E se os doutores estiverem errados?
A aprovação do feijão transgênico da Embrapa permitiu reavivar a promessa de que a transgenia abrirá caminho para uma revolução na alimentação. Foi o mote perfeito para tirar o foco do fato de esse mercado ser dominado por poucas multinacionais que patenteiam as sementes e tiram de circulação as não transgênicasGabriel Bianconi Fernandes
Preparado para comer feijão transgênico? O produto foi liberado para plantio e consumo no país em meados de setembro. A decisão foi tomada por quinze integrantes da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), órgão ligado ao Ministério da Ciência e Tecnologia. Além do Ministério da Saúde, outros quatro votos foram pela diligência, defendendo a realização de mais estudos. O Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea) manifestou à presidente Dilma Rousseff, ainda em julho, sua “preocupação com a atuação da CTNBio, relativamente ao Princípio da Precaução [e às] violações ali cometidas” e alertou para os “estudos insuficientes que apoiam a liberação do feijão”.1
A nova semente não é cultivada em lugar nenhum do mundo e foi desenvolvida pela Empresa Brasileira da Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Promete ser resistente ao vírus do mosaico dourado, doença que prejudica as plantações.
Foi voto vencido o relator que criticou o fato de os estudos serem baseados em apenas três ratos, número pequeno demais para extrair conclusões estatisticamente válidas. Mesmo assim, nesses três animais, todos machos, abatidos antes da idade adulta, identificou-se tendência de diminuição do tamanho dos rins e de aumento do peso do fígado. Desconsiderou-se também o alerta de que a legislação estava sendo atropelada, já que a empresa deixou de apresentar estudos ao longo de duas gerações de animais e em animais prenhes. Apesar disso, o pesquisador responsável pelo desenvolvimento do feijão transgênico, também integrante da CTNBio, afirmou que “foram realizados testes além do necessário”.2
Criticou-se também que os estudos de campo foram feitos por apenas dois anos e só em três localidades, quando a lei condiciona testes em todas as regiões onde a planta poderá vir a ser cultivada. O mesmo pesquisador afirmou aos jornais que “foram realizados testes de 2004 a 2010 em todos os ecossistemas onde o feijão comum é cultivado”,3 que “fizemos estudos entre 2005 e 2010”4 e que “as pesquisas em campo foram feitas desde 2006”.5 Quem abrir o processo submetido à CTNBio, que ele mesmo assina, verá que “os ensaios foram realizados em casa de vegetação e campos cultivados por um período de dois anos”.
A durabilidade da resistência ao vírus também foi colocada em questão. Os dados da Embrapa mostram que a primeira geração de sementes originadas do feijão modificado apresentou até 36% de plantas suscetíveis ao vírus. Se isso se repetir nas plantações, a vida útil da tecnologia será abreviada por uma nova cepa de vírus mais resistente. Contudo, nenhuma dessas questões parece ter importância diante da euforia gerada pelo “grande feito nacional”. Até o feijão maravilha da novela foi evocado para celebrar a conquista.6
Outros detalhes que cercaram essa decisão merecem ser discutidos, inclusive porque são sintomáticos do quadro mais geral da questão dos transgênicos no Brasil. Quinze foram os votos pela liberação, exatamente o número de membros da CTNBio que endossaram o abaixo-assinado pela liberação do feijão transgênico que correu a internet nas semanas que antecederam a votação.7 O autor da petição é representante do Itamaraty na comissão e um dos relatores do processo. Ao lado do presidente da CTNBio, estes também demonstraram posicionamento prévio favorável, descartando os riscos do produto antes mesmo da conclusão de sua análise. Seria conflito de interesses sair da posição de julgador, investido em função pública, e passar para a arquibancada? Levamos a questão ao Ministério Público Federal.
O representante do Ministério da Ciência e Tecnologia, por sua vez, ouviu uma exposição detalhada sobre as falhas do processo, não se manifestou, absteve-se de votar e deixou a reunião em seguida. Demonstrou assim a chancela do ministro Aloizio Mercadante ao procedimento, que desconsiderou a manifestação do Consea e de organizações da sociedade civil.
Antes disso, ainda em maio, foi realizada uma audiência pública em Brasília, na sede da empresa proponente. Muitos dos funcionários lá presentes garantiram a claque. Os questionamentos apresentados obtiveram a resposta-padrão da CTNBio para qualquer crítica aos transgênicos: “Não são pertinentes”, “Leigos não têm como contribuir”. Variações do “Sabe com quem está falando?”.
Novo fôlego para velhas promessas
A aprovação do feijão da Embrapa permitiu reavivar a promessa de que a transgenia abrirá caminho para uma revolução na alimentação, que poderá acabar com a fome etc. Foi o mote perfeito para tirar o foco do fato de esse mercado ser dominado por poucas multinacionais que patenteiam as sementes, tiram de circulação as não transgênicas, fazem venda casada de agrotóxicos e enfocam apenas as commodities agrícolas.
Entre 2008 e 2011, a CTNBio liberou 29 tipos de sementes transgênicas, entre soja, milho e algodão, sendo 24 delas modificadas para tolerância a herbicidas. Assim, pulveriza-se a área total da plantação e morre apenas o mato. Anteriormente, a soja Roundup Ready (RR) da Monsanto, resistente ao herbicida glifosato, fora liberada por medidas provisórias do presidente Lula e definitivamente pelo Congresso, em 2005, com a aprovação da Lei de Biossegurança.
O uso de glifosato (princípio ativo do herbicida Roundup) no Brasil foi multiplicado por cinco entre 2003 e 2009. Nesse período, a RR passou a representar cerca de 70% da soja plantada no Brasil. Em 2004, para viabilizar esse sistema, o governo aumentou cinquenta vezes o limite de resíduo de glifosato permitido nos grãos de soja. Para o milho, o limite foi multiplicado por dez. Não por acaso, em 2008, o Brasil passou a ser o país que mais usa venenos agrícolas no mundo. Mesmo contra os fatos, as empresas mantêm o discurso de que a adoção das sementes transgênicas reduz o uso de agrotóxicos.
A questão, contudo, não deve incomodar quem segue a linha de raciocínio do presidente da CTNBio, Edílson Paiva. Para ele, “a vantagem na segurança alimentar [do glifosato] é que os humanos poderiam até beber e não morrer, porque não temos a via metabólica das plantas”.8 Estudos sobre esse que é o “mata-mato” mais usado no mundo associam-no, mesmo em doses bem inferiores às recomendadas, a problemas hormonais, reprodutivos, de câncer e à malformação fetal. Por essas e outras, sua toxicidade está sendo reavaliada pela Anvisa.
Como se não bastasse, o uso repetido do pacote Roundup Ready acaba levando o mato a desenvolver resistência ao produto. Isso tem feito o agricultor aumentar as doses do Roundupou utilizar produtos mais tóxicos. No Brasil, já são oito espécies de mato que escapam do glifosato. Mas o problema agronômico é visto como oportunidade de negócio pelas concorrentes da Monsanto. Aqui já foram liberadas nove sementes da alemã Bayer resistentes ao glufosinato de amônio, cujo registro está com os dias contados na União Europeia. A CTNBio aprovou campos experimentais de uma soja da norte-americana Dow, que será resistente ao 2,4-D, ingrediente do Agente Laranja da Guerra do Vietnã, que dá origem a dioxinas, conhecido grupo de compostos carcinogênicos. A lista de “alternativas” teria ainda outros exemplos a serem citados. A transgenia bem que precisava de uma arejada.
Fronteira do conhecimento
A modificação genética aplicada ao feijoeiro difere da usada até então na soja, no milho e no algodão. O processo é o mesmo que foi testado no tomateiro por pesquisadores italianos que concluíram que “vacinar” a planta com o material genético do próprio vírus aponta para sua rápida mutação e desenvolvimento de resistência.9
Para chegar ao feijão modificado, a Embrapa fez 22 provas: duas funcionaram, e as outras vinte, não. Por quê? “Ainda não foi determinado o motivo pelo qual essas duas estruturas em particular conferiram resistência ao vírus, [uma vez que] a estrutura dos transgenes demanda tempo e deve ser investigada”, dizem os autores do projeto.
Para o presidente da CTNBio, esses são desafios de trabalhar na “fronteira do conhecimento”.10 No caso, ele se refere à técnica do DNA recombinante, desenvolvida em meados da década de 1970.
Seus fundamentos, em resumo, rezam que um gene dá origem a uma proteína, e esta a uma característica do organismo. Assim, introduzindo-se um gene exótico num organismo, ele passaria a produzir a característica correspondente. O princípio seria válido, não fosse o fato de que esse caminho é de mão dupla, e o meio onde o organismo se desenvolve influencia suas características e o comportamento de seus genes. E aqui começa a aparecer parte do problema, já que a transgenia só pode controlar o caminho de ida. Além disso, há genes que não codificam proteínas (como acontece com 98,5% do genoma humano), outros que codificam mais de uma, e muitos outros que só funcionam em rede. Como controlar isso tudo?
Essa noção de gene como um objeto, uma unidade hereditária manipulável, que se transfere para cá e para lá, que pode ser cortada e colada é tão útil para a indústria quanto defasada cientificamente.
Diz-se hoje que as informações biológicas operam em múltiplos níveis hierárquicos, formando redes de interações entre seus componentes. Assim, os genes deveriam ser entendidos como algo que emerge desses sistemas, nos quais as moléculas de DNA são envolvidas. Mas superar conceitualmente o determinismo genético implodiria o patenteamento da tecnologia e, por tabela, das sementes transgênicas. Afinal, como patentear uma coisa fluida como essa a que se aproxima o gene em sua visão moderna? O império agroalimentar das seis grandes da área desmoronaria como um castelo de cartas. Daí a necessidade da mistificação, da caixa-preta, do sigilo sobre os dados. O assunto é para experts, seus críticos são obscurantistas. Jargões como “fronteira do conhecimento” e “tecnologia de ponta” caem como uma luva.
É essa a inversão semântica registrada pelo jornalista Washington Novaes, segundo a qual os que pedem precaução e mais estudos diante de incertezas são acusados de ser contra a ciência e de manter posturas ideológicas; já os que são a favor da liberação de novos produtos, sem necessidade dos estudos científicos, são apontados como verdadeiros cientistas.11
À deriva
A presença na CTNBio de especialistas em biossegurança e de representantes da sociedade civil pautados pelo princípio da precaução poderia ser um contrapeso. Mas o bloqueio político já levou o ex-ministro Sérgio Rezende (Ciência e Tecnologia) a vetar a nomeação de pesquisadores independentes e, até hoje, a maioria dos ministérios trava as indicações desses representantes.
A lei diz que a CTNBio pode tudo, que suas decisões “vinculam” Ibama, Anvisa etc., e que o licenciamento ambiental para transgênicos pode ser [e na prática é sempre] dispensado a seu critério, fruto de uma composição cuja maioria é a priori pela liberação. A lei, aprovada com apoio do governo e dos ruralistas, criou também o Conselho Nacional de Biossegurança (CNBS), composto de onze ministérios e presidido pela Casa Civil. Esse seria o espaço para resolução de controvérsias, análise socioeconômica da questão e formulação de uma política nacional de biossegurança. O conselho não deveria ser interpelado no caso do feijão? Quando a pergunta foi feita para a Casa Civil e para os ministérios da Agricultura, do Desenvolvimento e da Ciência e Tecnologia, além de quadros burocráticos da CTNBio, viu-se que eles nem sequer sabiam da existência do CNBS.12 Pior do que constatar que essas decisões escapam do controle social é saber que quem deveria controlá-las não quer nem saber do assunto. Fica assim comprometido o caráter público dessa comissão, que segue à deriva no governo, movendo-se conforme os interesses representados pela maioria de seus integrantes.
Duas ações de inconstitucionalidade questionando os superpoderes da CTNBio aguardam desde 2005 julgamento do Supremo. A partir de alertas de ONGs, o Ministério Público Federal, em várias ocasiões, agiu para corrigir desvios da comissão, assim como já fez o Judiciário, também em ações movidas pelas organizações. As entidades científicas curiosamente não participam desse debate, com exceção das duas últimas reuniões anuais da SBPC, que tiveram atividades sobre o tema. Mas seu envolvimento ainda teria de ser bem maior para dar credibilidade ao processo. Num momento crítico do debate, em que a rotulagem não é cumprida, o líder do governo na Câmara propõe a liberação de sementes estéreis (terminator), árvores e mosquitos transgênicos batem à porta e parte do movimento ambientalista e do movimento social jogou a toalha. Quadro nada alentador às vésperas da Rio+20.
Um risco desnecessário
Pesquisas desenvolvidas há mais de oito anos pela mesma Embrapa comprovaram que o vírus que afeta o feijoeiro pode ser controlado por meio do manejo orgânico, sem comprometer a produtividade da cultura e sem incorrer nos riscos da transgenia. Numa escala mais ampla, o potencial da agroecologia também foi afirmado pela mais expressiva manifestação do meio científico, o International Assessment of Agricultural Knowledge, Science and Technology for Development (IAASTD), que ao longo de três anos mobilizou mais de quatrocentos cientistas de todo o mundo com financiamento das Nações Unidas. Porém, nem sempre é fácil a vida de quem faz pesquisa seguindo esse enfoque. Após mobilizações de organizações da sociedade civil ligadas à Articulação Nacional de Agroecologia, a Embrapa criou o Fórum de Agroecologia, com o objetivo de planejar ações de pesquisa na área juntamente com a sociedade organizada. Mas, infelizmente, esse processo ainda não tem recebido da empresa a atenção política e orçamentária necessária. Entraves como esse ao avanço das alternativas alimentam a ideia de que não é possível produzir em quantidade fora do modelo atual de agricultura. Bloqueia-se justamente o conhecimento que pode tirar o Brasil do pódio dos agrotóxicos e do vice em transgênicos.
Gabriel Bianconi Fernandes é Membro da AS-PTA – Agricultura Familiar e Agroecologia.