Editorial: E agora? - Le Monde Diplomatique Brasil

Editorial

E agora?

por Silvio Caccia Bava
1 de fevereiro de 2018
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Se as eleições de 2018 ainda são um importante marco dessa disputa, é preciso olhar para um horizonte mais amplo, organizar a resistência e entender que a construção de um pensamento hegemônico se faz no dia a dia

Com a condenação de Lula fica cada vez mais evidente a falência das instituições democráticas. A politização do Judiciário transformou-o num poderoso instrumento de perseguição política. Os demais poderes da República se alinham e se calam, em cumplicidade de classe social.
O que vai acontecer com o Brasil, agora que nossa democracia foi suspensa, que nossos três poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário – foram capturados e são controlados por grupos de interesse e quadrilhas que agem contra a democracia e contra os interesses das maiorias?
Vale a pena legitimar esta falsa democracia? Vale a pena votar nas eleições deste ano? Qual caminho sobra para defendermos nossos direitos de cidadãos e cidadãs, para defendermos uma democracia que nos represente? As ruas? A desobediência civil? A insurreição?

Os protestos contra as violações de direitos crescem, assim como crescem os grupos provocadores de direita. Mas todos eles ainda se restringem ao mundo da militância, muitos ostentando seus cabelos brancos. As novas gerações não conquistaram muito espaço. Movimentos como os de juventude, o movimento contra o genocídio da juventude negra, o movimento das jovens mulheres negras, necessitavam ter um protagonismo maior.
Mesmo que o governo Temer tenha 97% de reprovação e a vida tenha se tornado mais difícil, a sociedade civil ainda está relativamente quieta. As marchas e passeatas são diárias, mas aqueles que não são militantes, as maiorias espoliadas, as periferias das grandes cidades, continuam em silêncio. Há perplexidade e desesperança por toda parte.
A proposta de reforma política se mantinha em pé enquanto era possível imaginar a possibilidade de uma Constituinte independente. Mas o atual Congresso, com os parlamentares em sua maioria organizados em lobbies para a defesa de interesses corporativos, muitos indiciados em crimes de corrupção, não aceita essa possibilidade nem sob pressão popular.
Esse Judiciário, que assume seu lado conservador e de direita, tem hoje a última palavra na política nacional. Ignora provas e se omite em casos flagrantes, como o do senador Aécio Neves, mas considera legítimo “intuir” a culpa de Lula.
Esse Executivo criminoso e entreguista, o governo Temer, acaba de dar isenção tributária às grandes empresas petrolíferas internacionais que compraram, a preço de banana, nossas reservas do pré-sal. Há estimativas de que essas isenções possam chegar a R$ 1 trilhão. Quem autorizou o presidente Temer a dar esse presente às multinacionais?1
De um lado, o governo corta dinheiro da saúde, da educação e das políticas sociais; de outro, concede enormes isenções de impostos a multinacionais, deixando de receber impostos que poderia repassar às políticas sociais, algo estimado em R$ 40 bilhões por ano.
A polarização do cenário político revigora o PT, reforçado pelas caravanas de Lula e por sua crescente preferência eleitoral, já batendo nos 45%2 em dezembro passado. Mas a crise política não se resolve nem com a reabilitação do PT nem com a participação de Lula nas eleições. Ela é uma crise sistêmica. O que precisa mudar é o sistema político, são as regras que permitem às elites controlar e reprimir as maiorias.
Na história, essas mudanças se dão por mobilização dos setores populares, quando os cidadãos buscam se reapropriar do poder de decidir sobre a própria vida, coletivamente. Em alguns casos, fortes movimentos de massa impuseram sua agenda e reformas às instituições políticas; em outros, esses movimentos foram às armas, como o exemplo das lutas contra o colonizador europeu na África.
A construção das frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo são importantes iniciativas para organizar mais a resistência democrática e a defesa de direitos. Essa resistência, porém, precisa ser mais ampla, convocar os cidadãos comuns a se organizarem em coletivos, comitês de luta pela democracia, tornar-se cada vez mais pública.
A disputa política na sociedade se dá pela disputa das narrativas. E os setores neoliberais e conservadores se armaram para essa disputa. São pesquisas, palestras, cursos, seminários, livros, filmes, programas de televisão e notícias que vão apresentando uma visão de mundo e as vantagens de suas crenças. Nem todos dispõem de recursos para atuar em tantas frentes, mas é preciso estar alerta para o fato de que essa cadeia de conhecimentos e propaganda funciona.
Entre os principais desafios para os próximos anos está estimular o pensamento crítico, produzir análises e debates que contribuam para a formação e instiguem os jovens e todos os setores discriminados a construir uma nova frente política e enfrentar o regime autoritário que se configura e a nova forma de espoliação dos trabalhadores, isto é, de todos aqueles que vivem de seu trabalho.


É difícil prever a evolução da conjuntura, mas com o acirramento dos movimentos sociais e da repressão começa a existir a necessidade de os que lutam pela democracia se organizarem, cada grupo em seu território, seja pela ativação de entidades locais, seja pela criação de organismos de base, coletivos horizontais, suprapartidários, formando núcleos de resistência.
A aposta é refundar a democracia em bases populares, para a defesa dos interesses das maiorias. Se as eleições de 2018 ainda são um importante marco dessa disputa, é preciso olhar para um horizonte mais amplo, organizar a resistência e entender que a construção de um pensamento hegemônico se faz no dia a dia, disputando ideias e políticas, fazendo a crítica das políticas atuais e apresentando alternativas para disputar corações e mentes.

Silvio Caccia Bava é editor chefe do Le Monde Diplomatique Brasil



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