“Dois homens armados se aproximaram…”
Protestos realçaram a visita do presidente mexicano, Enrique Peña Nieto, à França em julho. Tortura, massacres, desaparecimentos: diversas organizações denunciaram a responsabilidade do Estado em atos cotidianos para os mexicanos.Sergio González Rodríguez
Estou diante de uma tela, vendo um vídeo. Um homem, cuja identidade ignoro, é torturado. Uma rede de televisão me convidou para uma entrevista no âmbito de uma transmissão política que logo irá ao ar. Num escritório, improvisaram um palco e, diante de uma câmera, ouço perguntas que me fazem sobre a violência extrema, mais precisamente a violência criminal.
Respondo a meu interlocutor defendendo o que chamo de tese Sontag: sim, é preciso aceitar que as imagens atrozes nos perseguem.1 Elas permitem que nos conheçamos melhor. A censura manipula a realidade, fazendo desaparecer os abusos, a inépcia, a ineficiência e a irresponsabilidade das autoridades.
Finda a entrevista, pedem que eu me sente diante de uma tela: devo contemplar algumas imagens. A mesma câmera que gravou minhas respostas é posicionada diante de mim. A coerção é óbvia. Lembro-me do olho cinematográfico de Dziga Vertov e seus preceitos (objetividade, espontaneidade, exatidão, imagens rudimentares sujeitas a montagem posterior) e aceito o desafio: percebo, logo de início, que a etapa seguinte será uma espécie de prova à qual preciso me submeter. Sento-me, e as imagens começam a desfilar diante de meus olhos.
Vejo-me como aquele personagem do filme Laranja mecânica, de Stanley Kubrick, que passa por uma terapia destinada a fazê-lo experimentar, pela exposição de cenas de violência extrema, uma rejeição instintiva.
Analiso as imagens. Num lugar qualquer, amplo e bem iluminado, alguém está dependurado do teto, de cabeça para baixo. A corpulência revela que se trata de um homem, completamente envolto numa espécie de plástico ou tecido cinzento; os pés, os joelhos, o tronco e o pescoço estão presos com fita adesiva de cor prateada. Meia dúzia de sicários em uniforme militar, máscaras negras e armas na mão rodeia o homem. Vão torturá-lo. Um deles, sem dúvida o chefe, comanda a ação. O som da gravação é ruim. A vítima adivinha o pior e se agita desesperadamente. Grita e geme.
A câmera que grava a cena se reflete em meus olhos diante da que me grava como observador. Ilusão de ótica em face da anomalia. A máscara do chefe dos sicários é a máscara horripilante, branca e negra, do Justiceiro (o Punisher, criado pela Marvel Comics), um personagem que ameaça, extorque, sequestra, tortura e mata. Nos quadrinhos, sob a máscara do Justiceiro – uma caveira com órbitas oculares felinas e queixo enorme –, esconde-se um especialista em artes marciais, em armas, em contraterrorismo e táticas militares que quer se vingar dos assassinos de sua família. A adaptação que vejo não admite efeitos especiais.
Ao lado do chefe dos sicários, um assistente empunha um facão. Ambos se aproximam da vítima à altura de seus órgãos genitais. A castração começa. A vítima é tomada por convulsões. Seus gritos parecem vir de muito longe. Os sicários jogam no chão o órgão que acabaram de mutilar, o sangue escorre, salpica; e enquanto isso conversam, concentrados no ato da tortura.
A câmera tenta captar minhas reações. Compreendo seu jogo: permaneço imóvel, sem piscar, atento às imagens. Estou dentro.
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Vem-me à mente a noite em que fui sequestrado e torturado no México. Um bando de criminosos, com ameaças e atentados, queria pôr termo às minhas investigações jornalísticas sobre assassinatos de mulheres na fronteira do México com os Estados Unidos. Conforme narrei em meu livro Huesos en el desierto,2 fui atacado na noite de 15 de junho de 1999 quando peguei um táxi a fim de voltar para casa.
Durante o trajeto, o carro parou subitamente em um dos lados da avenida. Dois indivíduos, empunhando armas, se aproximaram. Ordenaram-me que fechasse os olhos e me sentasse no meio do banco. O táxi partiu de novo; o motorista era cúmplice. Eu só deveria abrir a boca se me fizessem perguntas. Consultando meus documentos, certificaram-se de quem eu era: um jornalista, sem dúvida alguma.
Arrisquei alguns insultos e recebi golpes no peito, no rosto e na cabeça com o cabo dos revólveres. Em seguida, avisaram que me matariam num terreno baldio ao sul da capital. O táxi parou de novo para que um dos indivíduos descesse e outro – o “chefe”, como o chamavam – subisse. Durante cerca de uma hora, este me deu socos e cotoveladas, enquanto me ameaçava de estupro e morte; por fim, com a ponta de uma picareta de gelo, rasgou minhas coxas.
A aproximação de uma viatura policial com os faróis acesos, que consegui distinguir sob as pálpebras baixadas, dissuadiu meus agressores de continuar o serviço sujo. Ordenaram que eu limpasse o sangue do rosto e me abandonaram numa rua deserta, na própria zona onde haviam me sequestrado, e me aconselharam a guardar silêncio, não os denunciando. Mas, tão logo fiquei em condições, fui prestar queixa. As autoridades não fizeram nada.
Com esse sequestro, uma brecha se abriu em minha vida, uma brecha que não se fechou e que sobreviverá a mim, inexorável. Ser alvo de um delito, de um abuso, de uma atrocidade marca irreversível e infinitamente uma existência. Quando um episódio violento transtorna o cotidiano de uma pessoa, produz-se uma “anamorfose”, isto é, a vida se modifica e uma inversão perversa da realidade se impõe: a queda na abjeção.
Depois dessa agressão, passei a sofrer de lapsos de memória e fala, em consequência dos golpes recebidos. Os exames revelaram um coágulo entre o cérebro e o crânio. Tive de fazer uma cirurgia de emergência.
Após certo tempo, retomei minhas investigações e, meses depois, fui vítima de um segundo sequestro, com ameaças do mesmo tipo: o “comandante” me aconselhou a prestar bem atenção, pois assim “compreenderia perfeitamente” do que se tratava. “Não vamos machucá-lo”, disseram. “Não somos drogados.” Apenas me torturaram psicologicamente, repetindo o tempo todo: “O comandante quer que você preste atenção, entendeu?”. Isso durou mais de uma hora. Finalmente, deixaram-me numa rua, proibindo que eu me virasse.
No entanto, insisti em minhas investigações para denunciar a cumplicidade entre autoridades, funcionários, policiais e criminosos na região próxima à fronteira. As autoridades mexicanas nem tomaram conhecimento.
Quando da publicação de Huesos en el desierto, fui novamente ameaçado: iriam sumir comigo ou me matar. Mas, apesar de tudo, acho que até agora tive sorte: desde 2000, 84 jornalistas foram assassinados no México. Essas mortes foram recebidas com a maior indiferença. Os crimes continuam impunes. Tamanha ofensa às vítimas exige que nos interroguemos sobre os fundamentos do Estado e que nos lembremos de uma coisa: sem jornalistas, não há jornalismo. A vida deles é das mais preciosas.
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A guerra contra o tráfico de drogas no México custou entre 70 mil e 120 mil mortos ou desaparecidos (a incerteza dos números faz parte do problema). Cada uma dessas vítimas dá ao conceito de “anamorfose” um significado especial.
A tortura que continuo a observar com atenção nada tem a ver com a literatura: sou testemunha de um ritual bárbaro cuja finalidade é instaurar um clima de pânico e exibir uma supremacia vingativa. Perto de mim, o câmera manipula sua objetiva e – percebo por seus gestos – dá um close em meus olhos.
Continuo impassível. Na cena projetada, os sicários decapitam a vítima com uma serra; seu corpo já não é mais que uma massa de carne convulsa. Os matadores cumprem sua tarefa em poucos segundos e mostram para a câmera a cabeça decepada da vítima. O sangue escorre do pescoço. As imagens se dissolvem num fundo negro. O silêncio se instala: a prova acabou. Lembro-me então de que eu próprio fui uma vítima.
Transcrevi em meu livro El hombre sin cabeza3uma entrevista com um sicário especializado em decapitações. Encontramo-nos graças à intermediação de uma pessoa que ambos conhecíamos. O resultado foi um testemunho contundente dos usos rituais da violência sob a proteção da Santa Muerte, um culto popular adotado por traficantes de drogas, militares, criminosos, marginais e pobres das zonas periféricas do país.
No caso específico desse carrasco, como ele próprio me contou, recolhe-se depois da decapitação um pouco de sangue num frasco, para oferenda cerimonial à Santa Muerte, na presença do chefe do bando criminoso.
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Em outubro de 2014, vi numa banca de jornal uma revista com esta advertência na capa: “Desaconselhável para almas sensíveis”. Adquiri um exemplar e, em meu escritório, com a revista aberta à minha frente, examinei as imagens de violência extrema que povoavam as páginas.
Ciudad Juárez, estado de Chihuahua: três homens e uma mulher jazem mortos na calçada de uma avenida, rodeados por médicos legistas. Cuernavaca, estado de Morelos: um homem está estendido no chão, rosto e mãos amarrados com fita adesiva (as mãos juntas parecem imitar o gesto de prece). Uruapán, estado de Michoacán: no flanco de uma montanha, perto de uma estrada, uma dezena de corpos ensanguentados forma uma espécie de tumba. Culiacán, estado de Sinaloa: numa escadaria, junto a uma calçada, dois homens caídos; a postura indica que tentaram fugir, a carne foi perfurada por balas de grosso calibre. Boca del Río, estado de Veracruz: cerca de vinte homens e mulheres executados foram achados numa avenida, nus ou seminus, mãos e pés atados com fita adesiva. Torreón, estado de Coahuila: quatro cabeças decepadas em linha sobre o teto de um carro. Mérida, estado de Yucatán: um monte de cadáveres sem cabeça se mistura a outros corpos envoltos em panos; as tatuagens das vítimas se confundem com as estampas dos tecidos. Oaxaca, capital: a cabeça de um homem foi colocada no meio de uma passarela para pedestres, com um cartaz onde se lê uma mensagem ameaçadora contra um grupo rival. Carnes dilaceradas, sangue aos borbotões, mutilações, abjeção.
A extrema brutalidade dos acertos de contas entre criminosos e traficantes de drogas está intimamente ligada à subcultura da violência do próprio Estado, que inclui corrupção, ineficiência, inépcia e irresponsabilidade.
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Eu refletia sobre tudo isso quando os meios de comunicação divulgaram, quase simultaneamente, três fatos que confirmam o enraizamento da “anamorfose” em meu país:
1) A execução de pelo menos quinze pessoas num pretenso confronto entre 22 supostos delinquentes e o Exército mexicano em Tlatlaya, Edomex, entre 30 de junho e 1º de julho de 2014. Investiga-se a presumida responsabilidade de um oficial e três soldados (dos sete implicados).
2) O rapto, a tortura e o assassinato de seis estudantes em Iguala-Ayotzinapa,4 estado de Guerrero, e o desaparecimento de 43 estudantes entre 26 e 27 de setembro de 2014, atribuídos a policiais e criminosos ligados às autoridades locais.
3) Durante o verão de 2014, 46 corpos, entre os quais o de dezesseis mulheres, foram descobertos por ocasião da drenagem de um canal em Ecatepec, Edomex, bem perto da capital do país. Informadas, as autoridades tentaram minimizar os fatos ou calá-los.
Cada um desses casos apresenta particularidades que merecem ser examinadas com alguma atenção. No México, as Forças Armadas costumam praticar a tortura e violar os direitos humanos, conforme denúncia de várias organizações internacionais e civis. Um batalhão de soldados pode disparar contra um grupo de supostos delinquentes e dar a entender que sua morte foi consequência de um enfrentamento; pode falsificar a cena do crime, colocar armas nas mãos das vítimas, deslocar corpos e ameaçar de morte sobreviventes e testemunhas.
O sangue nas paredes e os tiros à queima-roupa denunciarão as execuções, assim como a voz da testemunha sobrevivente restituirá a verdade dos fatos. A acusação, formulada em voz baixa ou com firmeza, torna-se um grito tão insuportável quanto os estertores das vítimas ou a aflição das famílias quando sabem da morte abjeta de seus entes queridos.
A morte violenta exibe sobretudo o espetáculo da barbárie de que muitos querem fugir e que outros se esforçam para não ver ou ignorar. Opta-se pela censura, pelo silêncio, pelo véu bonito ou trivial lançado sobre a crueldade, à maneira de um preceito ético e estético – o que equivale a colaborar com essa barbárie e garantir sua perpetuação.
As manchas de sangue permanecem, com seus contornos informes, incrustadas nas paredes ou calçadas, resistindo ao passar do tempo. Mesmo que sejam lavadas, sempre restará uma aura sutil e indelével. A poeira se espalha, o raio se perde nas nuvens tempestuosas, mas o sangue impregna toda a natureza e a memória dos homens.
Por ocasião do sequestro, espancamento, tortura, desaparecimento e assassinato dos estudantes de uma escola normal do estado de Guerrero, o caso de Julio César Fuentes Mondragón chamou minha atenção. Esse jovem, aterrorizado pelos policiais que atiravam contra ele e seus colegas com armas de guerra, pôs-se a correr desesperadamente e foi cair nas mãos de outros policiais.
Descobriram seu corpo, algumas horas depois, numa zona industrial de Iguala. Tinham lhe arrancado um olho e a pele do rosto; morreu de fratura craniana. A “anamorfose” é o jogo selvagem que cria e marca a vítima e o agressor: arranco-lhe os olhos para que não me veja nem perceba o que farei com você, para que você próprio não consiga se contemplar no derradeiro instante nem compreender o que sou ou o que estou a ponto de fazer com você; meu anonimato é o seu, eu o separo de seu rosto e o transformo em mim mesmo.
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É evidente para mim, há anos, que a vida pública mexicana se desenvolve sob uma arquitetura abjeta, edificada pelos poderes econômico e político. A crise atual tem sua origem na modernização da economia e do Estado iniciada nos anos 1980.5
No começo de 1982, doze corpos foram descobertos na represa principal da estação de tratamento do Rio Tula, estado de Hidalgo, perto da capital do país. As vítimas eram todas colombianas, um bando que traficava cocaína para o México e assaltava bancos. Sob o comando do chefe de polícia da cidade, agentes com o mesmo treinamento da polícia federal prenderam vinte delinquentes. Oito acabaram soltos mediante suborno. Os outros doze, após sessões de espancamento e tortura que duraram vários dias, foram executados e atirados na água.
Trinta anos depois, esse mesmo modus operandise repete dia após dia no México. Dezenas de milhares de pessoas, mexicanos ou oriundos de outros países da América Central, desapareceram sem que as autoridades tomassem oficialmente providências. A “arquitetura abjeta” atrai suas vítimas e subjuga-as, sugando-as para dentro de suas anfractuosidades e fazendo-as sumir sem que, na maior parte das vezes, deixem o mínimo traço. O conluio entre o aparelho institucional e o crime organizado extermina tudo, inclusive a memória.
A descoberta de 46 corpos num canal de drenagem, no verão de 2014, estabelece uma certeza: apesar das mudanças realizadas recentemente na política e na justiça, as atrocidades continuam a acontecer. A impunidade projeta sua luz cinzenta; o desrespeito aos direitos humanos é permanente.6
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A situação no México não é um filme que opõe mocinhos a bandidos, policiais a ladrões. O Estado inteiro está implicado nela e sua gravidade tem um alcance de reação em cadeia que as classes dirigentes e mesmo inúmeros intelectuais preferem ignorar.
Palavras que pareciam ter saído de nosso cotidiano voltam aos nossos lábios: sangue, balas, polícia, Exército, assassinados, desaparecidos, morte, perigo, mal, terror, barbárie. Como se sabe, toda ferida profunda implica um episódio traumático e um período de luto com duas vertentes: a certeza de que todas as esperanças se foram, por serem enganosas – isto é, um verdadeiro país cosmopolita e moderno, de uma grande harmonia estética, sem disparidades –, e o processo de aceitação de uma realidade contraditória, indesejável, embaraçosa.
O poeta mexicano Javier Sicilia renunciou à poesia, dando desta forma adeus a seu filho Juan Francisco, assassinado em 2011 pelo crime organizado: “Não há mais nada a dizer,/ O mundo não é mais digno da palavra./ Sufocaram-nos por dentro/ Do mesmo modo que o asfixiaram,/ Que lhe dilaceraram os pulmões./ A dor nunca me deixará./ O mundo só sobrevive graças a um punhado de justos,/ Ao teu silêncio e ao meu,/ Juanelo”. Esses versos aludem à passagem sobre os justos em Gênesis, capítulo 18, versículo 28 e seguintes, que escapam à catástrofe final, mas lembram também a ideia de Theodor Adorno sobre a impossibilidade de fazer poesia depois de Auschwitz. Uma resposta estritamente pessoal, pois, tomada ao pé da letra, negaria o valor transcendental e básico da palavra, que sobrevive a todo ato de barbárie.
Em 2014, cerca de cem ossadas foram descobertas em fossos clandestinos no estado de Guerrero; e, em 2015, soube-se da existência de sessenta cadáveres já em decomposição num crematório abandonado da cidade de Acapulco.
De novo, esses dois acontecimentos nos obrigam a repensar e denunciar energicamente a transgressão de todos os limites por parte do Estado e do governo mexicano: sua permissividade e negligência diante do crime organizado, sua tolerância para com o extermínio. Desde 2012, no México, uma pessoa desaparece a cada duas horas.
A cultura pressupõe, conjuntamente, o tempo e a memória. Esses milhares de pessoas executadas ou desaparecidas no curso dos últimos anos de guerra e violência, que marcaram o início de um novo século, merecem um reconhecimento oficial digno desse nome e em âmbito internacional.
No futuro, se por acaso a lembrança de todas as vítimas da barbárie se perder, haverá sempre os relatos, as crônicas, os testemunhos, os romances, os ensaios, os poemas, os filmes, as fotografias, as músicas; essas obras de arte, essas publicações surgirão como provas indispensáveis para evocar uma tragédia tanto pessoal como coletiva. É nossa obrigação, por mais humilde que pareça nosso compromisso, reconhecer a existência desses mortos, um por um. Sem a lembrança permanente de sua presença, o futuro será impossível para todos nós. No aguardo, precisamos viver, fazendo-nos os defensores perpétuos da vida.
Sergio González Rodríguez é ensaísta e ganhador do Prêmio Anagrama 2014 de melhor ensaio em língua espanhola por Campo de guerra (Anagrama, Barcelona, 2014). Texto adaptado de “La violência extrema: yo dentro”, publicado pela revista espanhola Carta (2015).