E o que diz a voz do morro?
Muito se tem escrito sobre a artimanha utilizada pelo Palácio do Planalto para não sofrer uma derrota constrangedora no pacote da Previdência. Seguramente veio a calhar, mas é pouco. O que levaria o prefeito e o governador do Rio de Janeiro a estarem fora da cidade no evento comemorativo mais importante do Brasil?
Moços e moças, muitos nascidos ali mesmo nos morros invadidos, voltaram desta vez sob a insígnia das forças armadas e pelas mãos de um general para limpar a área e, assim, livrarem-se da honra que lhes atribuíram de salvar as comunidades nessa missão.
Mas, em pouco, dão-se conta de que aquela é a rua onde mora sua tia, que aquele que passa ali jogou bola junto, que o garotão que vem no colo da mãe é o neto do seu Zé.
O orgulho agora é medo. Traidor ou herói? Já se perguntou o mesmo antes. E a eles se juntam tantos outros, os que sabem tudo, os que ensinam tudo, os que fazem tudo e os piores, os que podem tudo. O poder da farda. E vão fazendo, como na ordem de marcha: à direita volver, esquerda, direita, esquerda, direita, à esquerda volver, sem pensar, sem se sentirem inibidos ou constrangidos pelos olhares das câmeras, dos transeuntes ou dos seus escolhidos. Não tem essa de apelar, é ordem, tem que ser feita e pronto. Esse é o raso. Rasas também são as conclusões dos opiniosos (e quantos existem!). As pesquisas dão conta de que os porto-alegrenses acham ótima a ocupação e sentem-se muito mais seguros com ela. Em Campinas, pensam o mesmo. Já há quem pretenda pressionar o seu deputado para entrar na fila da intervenção. Três governadores correram até Brasília, mas não mostraram qualquer preocupação com a extensão da medida, apenas são vizinhos e temem a correria dos bandidos para os seus quintais.
Enquanto isso, até que os diretamente afetados formem seu próprio juízo, vale o que dizem os do outro lado da rua, os jornais nacionais, o Faustão, o Ratinho, os paranaenses, os amazonenses, os mineiros, os que cheiram, se aplicam, os alucinados que pedem o fim do crime e apoiam a intervenção militar na capital fervilhante de pensamentos e manifestações, o Rio de Janeiro.
Poderia ser qualquer lugar? Mas por que o Rio de Janeiro? Com a palavra os generais, os senadores, os deputados – sim, o Temer também. Para cada argumento em alusão ao nível de violência da capital fluminense, é possível apontar 10 incongruências.
Nas pesquisas do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), o Rio de Janeiro jamais despontou como a mais violenta entre as capitais do país, o que é impressionante, porque a cidade concentra todas as diferenças sociais na mesma porção de terra. Em outras, o efeito centrífugo já empurrou para a periferia os desavantajados, o que, em tese, deveria diminuir o conflito. Essa seria a primeira e a mais fácil das réplicas. O pretexto fica mais evidente quando comparado a outras situações semelhantes como no caso do Estado do Rio Grande do Norte que viveu, há poucos meses, situação gravíssima com a greve de policiais civis, militares e agentes penitenciários.
Era visto que a paralisação iria ocorrer. Avizinhavam-se as datas de pagamento de salários e décimo terceiro salário a servidores, sabendo-se que o Estado não tinha caixa para pagá-los.
Desde 11 de maio de 2017, o governador do RN, Robinson Faria, vinha solicitando apoio do Governo Federal. Primeiro com o ministro da pasta da Justiça, Osmar Serraglio, depois, com o seu substituto Torquato Jardim. Foi relatado que o estado sofria com o crime organizado. O pedido não era de envio de tropas, mas de apoio a um Plano Estadual de Segurança Pública, solicitando mais recursos.
A paralisação iniciou, em 19 de dezembro, com forte adesão das categorias, tornando caótica a situação da população de todo o estado e dos turistas, com cancelamentos em número inédito.
O grave índice de violência e a crise aguda no estado e na sua arrecadação levaram, mais uma vez, o governador de pires nas mãos a pedir antecipação de recebíveis, empréstimos, medida provisória para pagar salários e melhorar as condições de trabalho o que, na sua leitura, resolveria a crise, entretanto, o governo federal foi implacável e por ele falou o Ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, com um sonoro não[1].
A tal ponto se chegou que apenas em uma tarde 80 turistas foram assaltados na mesma praia. Houve roubos com homens fortemente armados em supermercados e, inclusive, a suspensão pela prefeitura de Parnamirim, na região metropolitana de Natal, de shows previstos para a virada de ano. Os homicídios aumentaram em 20%. O que já fora um absurdo em 2016, com 1995 homicídios, em 2017 registraram-se 2.408, o maior até então, conforme o Observatório de Violência Letal Intencional – OBVIO.
Nesse cenário, em que perderam todos: sociedade, turistas, comércio, acabou-se por sucumbir ao interventor, General de Brigada Ridauto Lúcio Fernandes, que assumiu o “Controle Operacional da Segurança Pública no Estado”. Em 29 de dezembro, as sucatas com mira foram arrastadas até Natal e os 2000 homens anunciados chegaram aos poucos, a um custo não revelado, mas que bem poderia ter sido utilizado para pagar salários. E o resultado? O que importa. Essa não era uma preocupação, apenas um motivo. Não houve gritaria, o mundo não se compadeceu ou se assustou e assim despertaram os vampiros. Sentiram-se liberados para passos mais ousados, invadiram o Rio de Janeiro.
Muito se tem escrito sobre a artimanha utilizada pelo Palácio do Planalto para não sofrer uma derrota constrangedora no pacote da Previdência. Seguramente veio a calhar, mas é pouco. O que levaria o Prefeito do Rio de Janeiro e o Governador do Rio de Janeiro a estarem fora da cidade no evento comemorativo mais importante do Brasil, a maior festa mundial, o período de maior afluência de turistas de toda parte?
Não existe coincidência em política.
O caminho vem sendo pavimentado.
Em setembro de 2017, o General Antonio Hamilton Mourão falou abertamente em golpe militar, afrontando todas as instituições democráticas e nenhuma, nem a presidência, nem a Suprema Corte, nem o Parlamento determinou que desse explicações ou que o prendessem. Pior, o comandante do Exército Brasileiro, General Eduardo Villas Bôas esteve em programa de entrevista e declarou que seu subordinado tinha direito de expressar sua opinião. Na sequência, no mês de outubro, sancionou-se lei que alterou a competência para julgar crimes dolosos (intencionais) praticados por militares contra civis, atribuindo-a à Justiça Militar, como vigorava durante o AI5,tema já tratado no artigo “O lobo pode perder seus dentes, sua natureza jamais” (Le Monde Diplomatique Brasil, 24/10/2017, Mírian Gonçalves).
Nesse curso, seguimos aturdidos com os avanços diários na desconstrução da cidadania, nos desvarios megalômanos dos generais.
A intervenção no Rio de Janeiro é para findar em dezembro de 2018, portanto, após as eleições e, porque não supor, com um governo militar presidido por um civil, legitimamente eleito, como Rodrigo Maia, por exemplo.
O que resta dizer é que se sairmos do plano da indignação para o da indiferença, não haverá nada de novo no front, apenas mais mortos, como no romance de Erich Maria Remarque.
*Mírian Gonçalves, advogada de trabalhadores há 35 anos, mestra em Direito das Relações Sociais pela UFPR, sócia-fundadora dos institutos Declatra e Instituto Direito e Democracia (IDD) e vice-prefeita de Curitiba pelo PT, gestão 2013-2016.