É proibido criticar o patriarcado
Em setembro, a cena cultural brasileira viu ressurgir a face tenebrosa da censura. Diante de expressões artísticas que criticam o patriarcado, uma instituição ligada a um banco e homens em posição de poder reagiram em defesa de supostas moral e família
Em Porto Alegre, depois de um mês de visitação do público, o Centro Cultural Santander fechou no dia 10 de setembro de 2017 a exposição Queermuseu, atendendo à gritaria de ultraconservadores. Menos de uma semana depois, em Jundiaí (SP), o juiz Luiz Antonio de Campos proibiu a apresentação da peça O Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu, argumentando que não poderia deixar que o “HOMEM SAGRADO seja encenado como um travesti”. Um dia antes, 15 de setembro, em Campo Grande, a Polícia Civil acatou pedido dos deputados estaduais Paulo Siufi (PMDB), Herculano Borges (Solidariedade) e Coronel David (PSC) e apreendeu o quadro Pedofilia, da artista plástica mineira Alessandra Cunha Ropre. Em ofício, os deputados acusaram a obra de promover “sacanagens e desrespeito à família e aos bons costumes”. Em entrevista ao Le Monde Diplomatique Brasil, Alessandra fala sobre a censura contra sua obra e a necessidade de a arte debater o machismo com a sociedade.
Le Monde Diplomatique Brasil – Como você ficou sabendo da censura e como se sentiu ao receber a notícia?
Alessandra Cunha Ropre – Recebi a notícia por um repórter que me encontrou no Facebook e por mensagem pediu meu número de telefone para falarmos sobre a censura de minha exposição. Como nem sabia do que se tratava, quis conversar para me inteirar do assunto. Fiquei chocada com os relatos do rapaz, que me enviou vários links para ver que na internet o assunto já estava bombando. Vi o vídeo absurdo do deputado na tribuna se pronunciando sobre algo que ele nem fazia ideia do que se tratava, de forma machista e moralista. O jornalista me deu direito à resposta e publicou em seu jornal, lá de Campo Grande, esclarecimentos sobre a exposição, sobre a pintura censurada e sobre minha seriedade profissional.
Você poderia nos falar sobre a obra e seu contexto?
A pintura de título Pedofilia, que não faz apologia a nenhuma forma de violência, tem a imagem de uma criança de tamanho diminuído, com olhos arregalados, no meio de dois homens com o pênis ereto saindo das sombras. Ao fundo da imagem há um olho com lágrima escorrendo, em um cenário colorido, como se dissesse que algo errado se esconde na falsa alegria das cores. Uma criança estilizada e com roupas em meio a algo errado entre quatro paredes. Essa pintura pertence a uma série de 32 imagens que estão na mesma exposição. Todas denunciam alguma forma de violência contra mulheres cis e trans, crianças, gays e outros oprimidos pela sociedade branca, patriarcal e machista. Essa exposição esteve, anteriormente, em Uberlândia (MG) e foi entendida por todos com poucas reações contrárias, levantando discussões ricas. Como houve há alguns dias a censura da exposição Queermuseu, em Porto Alegre, alguns deputados, em Campo Grande, entenderam que havia precedente para se fortalecerem contra a arte e a cultura. Mas não. Os promotores que analisaram a pintura em algumas instâncias observaram e relataram que se trata de uma imagem que, de fato, denuncia e em momento algum faz apologia a crimes sexuais contra crianças.
A temática de sua obra aborda de maneira crítica o machismo. Você poderia nos falar sobre essa opção?
Por ser mulher, vivo sob a opressão machista desde sempre. E por entender que precisamos dar um basta nessa forma de comportamento de alguns homens dentro da sociedade brasileira levantei a bandeira contra o machismo com essas pinturas. Porém, diferentemente do que sempre observamos na história das artes, não vou usar o corpo da mulher como objeto. Assim, coloco nas 32 imagens o corpo, ou fragmentos do corpo de homens nus, para expressar seu comportamento errôneo sobre o corpo das mulheres. Então demonstro a “ode ao falo”, que direciona os comportamentos sociais de forma arbitrária. Denuncio em imagens poéticas violências cotidianas contra as mulheres e crianças. E em uma subsérie de dez imagens, dentro dessa exposição, mostro mãos com os dedos do meio erguidos para evidenciar que, sim, a ode ao falo domina a sociedade.
Na mesma semana, além da censura à sua obra, uma exposição com a temática queer foi fechada em Porto Alegre e uma peça de teatro foi censurada por um juiz por haver uma pessoa trans representando Jesus Cristo. Para além da hipocrisia, como você entende essa reação violenta por poderes patriarcais?
Quando os indivíduos fascistas e autoritários se veem em via de perder espaço e poder de opressão, eles se desesperam tomando atitudes que violam a liberdade de expressão da sociedade. Se você não gosta da exposição, não vá ao museu. Se não gosta de uma peça de teatro com tema que te ofende, não vá ao teatro. Se não é a favor de casamento gay, não se case com um gay. Mas quando tenta retirar os direitos de LGBTs de discutirem suas questões ou de artistas de se expressarem parece-me, além de doentio, uma forma arbitrária de tentar se manter violentamente dominando um modelo de comportamento que não cabe mais na nossa sociedade. Por isso, vemos os políticos deteriorarem a educação pública do país, para que ninguém pense diferente e todos obedeçam. Eu estudei a vida toda em escolas públicas excelentes e sei como essa educação me deu base para ver essa realidade.
Você acha que a censura também pode cumprir o papel inverso, de chamar atenção para as obras e a falta de formação sobre esses temas?
Felizmente! O que estava no museu ou no teatro, para um público específico, agora está na mídia, em todos os canais, para atingir quem não está nas cidades dos museus e do teatro. Tanto no caso da exposição Queermuseu, em Porto Alegre, como no da peça O Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu, em Jundiaí, e ainda da pintura confiscada, em Campo Grande. Ampliar essas discussões para o público traz para dentro do debate pessoas engajadas que ainda estavam deslocadas. A função da arte é mesmo esta: provocar, resistir, insistir e romper comportamentos. Há uma grande união e solidariedade entre artistas e seus movimentos. E não precisamos de aval de nenhum partido moralista formado por jovens mal-educados e mimados que nunca leram livros de história.
Dados do IBGE apontam que menos de 10% da população visita exposições de arte e museus anualmente. Você atribuiria esse dado à negligência do Estado em relação à formação educacional e cultural?
Com certeza! Quem vai a museus, teatros e manifestações artísticas muda seus pensamentos diante de imagens, peças teatrais, performances etc. O Estado, atualmente formado por políticos corruptos e falsamente moralistas em sua maioria, não quer que a população veja novas possibilidades de vida ou de pensamento, por isso deteriora a educação e tenta censurar a cultura.
Como a arte poderia contribuir para a formação dentro das escolas em contraponto ao surgimento de movimentos reacionários?
Escola é uma área que frequentamos para adquirir conhecimentos; para aprender práticas e teorias que outras instituições, como família e Igreja, não dão conta. Na época em que fiz o ensino fundamental e médio, a escola era para os homens. As mulheres não podiam correr nas quadras de esporte nas aulas de educação física. Estudei em uma escola pública que tinha aulas de marcenaria, nas quais as garotas somente podiam tirar o pó da sala, varrer o chão e limpar todas as formas de sujeira feitas pelos garotos que manuseavam as ferramentas e máquinas de corte. Isso, a meu ver, era uma escola partidária, onde o machismo e o patriarcado imperavam, um partido de gênero. Quando venho com as artes discutir questões de opressão social, venho defender não somente a liberdade de expressão, mas também a liberdade de gêneros, liberdade e igualdade entre todas as pessoas de todas as cores, com todas as suas deficiências, com todas as diferenças.
*Cristiano Navarro é editor do Le Monde Diplomatique Brasil.