É preciso interromper o financiamento para o carvão mineral
Último relatório do IPCC da ONU é taxativo: paramos as emissões agora ou entraremos num momento de difícil reversão dos efeitos antrópicos da mudança do clima
Boa parte das emissões globais de gases de efeito estufa se deve ao uso de combustíveis fósseis para transporte e eletricidade, sendo o carvão mineral o maior emissor disparado: até 1.689 gramas CO2eq/kWh quando usado em usinas termelétricas, sendo essa fonte responsável por 44% das emissões de CO2 do setor de energia em 2019. A título de comparação, derivados do petróleo emitem em média 1.170g CO2eq/kWh, enquanto fontes de biomassa emitem apenas 74g CO2eq/kWh.
As modelagens do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), para limitar o aquecimento a 1,5° C até 2100, passam obrigatoriamente pelo corte no setor de energia de até 95% do que hoje é gerado pelo carvão. Isso implica em acabar com a atividade das usinas existentes em 10 a 25 anos antes do tempo de vida operacional histórico, seguido por 60% de petróleo e 45% de gás natural. Obviamente que a transição energética para isso está atrasada, mas a caminho. A geração de energia por fontes renováveis avançou em uma década 3,7 vezes, segundo a Agência Internacional de Energia Renovável (Irena). Ao mesmo tempo, os custos de geração dessas fontes caíram 85% impulsionados pelo desenvolvimento tecnológico, financiamento internacional e políticas públicas de fomento.
Para limitar a expansão de carvão, bancos como o Grupo Santander, Banco da China e BNDES, anunciaram nos últimos seis anos, a exclusão de operações de crédito a termelétricas a carvão mineral ou redução de operações que utilizem carvão mineral em suas atividades. Ainda assim é muito pouco. Desde o Acordo de Paris em 2015, cerca de sessenta bancos investiram US$ 4,6 trilhões em projetos de energia fóssil (carvão, petróleo e gás). E apesar de toda a crise provocada pela pandemia, a visibilidade da importância de retomada econômica de baixo carbono e os principais bancos privados com operações no Brasil terem publicado recentes compromissos de se tornarem Net-Zero (neutralidade das emissões de gases de efeito estufa) até 2050, em 2021 US$ 17 bilhões foram destinados para projetos que utilizam carvão mineral.
Na contramão da necessidade de descontinuar a atividade de mais de 3 mil usinas a carvão no mundo até 2030, o Brasil, mesmo sem financiamento dos principais bancos, prorrogou subsídios até 2040 (Lei 14.299/2022) para as atuais termelétricas do sul do país. Consumidores de eletricidade de todas as regiões irão custear cerca de R$ 1 bilhão por ano para que usinas gerem menos de 2% da demanda nacional. Com certeza o recurso público destinado a subsidiar esses empreendimentos privados seria melhor empregado em um programa de transição justa e inclusiva para a região, como já fizeram outros países, a exemplo do Chile, Espanha, Canadá e Alemanha, garantindo indenizações, requalificação profissional e consolidação de novas vocações econômicas regionais, sustentáveis e inclusivas.
De forma equivocada, prorrogando os subsídios, o governo federal, por meio do Programa para Uso Sustentável do Carvão Mineral Nacional, anuncia a modernização das usinas para “focar em sustentabilidade ambiental e segurança energética”. Nada em se tratando de carvão mineral pode ser considerado sustentável para o meio ambiente. A própria Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), no Atlas de Energia Elétrica publicado no distante ano de 2002, já destacava os danos ambientais provocados no solo, no ar e na água, além de danos à saúde humana, principalmente doenças respiratórias. Em 2019 o Tribunal de Justiça de Santa Catarina condenou duas mineradoras a recuperar áreas degradadas em Urussanga, um dos municípios da região carbonífera de Santa Catarina.
Pesquisas realizadas em 2022 pela Universidade do Extremo Sul Catarinense (Unesc), Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e Instituto Arayara subsidiaram nova Ação Direta de Inconstitucionalidade à Lei Federal, mostrando a gravidade sistêmica dos impactos regionais de todo o ciclo do carvão: extração, beneficiamento, transporte, queima e rejeito em um território que abrange três bacias hidrográficas e 47 municípios. Dados do Sistema de Estimativa de Emissão de Gases (SEEG) mostram o pequeno município de Capivari de Baixo (SC), onde está o Complexo Jorge Lacerda, o mais antigo parque termelétrico a carvão do país, como o maior emissor por área: 4,5 milhões de toneladas de CO2eq (ano base 2018) relativos à energia, ou 8% de todas as emissões nacionais de energia.
Do ponto de vista da segurança energética, também não se justifica a continuidade do uso do carvão mineral. O Complexo Jorge Lacerda, ainda que com uma capacidade instalada de 857 MW, opera com 60% de sua capacidade. Esta e as demais usinas a carvão do país – um total de 22 até o momento – podem ser rapidamente substituídas por térmicas a biomassa de resíduos agropecuários e urbanos, onde a geração elétrica se incorpora a uma economia circular, gerando mais empregos e renda localmente sem passivos socioambientais.
Além disso, estudo da qualificada consultoria energética PSR demostrou que os reservatórios das atuais hidrelétricas dão conta da intermitência da expansão das renováveis, um dos principais motivos para a ampliação também do parque termelétrico nacional. As termelétricas a carvão, tipicamente inflexíveis, não são uma solução, mas um problema para a expansão de fontes limpas à medida que engessam a operação do sistema elétrico. O Plano Decenal de Energia 2031 aponta para expansão de 350 MW/ano da geração com carvão mineral, e inflexibilidade de 30% a partir de 2028. Essa orientação é totalmente contrária a tudo o que é necessário ao país e ao mundo para conter o avanço das mudanças climáticas. As externalidades socioambientais desses projetos são ignoradas nas projeções e cenários energéticos, mesmo quando conhecidas. Tais externalidades – emissões de GEE, danos irreparáveis ao solo, qualidade do ar e poluição das águas, custos de saúde pública – são indissociáveis dos projetos de geração elétrica e devem ser computados na avaliação de sua viabilidade. Ao fazê-lo, nenhuma usina a carvão mineral para em pé no Brasil. E nem sairão do papel se não houver financiamento privado. A população não pode arcar com esse mau negócio, para o país e para o clima mundial.
Sérgio Besserman é economista, professor universitário e ambientalista atento às questões energéticas e climáticas do mundo.
Alessandra Mathyas é analista de conservação do WWF-Brasil.