Dois pesos, duas medidas
Na maior parte dos países do Ocidente, a opinião pública enxerga os conflitos no Oriente Médio por meio de lentes embaçadas. É como se a vida de um palestino valesse dez vezes menos que a de um judeuDominique Vidal
Numa das salas da coleção da Mesopotâmia do Museu do Louvre está uma imponente escultura em basalto de dois metros e meio de altura, realizada por volta de 1730 AC. Em seu ápice, diante de Shamash, deus do sol e símbolo da justiça, reina o rei Hamurabi, de quem a estátua reproduz o código, um dos mais antigos do mundo. Entre as leis compiladas em caracteres cuneiformes está aquela famosa do talião, que prega a reciprocidade entre crime e pena.
É neste princípio que se inspira o Antigo Testamento, ao afirmar em Levítico 24:19-20, “Se um homem fere de morte a outro homem, seja quem for, será condenado à morte. Se um homem fere um animal, ele o substituirá ? vida por vida. Se um homem causa uma enfermidade a um dos seus, será feito a ele o mal que causou: fratura por fratura, olho por olho, dente por dente”. Mais adiante, o Livro prega a reconciliação: “Nunca te vingarás, nem guardarás rancor”.
O Novo Testamento, em Mateus 5:38-39, preconiza o exato oposto da prescrição do Talião. Diz Jesus: “Vocês aprenderam o olho por olho, dente por dente. Eu, no entanto vos digo que não se deve resistir ao agressor. Ao contrário, se alguém bater em sua face direita, ofereça a esquerda para que bata também”. Quanto ao Corão, a recomendação varia (Surata II, verso 178): “recomenda-se a lei de Talião a respeito dos assassinados: homem livre por homem livre, escravo por escravo, mulher por mulher. Mas aquele a quem seu irmão tiver perdoado, deve enfrentar um julgamento justo e reparar de bom grado os danos causados”.
Podemos, com alguma razoabilidade, vaticinar que Ehud Olmert e Amir Peretz, primeiro-ministro e ministro da Defesa de Israel, entrarão na História apenas como responsáveis por uma guerra tão contraproducente quanto sangrenta. Em todo caso, eles terão inventado uma versão mais sangrenta para a fórmula bíblica: “Dez olhos por um olho, dez dentes por um dente”, pois as operações poeticamente chamadas de “Chuva de Verão” e “Mudança de Rumo”, custaram a vida de 160 israelenses, na grande maioria soldados; e de 1400 libaneses e palestinos, majoritariamente civis, aos quais se juntam as perdas do Hezbollah, estimadas em 80 (segundo o grupo) e 500 (segundo Israel) [1]. Esse saldo, que proporcionalmente supera o da segunda Intifada e de sua repressão (cerca de mil mortos israelenses e 4300 palestinos), traz uma questão duvidosa, a qual os encarregados de “vender” essa barbárie deveriam responder: a vida de um israelense, a seus olhos, vale dez vezes mais que de um árabe?
Quando certos seqüestros são ocultados
Característica dos conflitos ditos assimétricos, essa desigualdade ante a morte representa o calcanhar de Aquiles dos intransigentes de Israel. Bernard-Henry Lévy o percebeu bem, ao escrever, em sua coluna no Le Point, em 22 de julho: “Eu tenho vontade de perguntar àqueles que falam em desproporção como reagiriam, se grupos terroristas viessem em nosso território com total desprezo, e mesmo negação de nossas fronteiras, e raptassem soldados franceses.” André Glucksmann preferiu contra atacar: “A indignação de muitos é o que me indigna. Certos mortos muçulmanos têm o peso de uma pluma, outros pesam toneladas”, dois pesos duas medidas [2], opondo assim o barulho em torno dos mortos de Canaã ao silêncio relativo àqueles do Iraque, Tchetchnia e Darfur.
Mas a indiferença da mídia em relação aos segundos justificaria escamotear os primeiros? André Glucksmann terá dificuldade em afirmar, ele que em 1999 assinou, junto com Romain Goupil, Claude Lanzmann e Bernard-Henry Lévy, um manifesto de apoio à guerra em Israel declarando: “Nós condenamos, certamente, o terrorismo, mas não se caça o terrorista bombardeando os civis”[Le Figaro, 15 de novembro de 1999]]. Já nosso “Malraux (ou, segundo os bajuladores, Sartre ou Tocqueville) dos tempos modernos”, atribui a um seqüestro triplo a razão desta guerra, esquecendo-se que o vulcão Israel-Palestina conheceu sessenta anos de repetidas erupções: 1948, 1956, 1967, 1973, 1982, mais duas Intifadas e, por extensão, uma guerra civil no Líbano e duas no Iraque…
Toda tomada de reféns é evidentemente reprovável. Mas como é possível classificar assim a captura do soldado Gilad Shalit, no dia 25 de junho, e de outro modo a tomada de 34 ministros e deputados palestinos quatro dias depois, seguida da prisão, no início de agosto, do presidente do Conselho Legislativo? De igual modo, Israel não usou os dois prisioneiros do Hezbollah como pretexto para tomar como reféns populações inteiras: as da faixa de Gaza e a do Líbano – e mais, a própria população do norte de Israel? Sem contar que esses três soldados deveriam se beneficiar de uma troca de prisioneiros (a que Israel se recusou tanto no fim de junho como em meados de julho), enquanto os libaneses choram seus mortos e os 900 mil que retornam a suas casas devem reconstruir um país devastado…
Essa visão deturpada é a fornecida ad nauseam pela maior parte das redes de televisão, rádio e jornais. Alguém que se ressente dos três prisioneiros israelenses, pode ignorar os mais de 10 mil prisioneiros palestinos, dos quais 600 presos somente em julho? [3] O fato de o Hezbollah atacar com seus foguetes autoriza Israel a usar bombas de fragmentação, de fósforo ou mesmo urânio empobrecido, conforme atesta a Human Rights Watch [4]?
Essa organização não-governamental lembra também, solenemente, que a não-distinção entre alvos militares e civis constitui “crime de guerra”, e afirma ainda que “não encontrou caso em que o Hezbollah tenha se servido de civis para se proteger das represálias israelenses”. Certamente, “combatentes instalaram baterias em zonas de população civil ou de observadores da ONU”, mas isso “não justifica o uso, por parte de Israel, de uma força indiscriminada que tem custado a vida de tantos civis” [5].
A mesma lógica contra imigrantes árabes
De igual modo, seria possível confiar em quem reprova os danos causados pelo Hezbollah no norte de Israel, usando isso como justificativa para o “’dilúvio de fogo, ferro, aço e sangue” imposto por Israel e que fulmina as infra-estruturas do Líbano ? imóveis, estradas, pontes, portos e aeroportos, centrais elétricas, usinas, etc? Além do que o custo da guerra é estimado em um bilhão de dólares em um dos lados e entre 6 e 10 bilhões do outro…
Essa lógica de “dois pesos, duas medidas” não é aplicada apenas no Oriente Médio. Na classe política francesa, entre os jornalistas e muitos cidadãos, ela tornou-se uma espécie de reflexo mental tão pavloviano que às vezes parece inconsciente e atua nos mais variados aspectos. São prova disso os casos Ilan Halimi e Chahib Zehaf. Em 13 de fevereiro de 2006, Ilan Halimi, de 23 anos, foi encontrado morto após ter sido seqüestrado e torturado em Bagneux (Haut-de-Seine). Provavelmente, vista a origem da vítima e certos propósitos de seus chacais, o caráter anti-semita do crime não está totalmente descartado. Isso não impediu que as principais autoridades do Estado, assim como as igrejas, partidos políticos e mídias, se mobilizem e que 50 mil desfilassem em Paris, no dia 26 de fevereiro. Seis dias depois, em Oullins (Rhône), três tiros matam Chahib Zehaf, 42 anos. Aventa-se, pelas mesmas razões, o caráter racista do assassinato. Mas quase todos os que se engajaram por Ilan Halimi se calaram. Foi necessário esperar três semanas para que 2 mil pessoas se manifestassem em Lion. A SOS Racisme, colaria pouco depois um cartaz em que diz: “Um árabe morto em Oullins, um judeu assassinado em Paris, dois amigos que partem”…
Esse desequilíbrio nada tem de excepcional. Ele caracteriza a maior parte dos comentários sobre o racismo e o anti-semitismo na França. Os atos de violência contra os judeus aumentaram indiscutivelmente muito mais que os outros no período 2000 a 2002. Depois, cresceram com menos intensidade ou diminuíram, como em 2005. A Comissão Nacional para os Direitos do Homem põe o preto no branco [6]. Hoje, não só os políticos e jornalistas subestimam a retomada quantitativa do racismo contra árabes e islâmicos, como também negligenciam a dimensão qualitativa: o contraste entre a marginalização do anti-semitismo e o recrudescimento do preconceito contra árabes e muçulmanos após o 11 de setembro. De fato, 90% dos franceses dizem-se dispostos a eleger um presidente da República judeu, mas somente 36% votariam em um candidato muçulmano [7].
Que leiamos então, com o devido cuidado, o estudo realizado pela Comissão Nacional para os Direitos do Homem. Um a cada três franceses se diz racista (8% a mais que em 2004) e 63% desses (aumento de 5%) pensam que determinados comportamentos podem justificar reações racistas. Quanto às vítimas do racismo, os pesquisados elencaram primeiramente os norte-africanos e muçulmanos (42%), seguidos dos estrangeiros e imigrantes (26%), africanos e negros (17%), franceses (12%), judeus (6%) e “pessoas que tenham outra cor de pele” (6%).
Respeito, enfim, às resoluções da ONU?
Continuar hierarquizando as diferentes formas de racismo seria abrir caminho para cada uma delas. Alguns, visivelmente, não compreenderam isso, como confirmam as reações à recente dissolução da tribo Ka, em virtude da lei de 10 de janeiro de 1936 “relativa aos grupos de combate e milícias privadas”. O decreto governamental evoca, a justo título, “a propagação de idéias e teorias tendentes a justificar e propagar a discriminação, o ódio e a violência racial” [8]. Isso além de outros traços característicos de outros grupos ainda não dissolvidos, em particular a Liga de Defesa Judia, proibida nos Estados Unidos, no Canadá e, sob a forma do partido Kach, também em Israel. Já se perde a conta de quantas agressões essas organizações cometeram, como por exemplo o Betar, contra os militantes favoráveis a uma paz justa entre Israel e a Palestina, e mesmo nos tribunais [9]. Quem criou essa contradição?
Um último fato perturbador. Logo após o movimento contra o Contrato de Primeiro Emprego (CPE), o jornal L?Humanité fez um pedido de anistia em favor dos manifestantes condenados à cadeia pelos tribunais, e que não se beneficiaram do perdão presidencial do 14 de julho. Por que ninguém teve iniciativa semelhante para defender as centenas de jovens injustamente condenados em novembro passado quando houve a revolta nas periferias?
Debate meramente ideológico, diríamos. Na realidade não é assim: a recusa intransigente do sistema “dois pesos, duas medidas” condiciona a falta de uma possibilidade de solução pacífica do conflito árabe-israelense. Entre outros motivos alegados para a agressão, os dirigentes israelenses dizem querer uma solução para a incapacidade de Beirute de aplicar a resolução 1559 do Conselho de Segurança da ONU. Satisfeita com essa declaração, a comunidade internacional evita confessar sua surpresa em observar que pela primeira vez Telavive faz questão de respeitar resoluções das Nações Unidas.
Saber se Israel pretende ou não aplicar as resoluções do Conselho de Segurança e da Assembléia Geral [10], dará pano para manga. A resolução 181, de 29 de novembro de 1947, decidiu a partilha da Palestina entre dois Estados, um árabe, e outro judeu. A 191, de 11 de dezembro de 1948, funda o “direito de retorno” dos refugiados. A 242, de 22 de novembro de 1967, pede a “retirada das forças israelenses dos territórios ocupados”, em troca do reconhecimento de seu “direito de viver em paz no interior de fronteiras seguras e reconhecidas”. A 3226, de 22 de novembro de 1974, menciona explicitamente o “direito à soberania e à independência nacional do povo palestino”.
Que não sejam esquecidas, principalmente, as três mais recentes. Aquela do Conselho de Segurança (1397) que, em 12 de março de 2002, reafirma, pela primeira vez desde 1947, “uma visão onde dois Estados, Israel e Palestina, vivem lado a lado, em fronteiras seguras e reconhecidas”. A da Assembléia Geral (A/RES/ES-10/15) que, em 20 de julho de 2004, faz sua a decisão da Corte Internacional de Justiça, exigindo a destruição do muro na Cisjordân
Dominique Vidal é especialista em Oriente Médio e membro sênior da equipe editorial de Le Monde Diplomatique (França).