eu, sem nenhum significado espiritual autêntico). Como disse recentemente Catherine Malabou, se é verdade que o humano é produto do meio, da sociedade, e que a sociedade não pode ser compreendida em termos de um “estado de natureza” onde homens isolados se encontram e formam a sociedade, então talvez também seja necessário saber encontrar a sociedade em si mesmo para compreender o que a política significa.
Há aqui um belo paradoxo percebido por aqueles dedicados à tradição da dialética, paradoxo que por si só renderia um texto próprio: nesse momento de imposições normativas globais ocasionado pela pandemia, ao mesmo tempo que o distanciamento social nos afasta da sociabilidade cotidiana, da própria experiência normal de estar em sociedade, e requer uma reclusão, uma espécie de confinamento, há também a possibilidade de nos aproximarmos de algo como uma condição comum a todos no mundo, uma situação que nos aproxima para além de qualquer identidade, fronteira, etc. Ao mesmo tempo que a quarentena impõe uma experiência solitária, essa solidão pode se revelar uma solitude — significando uma possível liberdade contra a fácil escolha melancólica, uma liberdade coletiva em se isolar pelo bem comum, já que é uma atitude de interesse pessoal (ninguém gostaria de se expor ao vírus) como social (menos pessoas circulando são menos vetores para o vírus, impedindo ou ao menos retardando sua disseminação). É como se todo o mundo se aproximasse nessa necessidade de distanciamento, já que tanto aqui no Brasil como em Portugal, tanto nos EUA como na Inglaterra, tanto na Espanha quanto na Argentina, tanto na China como no Japão, há uma medida que, por razão negativa, nos coloca em uma condição próxima, e cria uma potencial solidariedade global. Um senso genérico de solidariedade internacionalista que não só é necessário para superar tal condição, mas o será para sobrevivermos ao século XXI e além, se é isso que pretendemos.
Precisamos encarar os problemas específicos da tragédia de nosso predicamento: muitos recorrem ao “gatilho narrativo” de tratar a situação como o fim do mundo (ou, pelo contrário, mas ainda o outro lado da mesma moeda, desmerecer sua gravidade por “não ser o fim do mundo”), e isso é uma forma de evitar a angústia específica de nossa situação, que é ainda mais complexa de ser simbolizada. Precisamos dar sentido ao trauma específico do fim DE UM mundo, o que é, por mais contra-intuitivo que possa parecer, infinitamente mais trabalhoso, já que é reconhecer a necessidade de elaborarmos o luto por esse mundo que se encerra enquanto experimentamos viver em menos de um mundo, ao mesmo tempo em que precisamos mais do que nunca criar novas formas de existir e, enfim, participar ativamente na criação do mundo por vir.
Encarar essa participação ativa na produção de um novo mundo passa, primeiro, por algo aparentemente contraditório. Participar ativamente requer agora, mais do que nunca, que não sejamos seduzidos por pseudo-atividades, mas requer a reivindicação ativa do não fazer, a conhecida (e um tanto negligenciada pelas nossas esquerdas) ação pela não-ação: a ressignificação da necessidade e do poder político de uma greve total, que agora se trata também de uma necessidade sanitária e uma urgência por destruir o mundo que agoniza e fazer advir o mundo que, antes de tudo, era tido como impossível — já que nada como possível ou impossível faz mais sentido nesse momento. Segundo, precisamos nos preparar para reinventar a organização programática de nossas reivindicações orientadas para fora da lógica que, antes de tudo, possibilita, produz e depende de toda a violência sistêmica orquestrada de forma atonal pelo movimento solipsista de autopropulsão do capital — não podemos mais nos resignar aos ultimatos contingenciais que escancaram nossa fragilidade enquanto sociedade sem que encaremos com seriedade o problema central da mercantilização da vida. Talvez agora não só não temos tempo para ter medo, mas também tenhamos algum tempo para, finalmente, nos dedicarmos de fato à árdua tarefa de pensar — sobre o mundo, e sobre nós mesmos.
1 Acting-out é um conceito psicanalítico para algo como uma ação que visa “encenar”, externalizar algum impasse simbólico.