Duzentos anos de discussão: história da saúde pública, pobreza e covid-19
Dados da Rede Nossa São Paulo mostram um aumento de 45% nas mortes por covid-19 nos 20 distritos mais pobres da cidade e de 36% nos 20 mais ricos. Condições de moradia explicam esse dado. E as condições de moradia, que resultam na morte mais acelerada nos bairros pobres, por sua vez, é resultado da política de habitação do país
Dia desses, Jair Bolsonaro relacionou as mortes por covid-19 à renda. Mal sabe ele que esse é um debate secular na história da saúde pública mundial. Nesse debate quem defendeu a relação entre mortalidade e pobreza foram os progressistas atentos às desigualdades sociais. E esses progressistas foram um a um abafados por práticas conservadoras de administração pública. Bolsonaro, em uma lógica particular só sua, defendia a abertura do comércio para que a renda per capita não caísse e, assim, as pessoas não morressem. A relação não faz muito sentido. Mas a relação histórica já feita durante séculos tem muito a nos dizer sobre o nosso presente, como a história sempre tem.
Durante cerca de dois mil anos, a medicina europeia sustentou que as doenças eram preeminentemente causadas por miasmas. Miasmas seriam coisinhas pútridas, invisíveis a olho nu, que se despregavam de locais úmidos como pântanos, de corpos mortos, de amontoados de lixo e que causariam infecções, febres e todo tipo de comprometimento sobre a fisiologia humana. À parte deste conhecimento científico, o senso comum também percebia um fator social no complexo jogo que causava doenças e mortes: que pobres adoeciam mais e morriam mais cedo.
No início do século XIX, alguns médicos franceses resolveram utilizar as estatísticas para verificar se a percepção popular tinha respaldo na realidade ou não. Os nomes mais importantes foram René Villermé e Alexandre Parent Duchâtelet, que compilaram os dados dos arrondissements (que são espécies de bairros) de Paris para tentar ver se a configuração urbana poderia dizer algo sobre as doenças. Cruzaram dados de: (1) locais considerados insalubres porque deles emanariam miasmas como lugares pantanosos, com abatedouros, muito úmidos de um lado e, de outros, locais teoricamente livres de miasmas; com estatísticas de (2) febres intermitentes, tuberculose, cólera, paralisias nervosas etc. Para espanto geral, o resultado foi praticamente uma “heresia científica”: se os milenares miasmas realmente existiam e tivessem alguma importância na causação de doença, seriam cientificamente irrelevantes.
Qual foi, então, a única conclusão cientificamente importante que os médicos encontraram naqueles dados científicos? Que nos “bairros” pobres de Paris se adoecia mais e se morria mais cedo, enquanto nos bairros ricos, não. Ou seja: a pobreza matava. Perplexo com os resultados que contrariavam dois mil anos de certezas, o conselho de saúde pública parisiense respondeu que não duvidava da autoridade científica dos autores do estudo, mas que seguiria livrando a cidade dos focos de miasmas.
Até porque esses estudos colocariam a medicina e a saúde pública em outro patamar, pois tirariam os dois conhecimentos do cuidado pessoal, único, centrado no paciente, para uma discussão social, sobre política e economia, focada também na desigualdade. Ou seja, nessa nova compreensão, não há como retirar a medicina da sociedade e pensar saúde e doença sem considerar arranjos e circunstâncias sociais. Afinal, como ignorar a exploração do trabalho, a aglomeração urbana, a baixa renda que resulta em desnutrição, quando se pensa em tuberculose, mortalidade infantil e simplesmente culpar uma bactéria, um germe ou um vírus? A conclusão desse tipo de pensamento é que a medicina e a saúde pública precisam, além de olhar no microscópio, olhar para a sociedade e entender a doença como o resultado desse complexo jogo que envolve cultura, distâncias econômicas e ordenamentos políticos que perpetuam certa “imunidade” para alguns grupos sociais da mesma forma como gera “grupos de risco”, para usar uma linguagem mais atual.
Reforma sanitária
Entretanto, apesar da grande importância que teve no período, não são eles os lembrados como os fundadores da saúde pública e sim uma personagem que apareceria posteriormente: o inglês Edwin Chadwick, que em um momento concordou com o pensamento de Villermé e Duchâtelet, mas que posteriormente desenvolveu uma reforma sanitária de cunho basicamente tecnológico, de reforma urbana, tratamento de águas e inócua para uma discussão econômica e política. Igualmente, Rudolf Virchow, que seria uma das referências alemãs no século XIX dessa “teoria social da epidemiologia” para os historiadores do século XX, é lembrado em compêndios enquanto aquele que se imortalizou como “o pai da epidemiologia” foi o também inglês John Snow, que teve o mérito de entender como se transmitia a cólera, uma doença terrível que enfim foi controlada, mas que também deixava a questão social para segundo plano. E talvez exatamente isso tenha lhe rendido a paternidade da epidemiologia: certa ideia de assepsia com relação a conteúdos econômicos, políticos e – por que não dizer? – morais.
No século XIX, o Brasil passou ao largo da discussão social em medicina e saúde pública. Não poderia ser diferente: como discutir justiça social em país escravista? Como falar sobre a saúde dos trabalhadores sendo que a maneira de fazer o “trabalhador” brasileiro do século XIX trabalhar era a violência? A primeira vez em que o Estado brasileiro efetivamente olhou para a relação entre miséria e doenças foi na Primeira República, a partir da frase contundente de Miguel Pereira: “O Brasil é ainda um vasto hospital”. Daí iniciaram-se campanhas em direção aos sertões no combate de doenças endêmicas no Brasil, como a malária, a ancilostomíase, a opilação, a doença de Chagas e outras doenças endêmicas e, também, para campanhas de prevenção.
Sobre outro curioso momento em que o Brasil parecia inclinado a considerar as discrepâncias econômicas no seu pensamento sanitário, transcrevo parte do discurso do então presidente João Goulart, provavelmente escrito por Mário Magalhães da Silveira, sugestivamente em dezembro de 1963, meses antes da barbárie:
“Permitam-me, porém, os eminentes técnicos dos sistemas de Saúde Pública do país, valendo-me da experiência do constante convívio com trabalhadores das cidades e com a verdadeira massa de párias da nossa agricultura, que faça uma advertência, diante de enganadoras perspectivas que possam abrigar segundo as quais é possível obter-se uma profunda melhoria da saúde de nossas populações, com a simples aplicação de medidas de ordem médico-sanitária: a Saúde, sabem os senhores mais do que eu, é um índice global, resultante de um conjunto de condições – boa alimentação, habitação higiênica, roupas adequadas, saudável regime de trabalho, educação, assistência médico-sanitária, diversões e ainda outros fatores que só podem ser conseguidos em consequência do desenvolvimento econômico da nação e da distribuição equitativa de suas riquezas.”1
Hierarquia social
Como se sabe, em seguida o país caiu na ditadura militar, porque aos olhos das elites brasileiras o conjunto de reformas do governo Goulart representava um perigo de demasiada igualdade em um país cuja identidade parece ser exatamente a hierarquia social. E no contexto da ditadura nasce o Movimento da Reforma Sanitária, cujo marco institucional é a 8º Conferência Nacional de Saúde realizada em 1986, que sedimenta a constituição de 1988. A respeito da saúde na constituição é talvez a mais progressista do mundo e trilhou os caminhos para a criação do Sistema Único de Saúde. Essas conquistas brasileiras se basearam naquele conhecimento ampliado de medicina e saúde pública: a medicina está na sociedade, mas a sociedade também está na medicina. Pensar em saúde e doença é também pensar em condições e condicionantes sociais de existência. Ignorar isso é fazer ciência ruim.
Não por acaso Atila Iamarino defendeu as ciências humanas no Roda Viva quando questionado sobre os ataques do assessor de Bolsonaro e irmão do Ministro da Educação, Arthur Weintraub, que sugeriu em seu perfil no Twitter que um estudante da PUC-PR se dedicasse à carreira de confeiteiro. Atila sabe bem da necessidade de sociólogos, antropólogos e historiadores para a compreensão de fenômenos sociais, inclusive daqueles que alguns acreditam ser jurisdição exclusiva das ciências médicas, biológicas e exatas como a propagação de doenças e profilaxias. O microscópio é importante, mas não pode ser ignorada a macroscópica dificuldade social em que vivem os mais vulneráveis, cujos nexos simbólicos, valorativos, afetivos, comunitários, enfim, sociais, são explicados pelas ciências humanas.
Contraditoriamente, em nome da ausência de ideologias, cortam-se os estudos das ciências humanas e faz-se um trabalho para desacreditar a ciência em geral, mas especialmente o campo das humanidades em particular. Ignora-se assim que qualquer ciência, a história, a medicina, a saúde pública têm versões. Querer transformar qualquer um desses campos de conhecimento em um manual técnico de implantação sem controvérsia é, por si só, ideológico. Afinal, pretende-se apagar outras versões de entendimento de um mesmo fenômeno que poderiam agregar conhecimento. Não é possível entender o comportamento do vírus na sociedade querendo arrancar a sociedade do estudo. E não há nada mais ideológico do que supor que só quem desconsiderar o comportamento daqueles que o vírus mata é quem faz o estudo legítimo; é exatamente o contrário: é impossível compreender o vírus sem compreender a sociedade por ele afetada. O comportamento do vírus é influenciado pelo comportamento da sociedade e o comportamento da sociedade é influenciado pelo comportamento do vírus.

Covid-19 e a desigualdade social
Dados da Rede Nossa São Paulo mostram um aumento de 45% nas mortes por covid-19 nos 20 distritos mais pobres da cidade e de 36% nos 20 mais ricos. Condições de moradia explicam esse dado. E as condições de moradia, que resultam na morte mais acelerada nos bairros pobres, por sua vez, é resultado da política de habitação do país. E o ritmo de contágio no Brasil tem sido altíssimo, muito maior do que se supunha, sendo os mais pobres os mais afetados, como costuma ser. De uma maneira bastante cautelosa, alguns biólogos estavam apontando para uma provável vantagem do Brasil na desaceleração do vírus devido ao clima quente e úmido. Foram as condições econômicas e políticas que deram o tom do contágio.
Estudar o vírus biologicamente é importante, mas a epidemiologia foi e é uma ciência social tão importante quanto as outras ciências sociais e humanas. Aquele que diz outra coisa está sendo…. ideológico.
Portanto, Jair Bolsonaro tem razão ao relacionar mortes e condições sociais. O que não significa que deveríamos afrouxar o isolamento social, que era a conclusão do seu estranho raciocínio. O presidente está certo ao afirmar que o que entendemos como natural e biológico está repleto de social. O que precisamos é entender como essas coisas se relacionam. E então, em algum momento, no futuro, tomara que enfim resolvamos nos rendem a essa estranha ideia de que o mundo que nós produzimos é o mesmo mundo que faz proliferar epidemias devastadoras, caos climático e concentração de renda. E aí também poderemos parar de fazer de conta que a riqueza e a pobreza são resultados de méritos e deméritos pessoais e que a morbidade e a mortalidade dos indivíduos não têm nada a ver com isso, assim como as epidemias, que surgem das nossas maneiras sociais de lidar com o outro e com a natureza.
Supõe-se isso desde a época dos miasmas. Só que hoje há estudos que o comprovam.
1 Escorel, S & Teixeira L. “História das políticas de saúde no Brasil de 1822 a 1963: do império ao desenvolvimentismo populista”. In: Giovanella, L. e al. (orgs.), Políticas e Sistemas de Saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2008. p. 317.
Rafael Mantovani é sociólogo, doutor pela FFLCH/USP e pós-doutorado pela Faculdade de Saúde Pública/USP. Autor do livro “Modernizar a ordem em nome da saúde: a São Paulo de militares, pobres e escravos (1805-1840)” -Fiocruz (2017).