É essa reforma que queremos?
No Estado de São Paulo, a transferência de todo o sistema público de saúde para organizações sociais terceirizadas vai na contramão de um valor crucial à humanidade: a preservação da vida, que não pode ser regido pela lógica da iniciativa privada, sempre em busca do lucro
Desde os primeiros anos da década de 1980, estamos vendo crescer em todo o mundo uma onda global de reforma do setor público, sempre com vistas a reduzir o tamanho do Estado, mediante promessas de agilizar a administração e dotar os serviços públicos de maior eficácia e eficiência, com redução de custos.
Essa ideia, porém, contempla dois dilemas que precisam, necessariamente, ser enfrentados: o primeiro, é que o impulso para organizar governos que funcionem melhor e custem menos, geralmente envolve táticas de curto prazo para cortar gastos, o que, em longo prazo, dificulta a obtenção de bons resultados; o segundo é justamente o de decidir o que o governo deve fazer.
Na prática, o que temos visto é que a grande maioria das reformas administrativas – e no Brasil não é diferente – tem se concentrado na identificação das partes do Estado que podem ser reduzidas, ou seja, exatamente naquilo que o Estado não deve fazer. Isso tem gerado grandes discussões a respeito das políticas públicas adotadas e, principalmente, do modelo de Estado que se pretende implementar. Da forma como vem sendo colocada, além de não definir o núcleo essencial do Estado que se quer, essa proposta também não define o que deve e pode ser feito para que ele funcione melhor.
Por essas razões, muitas questões envolvendo os atos da administração pública e as políticas públicas adotadas estão sendo submetidas ao controle jurisdicional, principalmente quando dizem respeito às atividades de prestação de serviços do Estado e às de cooperação com entidades do terceiro setor.
A saúde pública está justamente dentro deste contexto. A Constituição cidadã estabelece que “a saúde é direito de todos e dever do Estado”. O Sistema Único de Saúde (SUS) foi uma conquista da população brasileira e fruto de décadas de lutas dos movimentos sociais.
O SUS, que tem como princípios a universalidade e a igualdade dos brasileiros no atendimento da saúde, começou a ser implantado no início da década de 1990, no justo momento em que o sistema privatista ganhava força em nosso país.
Em 1993, o Banco Mundial apresentou o relatório “Investimento em Saúde”, que propunha dois tipos de serviços: os competitivos – passíveis de financiamento – e os discricionários, oferecidos à sociedade de acordo com a sua capacidade de aquisição. Ou seja, saúde básica para todos, mas, a partir desse patamar, a atenção à saúde deveria ser comprada no mercado. Concomitantemente à implantação do SUS, também ocorria, em 1998, o processo de regulamentação dos planos de saúde.
Diante desse quadro, o governo Fernando Henrique Cardoso fez aprovar uma lei federal que possibilitava a terceirização da saúde, que atualmente está sendo questionada no Supremo Tribunal Federal por meio de ação direta de controle da constitucionalidade. O STF indeferiu, por maioria de votos, a medida liminar pleiteada, mas o mérito da ação ainda não foi julgado, não obstante ela ter sido proposta há mais de dez anos.
Nesse meio tempo, o governo do estado de São Paulo entregou para as denominadas OSs (organizações sociais de saúde) a gerência de hospitais e serviços públicos, sob a justificativa de que haveria, então, flexibilidade na compra de insumos, na administração dos recursos humanos e maior eficiência no atendimento à população.
É bem verdade que a nossa Constituição Federal prevê a possibilidade de participação do setor privado na área. Entretanto, faz menção expressa de que esta deva ser de forma complementar. E o que deve ser entendido por complementar?
Quais são os limites dessa participação? Qual o grau de autonomia do setor privado? Até onde o administrador público poderá inovar, sob o pretexto de maior eficiência? Quais as atividades que devem ser prestadas diretamente pelo Estado? E nesse contexto, qual será o novo papel do Estado?
O que verificamos até o momento é que as OSs receberam hospitais (construídos com dinheiro do Estado), equipamentos (caríssimos) e funcionários públicos e estão administrando essa infraestrutura e atendendo a população. Para tanto, recebem do governo um pagamento com direito a bônus de administração. Trata-se de um grande negócio, sem qualquer risco. Contudo, a gestão hospitalar pelas OSs não foi discutida como parte do conjunto de assistência à saúde, para garantir a integração dos serviços e a integralidade da atenção, e não existem indicadores claros de sua qualidade e eficiência.
Falta de médicos e longas filas
Passados dez anos do início dessa experiência com as OSs, ainda restam dúvidas sobre a maior eficiência no atendimento da população. Diariamente encontramos, nos mais diversos meios de comunicação, inúmeras notícias sobre falta de medicamentos básicos, de médicos e demora no auxílio aos doentes.
Recentemente, uma lei estadual veio para radicalizar a situação da saúde em São Paulo. De iniciativa do governador do estado, José Serra (PSDB), a referida lei aprofunda o modelo de terceirização da saúde pública, estabelecendo a possibilidade de organizações sociais receberem todos os hospitais e equipamentos de saúde. Até então, somente as novas instalações poderiam ser terceirizadas.
A partir da indigitada norma, todo o sistema de saúde será, a livre critério do Executivo, sem licitação, retirado das mãos do Estado. Entre eles, o secular Hospital Emílio Ribas, referência no controle epidemiológico de doenças.
Resta-nos, então, a busca pelo equilíbrio na aplicação dos princípios da eficiência e da legalidade, com o objetivo de não permitir que a privatização represente única e exclusivamente o anseio de fugir ao regime jurídico de direito público, afastando a realização de licitação para a compra de bens e serviços e da contratação por concurso, sob o pretexto de ineficiência da administração estatal. Principalmente se lembrarmos que, em passado não muito distante, os cidadãos de São Paulo já vivenciaram a experiência do malfadado PAS (Plano de Assistência à Saúde), desenvolvido entre 1995 e 2000, que teve até uma Comissão Parlamentar de Inquérito instalada na Câmara de Vereadores para apurar o descalabro em sua gestão.
O modelo de Estado passa por nova e profunda discussão e, se de um lado, sabemos que ele atualmente não tem condições de monopolizar a prestação direta e executiva de todos os serviços sociais de interesse coletivo, parece claro que não pode ser reduzido a mero ente regulador; porque o Estado apenas regulador é o Estado mínimo, utopia conservadora que se mostra absolutamente insustentável ante as desigualdades das sociedades atuais.
Não se pode apontar, com exatidão, os novos contornos do Estado do início do século XXI. Mas o fato é que, ainda que menor, existe a necessidade de um Estado forte financeira e estruturalmente, que tenha capacidade de ditar políticas públicas eficazes em médio e longo prazo, que tenha estratégia, com burocracia tecnicamente capaz e motivada para induzir, regular, fiscalizar e promover os serviços sociais básicos.
A saúde pública não é mercadoria. É compromisso ético-social dos que nela militam. Além disso, traduz um valor tão crucial à humanidade que não pode ser regido pela lógica que submete a iniciativa privada: a primazia do lucro. Que sejamos capazes de zelar, defender e aprimorar o nosso Sistema Único de Saúde, patrimônio de todos nós, brasileiros.
*Anna Trotta Yaryd é promotora de Justiça da Promotoria de Direitos Humanos – Área da Saúde Pública, do Ministério Público do estado de São Paulo. Arthur Pinto Filho é promotor de Justiça da Promotoria de Direitos Humanos – Área da Saúde Pública, do Ministério Público do estado de São Paulo.