Dores de um parto incerto
Pela frente, um desafio enorme. De muitas maneiras, o segundo governo Dilma e o governo Temer revelaram algo complexo, mas já sabido: o país tem mais de um projeto de nação
O Brasil está profundamente polarizado. As redes sociais e o tom das manifestações de rua erigiram o Nós × Eles como um credo excludente da possibilidade de coalizão ou diálogo.
Detalhe simbólico: o vermelho tornou-se uma cor de adesão política. Igualmente, a camiseta da seleção brasileira, até então um símbolo neutro da brasilidade, foi incorporada por manifestações favoráveis ao impeachment da presidenta Dilma. Se alguém usa vermelho, esquerdista, petralha, esquerdopata! Se usa as cores da bandeira, fascista, coxinha, filhote da ditadura! Os dois lados estão absolutamente convencidos de que cada um representa o verdadeiro Brasil e de que o outro é, sem dúvida, o grande obstáculo ao progresso do país.
A marca da Terra de Santa Cruz sempre houvera sido o entendimento. Ao menos era assim que nos imaginávamos. Nossa história é extremamente violenta, mas as cúpulas políticas seguiram o “acordão”. Em 1853, Honório Hermeto Carneiro Leão reuniu conservadores e liberais em um único ministério. O resultado da política do marquês do Paraná foi um surto de crescimento estimulado pelo fim do tráfico negreiro e a estabilidade partidária. O acordo era facilitado pela proximidade social dos políticos: conservadores e liberais eram, ambos, oriundos de elites brancas, latifundiárias e escravistas. O “gabinete da conciliação” foi um modelo canônico.
A história do Brasil é violenta. No topo da pirâmide política, a harmonia era a marca; na base, a violência mostrava-se extrema. A queda de D. Pedro I, em 1831, a proclamação da República, em 1889, a Revolução de 1930 ou a queda de Getúlio Vargas, em 1945, foram processos pouco cruentos. Eram acordos de bastidores, missas celebradas com prévio ensaio na sacristia. Somos um país de inúmeras Revoluções Gloriosas. Quando assinalou a resistência total da aldeia sagrada de Canudos diante das tropas federais (1897), Euclides da Cunha destacou com acerto: “Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até o esgotamento completo”. Era uma exceção, como notou o autor dos Sertões.
Veja-se um fato concreto: o tom do debate de 1961-1964 era de guerra civil. Os dois lados brandiam armas e princípios extremados e juravam resistir até a morte. Ocorreu o golpe civil-militar e o país, à beira do caos até 31 de março de 1964, calou-se rapidamente. Houve prisões e resistência, porém, comparado com o que parecia emergir do quadro político, o golpe foi incrivelmente eficaz. O mesmo ocorreu ao final da ditadura, em 1985. Não fosse o mau humor do general Figueiredo em não querer passar a faixa ao vice José Sarney, pareceria uma transição do próprio regime castrense. Aprimora-se um modelo de coalizão que se impôs (talvez com exceção parcial da era Collor): ministérios distribuídos garantiam governabilidade. Na base, o cassetete descia rápido e sem muito escândalo público.
O que mudou entre 2013 e 2017? Temos redes sociais, em primeiro lugar. Temos também uma dupla transformação: a estabilidade da moeda desde a era FHC e uma maior redistribuição de renda no período Lula. A crise econômica ameaçou as duas conquistas. Uma massa que passara a andar de avião e a comprar frango e iogurte, que obtivera mais acesso ao ensino superior e até à casa própria estava pouco disposta a pagar o preço da crise e retornar ao ponto de partida. Ressentimentos poderiam, agora, fluir pelo Facebook. A culpa por tudo? Óbvio, era do outro lado.
Um fato antigo tornou-se novo. A corrupção histórica e endêmica, tolerada estoicamente pela sociedade brasileira, entrou na pauta do dia. As denúncias tinham crescido na era Sarney. Aumentaram quando do impeachment de Collor. Voltaram à tona com as privatizações da era FHC. O Mensalão do PT e o escândalo da Petrobras reforçaram o debate sobre probidade e administração. O STF adquiriu foros de eixo político. Muita gente já não sabia a escalação dos onze jogadores da seleção, entretanto dominava o nome dos onze ministros do Supremo. Isso era novo. Para o bem e para o mal, a política foi judicializada e o Supremo deixou a esfera estrita do debate judiciário.
Um turning point da crise foi o afastamento da presidenta Dilma. Um golpe para a esquerda brasileira e um acerto da justiça para grupos contrários. A presença do STF no processo dava o revestimento jurídico à legalidade. A ausência de um crime claro de responsabilidade era brandida a favor da tese de ato ao arrepio da lei. Desgastado pelo escândalo revelado na Lava Jato e pela crise, o governo Dilma findou em 2016. Teria morrido de infecção interna ou assassinado a sangue-frio?
Um ano depois
A troca de comando do Executivo foi marcada por duas continuidades, ainda que Temer fosse de outra cepa. A primeira foi a crise econômica. O número de desempregados aumentou e passa de 12 milhões. A inflação foi debelada abaixo de dois dígitos pela pouco criativa política de juros e por falta de poder de compra da população. A proletarização das classes C e D retornou. O déficit público aponta riscos. Sempre alegando a herança maldita do governo anterior, a equipe econômica ainda não conseguiu ultrapassar o limite da retórica. A crise segue firme, com anúncios frequentes de que o pior já teria passado. O mantra é repetido em gabinetes de Brasília, mas é pouco sentido pelo assalariado ou pelo desempregado. Um minguado brioche foi distribuído: acesso às contas do FGTS inativas. A fome é bem maior.
A segunda continuidade nefasta foi a da corrupção. Se a falta de ética foi um poderoso slogan contra o governo do PT, o número de implicados e de escândalos na nova administração mostrou que tudo continua como dantes no quartel de Abrantes. Não era um furúnculo tópico; a improbidade era uma septicemia.
Houve mudança? O discurso do ajuste feito pelo governo Temer está provocando mudanças profundas na sociedade brasileira. Do ensino médio à Previdência, inauguramos transformações rápidas sustentadas pela base parlamentar. A sociedade está em uma “estafa emocional”. E, mesmo sob a ameaça de perder direitos, parece que o país retorna a suas práticas mais tradicionais de manter a violência na base e fazer ajustes nas cúpulas. Aristides Lobo parece ter mais razão desta vez: o povo assiste a tudo bestializado.
Pela frente, um desafio enorme. De muitas maneiras, o segundo governo Dilma e o governo Temer revelaram algo complexo, mas já sabido: o país tem mais de um projeto de nação.
Há uma opinião pública cindida e uma elite política que se acostumou à blindagem de Brasília e dos cargos. Em plena era de denúncias, não existe um movimento dos altos escalões políticos na direção da transformação efetiva. Há um misto do “grande medo” do verão de 1789 que parece ter se intensificado com a crise da segurança no Espírito Santo. Tudo indica que 2016 pertence à categoria dos recortes cronológicos como 1968: anos que teimam em não acabar.
O palco está repleto de tomate. O público está irado, mas sem atores que consigam, ao menos, calar as vaias de 50% da plateia. Éramos, por décadas, o país do futuro. Não estamos mais conseguindo ser o país viável do presente. É um momento complicado, porém rico. Pela primeira vez e em escala nacional, o Brasil não pode ser explicado ou controlado por meia dúzia de políticos. Se, em 2016, a quase histeria definiu os lugares de muitos, passado um ano, governo e oposição, em papéis trocados, tateiam pelos murmúrios e silêncios da sociedade e pelos vazamentos do Judiciário. As redes, curiosamente, incendiaram o debate, todavia não indicam um sinal claro sobre o amanhã. É o parto de um novo momento, e a família tupiniquim, angustiada, não sabe se aguarda um lindo rebento ou o bebê de Rosemary. Cumprindo a profecia de Alejo Carpentier sobre a América Latina, voltamos a ser a terra das “impossibilidades ilimitadas”.
*Leandro Karnal é historiador (Unicamp).
{Le Monde Diplomatique Brasil – edição 117 – abril de 2017}